Rio Grande do Sul

INDÍGENAS

Terra, teto e liberdade pautam a luta nos 522 anos da chegada dos brancos

Quatro lideranças denunciam o descaso e a violência contra os povos originários remanescentes no Rio Grande do Sul

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Acampamento Terra Livre reuniu indígenas de todo o país na luta contra os ataques aos povos originários - Foto: Alass Derivas | @derivajornalismo

No Rio Grande do Sul no século 17, viviam cerca de 40 povos indígenas. Hoje existem quatro: Kaingang, Guarani, Charrua e Xokleng. Séculos depois que as caravelas de Pedro Álvares Cabral aportaram em Porto Seguro, os quatro povos reivindicam aquilo que lhes foi arrebatado na conquista feita a ferro e fogo: terra, moradia e liberdade.

“Precisamos de terra demarcada e garantida. Pra plantar, pra viver em liberdade”, reclama o cacique André Guarani, de Maquiné/RS. “Não somos assistidos pela Funai. Falta estrutura para moradias e acesso à terra”, concorda Angela Charrua, da aldeia do Lami, no Sul de Porto Alegre. “Queremos o nosso território, a nossa terra, a nossa mãe de volta. Queremos reconhecido o nosso direito de morar e viver na nossa casa”, repercute a cacica Cullung Veitchá Teie, coordenadora da etnia Xokleng na aldeia de São Francisco de Paula/RS.

“Lembrança de terror e morte”

“Autonomia, livre determinação e sustentabilidade” é a principal preocupação do povo Kaingang, o mais numeroso do Rio Grande com aproximadamente 30 mil pessoas. Quem cita é Fernanda Kaingang, nascida em chão indígena e hoje formada em direito. Fernanda comenta que o chão onde sua gente vivia foi expropriado e entregue aos imigrantes sem terra que fugiam da fome e das guerras na Europa do século 19.


Fernanda Kaingang: “Muito antes do Brasil ser Brasil nós já estávamos aqui. O que celebramos é a nossa resistência, é nossa resiliência” / Foto: Arquivo pessoal

Também foram usadas para a reforma agrária. “Hoje, a situação do povo Kaingang é de violência e conflito, devido ao arrendamento ilegal”, repara. Ela se refere à prática ilegal de uso da terra ancestral por brancos favorecidos por lideranças indígenas.

O panorama então não anima nenhuma comemoração embora este mês abrigue o Dia do Índio, 19 de abril. “Esta data foi inventada por não indígena. Todo dia é dia do índio”, reage o cacique dos Guarani, a segunda etnia mais populosa no estado.

“Não é data de comemorar. É uma lembrança do terror e da morte dos nossos parentes”, reforça André. “Não há o que comemorar uma vez que estamos perdendo nossos espaços e o direito à terra”, diz Angela Charrua.

“Muito antes do Brasil ser Brasil nós já estávamos aqui. O que celebramos é a nossa resistência, é nossa resiliência”, acentua Fernanda. E emenda: “Celebramos o fato de serem 305 povos remanescentes do maior massacre que a história já viu e que os nossos livros de história não contam. É um crime de lesa humanidade que não terminou”.

E tudo ficou pior com um governo que ostensivamente desrespeita e atropela os povos originários.

“Ele é um homem que não tem coração”

“Somos muito maltratados. Está tentando (o governo Bolsonaro) acabar com os povos indígenas. Mas ele não vai conseguir. Estamos vivos”, protesta André. “Desde quando foi visto ou publicado o acesso dos charruas a projetos do governo federal?”, indaga Angela.

“Bolsonaro quer acabar com as terras tradicionais dos povos indígenas e também acabar com os indígenas”, ataca Cullung Veitchá Teie. Para a cacica dos Xokleng, o presidente “fez de tudo para arrancar os indígenas dos seus territórios para mandar matar também onde está acontecendo a retirada de minérios dentro da reserva indígena”. E define: “Ele é um homem que não tem coração, que para ele não existe indígena, nem negro e nem pobre, essa é a realidade de hoje”.


Cullung Veitchá Teie: “Bolsonaro quer acabar com as terras tradicionais dos povos indígenas e também acabar com os indígenas” / Foto: Alass Derivas | @derivajornalismo

“Carta branca para a violência”

Na opinião de Fernanda, não se pode dizer que Bolsonaro mentiu. Argumenta que, na sua campanha, disse que não demarcaria um centímetro de terra indígena ou quilombola. “Tem havido uma carta branca de impunidade para a violência”, critica. “É violência direta. É genocídio assumido, declarado”, acrescenta. “Voltamos ao período do extermínio que marca lá o início do confronto, do contato entre povos indígenas e essa sociedade dita superior”, analisa. “Há 500 anos, a nossa realidade não é exatamente fácil. Mas o governo Bolsonaro representa um retrocesso em todas as áreas”.

O presidente é questionado também sobre sua foto posando com um cocar. “Quem colocou o cocar na cabeça dele não respeita nem suas raízes e nem seus antepassados”, aponta Angela. “Nosso cocar - agrega - tem luta de mulheres, crianças, juventude e nossos anciãos. Não pode ser desconfigurado por um não indígena que é contra os próprios indígenas”.


André Guarani: “Somos muito maltratados. Está tentando (o governo Bolsonaro) acabar com os povos indígenas. Mas ele não vai conseguir. Estamos vivos” / Foto: Mirella Rabaioli

No Rio Grande do Sul, a maior concentração de florestas coincide com as áreas indígenas. André Guarani tem sua explicação para o caso. “Nosso papel é cuidar da floresta”, justifica. “Ela nos dá o sustento da vida. Nossa luta é manter a floresta em pé. Não é só pra nós mas pra humanidade. É isso que os não indígenas deveriam entender e não estão entendendo”.

“O chão que pisamos é uma tatuagem na nossa pele”

“Temos na nossa ancestralidade charrua um enorme cuidado pelas florestas, pela nossa mãe terra”, repara Angela. “O chão que pisamos é sagrado para os charruas pois será sempre marcado para nós como uma tatuagem na nossa pele”. Fernanda acrescenta: “As fotos dos satélites mostram que as principais áreas de biodiversidade no Rio Grande do Sul e no Brasil coincidem com terras indígenas”. E descreve: “A relação que temos com o território é de respeito, de equilíbrio. Somos parte da terra e a terra é parte de nós. Então, o nosso corpo é parte do nosso território. Quando o nosso território é agredido nós somos agredidos”.

E o que os indígenas poderiam ensinar à sociedade brasileira no século 21? “O que é mais valioso para nós não é a mercadoria, o dinheiro ou a ciência. É o bem-estar, o bem viver, o respeito ao próximo, ao outro, com as diferenças que ele tiver”, exemplifica Fernanda.

É uma visão muito próxima daquela de Angela. Ela explica que “o mundo não é apenas formado por dinheiro e ambição e que, enquanto a sociedade se portar assim, teremos cada vez mais pessoas doentes. Mas não só doença do corpo mas de uma alma vazia”.


Angela Charrua: "Nosso cocar tem luta de mulheres, crianças, juventude e nossos anciãos. Não pode ser desconfigurado por um não indígena que é contra os próprios indígenas” / Foto: Arquivo pessoal

Vinte terras regularizadas e 45 aguardando regularização

Trinta mil Kaingang, 2,5 mil Guarani, 150 Xokleng e 43 remanescentes Charrua. Esta é a população indígena do Rio Grande do Sul. São os dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Na informação do governo estadual, existem 20 terras indígenas regularizadas em solo gaúcho. Estão situadas principalmente no Norte e Noroeste. Outras 45 áreas aguardam regularização, na sua maioria (37) sob a rubrica “em estudo”.

No Brasil, existem hoje 1.296 terras indígenas. O número inclui 401 já demarcadas; 306 em alguma etapa do procedimento demarcatório; 65 que se enquadram em outras categorias que não a de terra tradicional; e 530 sem nenhuma providência para dar início à demarcação.

No placar das demarcações, Temer e Bolsonaro levam zero

Compare os números de todos os presidentes do período democrático no quesito demarcação de terras indígenas. Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988 fixou prazo de cinco anos para a demarcação de todas as terras indígenas do país. A realidade, porém, discorda do que a lei estabeleceu. Os dados são do CIMI.


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Edição: Marcelo Ferreira