Rio Grande do Sul

Coluna

A droga do estupro

Imagem de perfil do Colunistaesd
Em reportagem da BBC, uma mulher ucraniana de 50 anos que vive na zona rural de Kiev relata que teve sua casa invadida, seu marido assassinado e foi estuprada por um soldado aliado ao exército russo
Em reportagem da BBC, uma mulher ucraniana de 50 anos que vive na zona rural de Kiev relata que teve sua casa invadida, seu marido assassinado e foi estuprada por um soldado aliado ao exército russo - Dimitar Dilkoff / AFP
Há mais de mil anos nossos corpos são tratados como territórios a serem conquistados, subjugados

Há meio século, em uma crônica publicada no Jornal do Brasil no ano de 1972, em plena ditadura militar, escrevia Marina Colasanti:

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita as mortes e que haja números para as mortes. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

Em 12 de abril de 2022, em uma reportagem da BBC traduzida e publicada em português, Anna (nome fictício), uma mulher ucraniana de 50 anos que vive na zona rural de Kiev, relata que no dia 7 de março teve sua casa invadida, seu marido assassinado e foi estuprada por um soldado aliado ao exército russo. Por dias esteve sob vigilância de soldados que se instalaram em sua casa, exigindo a entrega de pertences do esposo.

A reportagem cita que, na mesma estrada, outra mulher de 40 anos foi estuprada e morta. Seu corpo foi enterrado pelos mesmos soldados russos, segundo a vizinhança, pelo mesmo homem que estuprou Anna. Dois dias mais tarde, a 50 km dali, outra mulher teve seu companheiro assassinado e foi estuprada, por dias. Para proteger seu filho pequeno, ela não apresentou qualquer resistência. Quando os soldados foram embora da casa de Anna, ela encontrou entre os objetos deixados, drogas e Viagra.

No mesmo dia da publicação da reportagem, diversos jornais veiculavam sobre a investigação da compra de mais de 35 mil comprimidos de Viagra pelas Forças Armadas brasileiras no ano de 2021, superfaturados em 143% sobre o valor do ano anterior e que, neste ano de 2022, estariam abertos mais oito processos de licitação e compra. A explicação dada pelo presidente foi de que o Viagra estaria sendo usado como uma medicação paliativa, mais barata que outra com o mesmo princípio ativo, a sildenafila, para o tratamento de hipertensão pulmonar crônica, doença rara que atinge 1 a cada 250 mil pessoas, e na proporção de cinco mulheres para cada homem acometido. O vice-presidente, então, se pronunciou dizendo que essa é uma quantidade ínfima, afinal, qual o problema de se comprar 35 mil comprimidos para serem tomados 110 mil velhinhos militares como ele?

A internet veio abaixo. Não faltaram memes, cards, postagens, piadas e charges sobre a decadência fálica fardada. O Conselho Nacional de Saúde publicou um relatório que aponta o desvio de mais de 150 milhões de reais do Sistema Único de Saúde para o Ministério da Defesa, gastos, por sua vez, em reparos de aeronaves e recursos em bases militares fora do país. Pesquisadores apontam que o escândalo do Viagra e o recorde de verbas desviados do SUS pela Defesa devem ser auditados.

Tal como na crônica de Colasanti, a gente se acostuma, mas não deveria.

A gente ri, mas não deveria. Porque o estupro, embora seja uma das primeiras violações que efetivamente acontecem nos territórios alvo de conflitos armados - desde as Cruzadas, quando a Igreja Católica incentivava o mesmo como parte do seu plano de povoar a terra - foi reconhecido como crime de guerra apenas no Estatuto de Roma, em 1998. Foram quase mil anos de dominação patriarcal nos mais distintos territórios do mundo para forjar a ideia de que a capacidade de sustentação de uma ereção e uso perverso do corpo são atributos desejáveis para um soldado combatente.

Seguramente, há mais de mil anos nossos corpos são tratados como territórios a serem conquistados, subjugados, dominados. Nós sabemos dessas histórias há muito tempo, há séculos, décadas, anos, meses, semanas, dias. Elas aconteceram em Europa, Américas, África, no Vietnã e no Timor Leste, na Ucrânia e em qualquer comunidade periférica onde o Estado aponte as armas do exército. Nós sabemos dessas histórias. Nós sabemos que aqui, no Brasil, também acontecem.

A gente se acostuma mas não deveria, e nesse momento só consigo pensar nas guilhotinas da revolução francesa.

Lara Werner, sanitarista

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira