Rio Grande do Sul

250 anos de POA

Artigo | Porto Alegre deixou de comemorar sua democracia participativa (parte 1)

Indicadores demonstram a perda democrática na principal inovação de capital gaúcha: o Orçamento Participativo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Reunião do Orçamento Participativo em 1992 em Porto Alegre - Foto: Arquivo PT

"Não será ninguém mais do que a elite da comunicação, a elite empresarial e a elite política que farão as reformas tão necessárias. Delegar isso ao “seu João” e à “Dona Maria” é irresponsabilidade."
(Nelson Marchezan Jr., prefeito de Porto Alegre, 30/11/2017)1

“Pra que prefeito se é para delegar as decisões para os conselhos?”
(Sebastião Melo, Prefeito de Porto Alegre 2022)2

O retrocesso da democracia em Porto Alegre – parte I

Ao completar 250 anos, Porto Alegre precisa olhar para si e avaliar o que ganhou e o que perdeu na sua história. O Observatório das Metrópoles vem contribuindo com esse objetivo. E por isso, faz-se necessário avaliar como nossa urbe tratou sua civitas nas últimas décadas, ou seja, como a cidade e sua gente foi governada a partir da redemocratização, o maior período democrático de toda a república. Esse tema é fundamental para a agenda que busca universalizar o direito à cidade em nosso país.

Avaliar nossa democracia local é também avaliar como vem sendo produzida a cidade. E essa avaliação nos manda olhar para nossa cidade inserindo-a no contexto atual de crise das democracias. Esse novo contexto vem ensejando debates e pesquisas internacionais voltadas para dois aspectos centrais: a questão da qualidade das democracias e o decréscimo da confiança dos cidadãos nos regimes democráticos, questões que se apresentam não somente em países periféricos, mas também nas democracias consolidadas dos países desenvolvidos. Esse desafio vem exigindo esforços de analistas para interpretar o novo marco das relações entre o capitalismo em mutação e a democracia. E nesse objetivo surgem múltiplos olhares, entre os quais é possível destacar as análises centradas nos processos que levam ao aprofundamento da democracia ou, ao contrário, na sua restrição.

No livro Democracia, Charles Tilly oferece uma interpretação inovadora seguida de pesquisa internacional sobre alguns países no mundo. O autor estabelece – a partir de quatro dimensões propostas para balizar a pesquisa comparativa entre países – uma análise centrada nos processos de democratização ou de desdemocratização, entendidos como duas tendências que estão em permanente movimento nas sociedades. Assim, é possível avaliar não somente se os regimes são democráticos ou não, conforme as tradicionais leituras pluralistas ou elitistas, mas em quais direções as sociedades caminham, se no sentido de maior democratização, ou, ao contrário, de sua diminuição.

Essa abordagem permite compreender melhor os processos atuais de enfraquecimento das democracias que ocorrem não pela via clássica dos golpes de Estado, mas por procedimentos legais adotados no interior dos próprios regimes democráticos3. Em geral, mas não é regra, essas condições identificam a ascensão do populismo de direita em vários países, a exemplo do Brasil desde o golpe de 2016 e que se intensificou com a eleição de Bolsonaro, em 2018.

A perspectiva analítica da democratização-desdemocratização pode ser adaptada para avaliar os percursos da democracia local ou em nível subnacional. É o caso do estado da democracia em Porto Alegre, cidade que se tornou referência internacional de participação cidadã e que galgou a condição de caso contra-hegemônico em termos de inovação democrática4. A ampliação da democracia em Porto Alegre se deu pela criação gradativa de novas instituições participativas ao lado das instituições tradicionais da representação político-partidária. Com isso, ocorreu a inclusão de setores das classes trabalhadoras da periferia que estavam fora do jogo decisório local. É possível dizer, conforme inúmeras pesquisas, que essa complementaridade entre a representação política e a democracia participativa adquiriu caráter democratizante segundo os critérios propostos por Tilly, alterando o regime político em: ampliação democrática, igualdade entre grupos de interesses, proteção da liberdade e caráter mutuamente vinculante das decisões adotadas.

Segundo nossas pesquisas e outras tantas sobre a trajetória porto-alegrense, desde 1985, em cada um dos critérios propostos pelos sociólogo norte-americano a democracia participativa de Porto Alegre avançou no sentido da democratização da democracia. E isso ocorreu por meio do Orçamento Participativo (OP), pela criação e ampliação dos Conselhos Municipais de Políticas Públicas e de Direitos e pela participação no planejamento urbano, com o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA). A democracia participativa também abarcou outros fóruns como a realização de cinco Congressos da Cidade.

Todavia, verifica-se desde meados da primeira década dos anos 2000 mudanças que apontam para a tendência contrária, ou seja, para o processo crescente de desdemocratização da gestão da cidade. Essa perda democrática é observada nas três dimensões citadas acima que constituem a arquitetura inovadora da participação cidadã em Porto Alegre: o OP, os Conselhos Municipais e o sistema de planejamento urbano e ambiental centro no CMDUA.

Vejamos a seguir alguns indicadores que demonstram a perda democrática na principal inovação de Porto Alegre, o Orçamento Participativo. Posteriormente, em outro texto (parte II), serão abordados os retrocessos verificados também nos Conselhos Municipais e no setor de planejamento urbano e ambiental, configurando as perdas da democracia participativa em Porto Alegre, que vem se intensificando de forma proposital nas últimas gestões.

Sobre o OP, inicialmente, o procedimento enfrentou dificuldades a partir do início dos anos 2000, quando a crise financeira da cidade ainda na Administração Popular (2001-2004) abalou a capacidade de execução das obras e projetos até então decididos pelas comunidades. Esse período deu início a certa perda e confiança dos participantes nas decisões do OP, já que foram surpreendidos pela nova situação inusitada de dificuldades. Todavia, todos os procedimentos do OP se mantiveram em funcionamento, um método participativo que estava consolidado na relação institucional entre o governo local e as comunidades. As classes populares, ainda que exercendo o seu direito de crítica e de controle social, sabiam que haviam assumido uma nova condição de protagonistas no jogo do poder local.

A alternância de poder político na gestão local, a partir das eleições de 2004, alteraram as condições de operacionalização do OP. Por um lado, a sua manutenção decorreu da legitimidade e do apoio popular que ele tinha na cidade, o que impediu o abandono ou o seu encerramento, como aconteceu em muitos outros municípios do país. Por outro lado, a introdução de outro programa de participação paralelo ao OP, a Governança Solidária, ocorreu com grande investimento político e administrativo da nova gestão, aprofundando inevitavelmente o enfraquecimento do OP. Desse momento em diante o processo nunca mais recuperou o fôlego que teve no passado e perdeu força e poder de decisão. Cambaleante, chegou até 2017, quando o projeto neoliberal de Marchezan o desidratou de vez.

Em síntese, é possível apontar as perdas democráticas do OP e sua descaracterização como modelo de democracia contra-hegemônica, entre as quais pode-se destacar: não cumprimento das decisões sobre obras e projetos priorizados pelas comunidades; forte diminuição de recursos para as demandas comunitárias; descompromisso da administração municipal com a sustentabilidade da participação em termos administrativos, financeiros e políticos; criação e forte investimento político-administrativo em programas paralelos ao OP, enfraquecendo-o (como a Governança Solidária); fim do modelo redistributivo dos recursos públicos baseado em critérios objetivos de carência dos territórios; aumento da intransparência governamental e diminuição do controle social e da prestação de contas; mudanças nas regras do jogo favorecendo a instrumentalização partidária, a perpetuação de representantes no Conselho do OP e a captura de lideranças comunitárias; retorno de práticas clientelistas por dentro da participação, rompendo com os objetivos fundantes do OP.

Essas mudanças foram operadas juntamente com o retorno do peso da Câmara Municipal na balança do poder. A Câmara recuperou seu papel de intermediação de recursos orçamentários e de barganha privilegiada junto ao Executivo para além do poder precípuo que ela tem de legislar. Além da adoção do Orçamento Impositivo, a aprovação recente do Orçamento Participativo Eletrônico, com apoio do Executivo e à revelia do OP, indica a tentativa de descaracterizar o modelo do OP baseado na forte presença das classes populares.

Não há dúvidas de que o OP vive seu momento de declínio e ocaso, inclusive no Brasil, o que é paradoxal com a expansão mundial a partir de Porto Alegre, segundo mostra o Atlas Mundial do OP.5 Mas as perdas da democracia participativa não ocorrem somente no OP. Também as outras instâncias de participação estão em retrocesso, como veremos a seguir.


1 - Manifestação do Prefeito por ocasião da entrega do 34º Troféu Carrinho Agas. In: https://sul21.com.br/cidadesz_areazero/2017/12/o-joao-e-maria-tem-que-participar-sim-conselheiros-municipais-rejeitam-projeto-de-marchezan/ (acessado em 10 de dezembro de 2017)

2 - Entrevista ao site Matinal em 22/03/2022

3 - Sobre as crises da democracia ver os estudos de MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. Cia das Letras, 2019; PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Zahar, 2020; LEVITSKY, Steven, ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Zahar, 2018

4 - Cf. FEDOZZI, Luciano. Porto Alegre: Participación contra-hegemónica, efecto-demostración y desconstrucción del modelo. In: CARRION, M. Fernando; PONCE, S. Paúl. (coord.) El giro a la izquierda: los gobiernos locales de América Latina. 5ª Avenida, Quito, 2015. 

5 - Segundo o Mapa Mundial dos OP esse procedimento vem crescendo de forma exponencial no mundo chegando hoje a cerca de 4 mil municípios em todos os cinco continentes. (https://www.pbatlas.net/atlas-mundial-dos-op-2019.html)  


* Luciano Fedozzi é professor titular do Departamento de Sociologia da UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles ([email protected]).

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira