Rio Grande do Sul

Coluna

Aquele gol sonhado

Imagem de perfil do Colunistaesd
A absolvição de Higui é o resultado da luta coletiva desde que aconteceu, há quase 6 anos - Divulgação
#YotambiénmedefenderiacomoHigui foi a maior hashtag desses dias

Higui é uma sapatão negra, pobre e periférica de Buenos Aires que gosta muito de jogar futebol. Em 2016, foi atacada por um grupo de homens que a abordaram pelas costas. Começaram a bater e a dar chutes até ela cair no chão, então, atiraram-se em cima. “Vamos te tornar mulher, sua lésbica safada!”, diziam em referência a sua expressão de gênero masculina.

Eles tentaram fazer com Higui o famoso estupro corretivo. Os gays e as pessoas trans, geralmente, são assassinadas, enquanto que as lésbicas sofrem/sofremos violência sexual, por grupos de homens que ficam muito alterados vendo que não somos como eles entendem que deveríamos ser quando escapamos dos padrões impostos pelo hétero-patriarcado. Acontece em todas as classes sociais.

Mas Higui se defendeu. Já estava um pouco tonta pela violência quando sentiu o pau de madeira no corpo, eles tirando suas roupas... Não duvidou. Com a mão esquerda (a direita estava presa) pegou a pequena faca escondida no sutiã esportivo e os ameaçou tentando afastá-los. Eles não recuaram, ela a cravou num dos seus agressores.

Ele não resistiu à força da raiva, do grito, da injustiça ancestral. E morreu.

Quando ela tentou fazer a denúncia, mesmo desfigurada de tanto ter apanhado, os policiais riam na sua cara e diziam: Quem vai querer te estuprar a ti, negra gorda!?

A (in)justiça considerou ela culpada. Não importava o estado em que ela ficou, deformada pelos chutes e com as roupas todas rasgadas. Importava que estava viva, que tinha se defendido. Higui levava a pequena faca escondida depois que esses mesmos machos tacaram fogo na sua casa. Desde então, ela não morava mais no bairro. Mesmo assim ela foi presa. Mesmo assim ela foi julgada culpada e passou 9 meses no cárcere nas piores condições.

A pressão social foi tão grande que um belíssimo dia lhe abriram as portas, permitindo aguardar em liberdade até o julgamento. Eles pediam 10 anos de prisão. Ela era acusada de ser suja, de vestir mal e de se defender como um homem.

Mas no 17 de março, Higui fez seu maior GOL contra o sistema e foi absolvida!

A vitória foi do time de profissionais feministas que acompanhou a Higui todo este tempo. Assim como dos movimentos sociais. O resultado cria jurisprudência tanto no cotidiano quanto na justiça. Próxima vez que um grupo de filhos do hétero-patriarcado decida ameaçar e violentar e estuprar uma mulher/sapatão terá que pensar 2, 3, 100 vezes antes, pois agora existem precedentes.

A absolvição de Higui é o resultado da luta coletiva desde que aconteceu, há quase 6 anos. Em Argentina se pedia justiça por Higui, sempre os gritos estavam presentes nas ruas e nas redes sociais. Nós, lésbicas e sapatões, sabemos da violência que estamos expostas/es pelo fato de nos rebelarmos contra a norma do hetero-patriarcado, mas se ainda ela/elu é masculine, machorra, piora consideravelmente. Foi emocionante seguir pelas redes sociais o companheirismo, a sororidade, o continum lésbico de tantas e tantes que antes nem sabiam que existia uma sapa que viria a mexer com a vida de todas/es nós.

#YotambiénmedefenderiacomoHigui foi a maior hashtag desses dias. O apoio foi do movimento social todo, desde as lésbicas/feministas até as Madres de Plaza de Mayo. Todo esse tempo, Higui contou com ajuda psicológica de uma feminista muito conhecida que atende a sobreviventes do tráfico de mulheres. Uma vez mais fica nítido que a luta não pode ser por uma causa única, mas por muitas injustiças que se entrelaçam.

A partir do acontecido, e de todo o amor e carinho e apoio que recebeu, Higui foi-se engajando em diferentes lutas. Na foto, ela aparece com a camiseta da Campanha (argentina) pela legalização do aborto.

Todas/es nos sentimos um pouco Higui, porque a maioria de nós, alguma vez passou por algo parecido e todas/es nós, lésbicas ou héteras, sabemos da violência que implicam nossas corpas, rebeldes ou não, para o patriarcado. No Brasil entendemos muito disso, mais ainda com a conjuntura desse desgoverno. Por isso, queremos gritar e deixar escrito nas paredes para todas as gerações : Eu também me defenderia como Higui.

mariam pessah : ARTivista feminista, fotógrafa, poeta e escritora. Seu livro mais recente : Grito de mar. Organiza há 5 anos o Sarau das minas e ministra a Oficina de escrita e escuta feminiSta. Também trabalha como tradutora.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko