Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Não vai ter golpe

"Todo o golpe de Estado, além de um ato de vontade exige certas condições objetivas, e não vejo nenhuma delas presentes"

Brasil de Fato | Santa Maria |
"Um golpe mal sucedido, a exemplo do que aconteceu na Bolívia em 2019, é o caminho mais curto para a prisão, e acho que nem o oficialato militar nem Bolsonaro se arriscariam a isso" - Agência Brasil

Embora este fantasma de que Bolsonaro estaria urdindo um golpe no Brasil, seja antes ou depois da eleição, esteja em alta e seja coerente com o seu discurso, seus atos e sua história, não creio que vá acontecer.

Esta é apenas a minha opinião e impressão. Um golpe no Brasil neste momento seria de alto risco, e não sei se ele ou as Forças Armadas e policiais estariam dispostos a correr. 

Todo o golpe de Estado, além de um ato de vontade exige certas condições objetivas, e não vejo nenhuma delas presentes no momento.

- Não há condições políticas: politicamente, Bolsonaro está nas mãos do Centrão, e a este não interessa o Golpe. O Centrão vive de sangrar governos eleitos vendendo governabilidade em troca de fatias do orçamento público e de cargos na administração pública e nas estatais. Então, um governo que impõe a governabilidade pela força não pode interessar ao Centrão, porque não precisaria dos seus serviços; aliás, talvez nem o Congresso, o habitat natural do Centrão, sobrevivesse a um golpe, de modo que para parlamentares assim, fisiológicos, apoiar um golpe é como botar fogo na própria casa.

- Não há condições jurídicas: em 1964 o STF capitulou ao golpe, apenas três ministros foram cassados por se contraporem às medidas mais duras do Regime, como o AI-5. Mas, da forma como a coisa está desenhada agora, talvez até porque o alvo principal do ataque às instituições que está sendo perpetrado sejam os próprios tribunais superiores, os ministros parecem estar muito mais fechados em defesa dos tribunais, por questões de sobrevivência. Eles têm consciência dos riscos que correm e têm agido para tentar desarmar qualquer possibilidade de ruptura institucional, sob o risco de serem as primeiras vítimas.

- Não há apoio na sociedade civil e da mídia corporativa: tanto o golpe militar de 1964 como o parlamentar de 2016 foram precedidos de grandes manifestações populares, de apoio de algumas organizações da sociedade civil e de organizações empresariais, o que não se vê atualmente. Também não se vê apoio dos grupos de mídia, ao menos não de forma coesa e declarada, como ocorreu nos golpes anteriores.

- Não há condições geopolíticas: o golpe militar de 1964 teve amplo apoio dos EUA, como já é bastante conhecido, inclusive com interferência direta da CIA.

Foi o período dos golpes militares na América Latina, o que acabava sendo legitimado no contexto das disputas geopolíticas dos dois grandes blocos da Guerra Fria. Num mundo polarizado, independentemente do lado em que o país estivesse, acabava por se colocar sob o abrigo de uma das superpotências, que reconheceria e apoiaria seus atos. Hoje, ao contrário, um governo erigido sobre um golpe clássico, baseado nas forças armadas, seria rapidamente levado ao isolamento internacional.

É verdade que o imperialismo ainda existe, mas hoje ele não vale mais de regimes autoritários derivados de golpes contra a soberania do voto para defender seus interesses. Ao contrário, eles investem contra as democracias que não os servem usando os próprios instrumentos que elas têm, seja pela “lawfare”, que captura o sistema judiciário para perpetrar perseguições políticas, ou pela chamada “guerra híbrida”, que derruba governos eleitos e constrói governos fantoches se valendo, sobretudo, da manipulação das redes sociais, como aconteceu no Brasil entre 2013 e 2016. De qualquer forma, golpes com cara de golpe, focinho de golpe, orelha de golpe e que atendam pelo nome de golpe são anacrônicos, não cabem mais no repertório geopolítico ocidental.

- Por fim, acho que também não há apoio dos militares, das Forças Armadas da ativa: veja, um golpe mal sucedido, a exemplo do que aconteceu na Bolívia em 2019, é o caminho mais curto para a prisão, e acho que nem o oficialato militar nem Bolsonaro se arriscariam a isso. Muitos dizem que Bolsonaro correria este risco caso se convencesse que perderia a eleição, pois a probabilidade de ser processado e preso após sair da Presidência é grande face aos inúmeros crimes que supostamente teria cometido antes e durante o mandato. Mas, olha, uma coisa é ser processado em juizados de primeira instância após o mandato, com direito aos inúmeros recursos e instâncias até o processo ser transitado e julgado, outra é ser preso imediatamente por atentado contra a democracia e o Estado de Direito, numa tentativa malsucedida de golpe. Creio que não seriam inconsequentes a este ponto.

Além disso, os militares das forças armadas vivem numa bolha, uma bolha privilegiada, corporativista, protegida em relação ao resto da sociedade, cheia de benefícios, aposentadoria integral e precoce, pensão para filhas e cônjuges, plano de saúde, vilas militares para residir, vigilância 24 horas, hotéis de trânsito, refeições regadas a picanha e vinho fino, enfim... Por que arriscariam estes privilégios para apoiar um golpe com desfecho absolutamente incerto? Ocupar cargos e engordar os vencimentos em um governo eleito como fazem agora é uma coisa, eles não só aceitam como desejam, mas participar de um golpe com o risco de ver a sua bolha furada e seus privilégios esvaírem-se, comprometendo o próprio conforto e de suas famílias, é outra bem diferente.

Por isso não acredito no golpe. Pra mim, Bolsonaro é um blefe, e este é só mais um, e dos grandes. 

Ele não é tolo, é verdade, tudo o que ele faz parece ter um sentido estratégico, mas não necessariamente o que é anunciado ou o que faz crer que seja. Ele desdenhou da pandemia não porque não acreditava no seu potencial destrutivo, mas pra não precisar implementar políticas públicas sanitárias, sociais e econômicas. Depois contrariou o distanciamento social pra poder jogar a culpa do tombo econômico brasileiro nos governadores e prefeitos. Na sequência, atacou o STF pra poder dizer que o Tribunal é responsável pelo fracasso do seu governo, porque não o deixou governar. Fez propaganda da Cloroquina para incentivar as pessoas a irem às ruas e assim se colocar “ao lado do povo” e contra os governantes locais e os “ditadores de toga”. Depois que a CPI comprovou que a Cloroquina era um placebo contra a covid e que as vacinas, que é o que realmente funciona, foram negligenciadas pelo Governo, ele virou antivacina para criar um excludente de ilicitude, e assim poder dizer que sua inação, na verdade, não era negligência, era convicção mesmo, porque haveria versões controversas a respeito. 

Agora, ele investe contra o STF e o TSE, na minha opinião, não para criar condições para um golpe, mas de novo por razões de estratégia eleitoral e política.

Quem analisa as redes sociais bolsonaristas tem vislumbrado uma inflexão em relação ao que eram até bem pouco tempo. De um lado, elas estão muito mais intensas e ativas do que meses atrás, e de outro, têm emulado uma forma de atuação que mescla atividade orgânica e publicidade profissional, que pretende recriar a onda bolsonarista que elegeu Bolsonaro em 2018. 

Neste sentido, os ataques frequentes e incessantes ao TSE e ao STF tem várias funções estratégicas:

- Primeiro, de criar um inimigo comum que una a sua base: o STF que soltou Lula, que persegue bolsonaristas e que impede o presidente de governar; o TSE que supostamente fraudou as eleições de 2018 e pretende roubar nas urnas a de 2022.

- Segundo, de recriar e reforçar a posição de “mito” de Bolsonaro, que enfrenta o sistema e os poderosos, algo que não pode mais ser dirigido à oposição nem ao Congresso, uma vez que agora ele mesmo é o presidente, e o Centrão, que manda no Congresso, faz parte do seu governo. Sobrou para os tribunais superiores, então, fazerem as vezes de representantes simbólicos do “sistema”, que impede que ele governe e que sabota a vontade do povo.

- Terceiro, de oferecer uma desculpa para o fracasso do seu governo, criando a narrativa de que ele não implementou seu Programa nem fez as transformações a que se propôs porque o STF não o deixou governar, terceirizando as prerrogativas do presidente para governadores e prefeitos.

- E quarto, de mudar a pauta política, que deveria estar concentrada em debater a paralização da economia, a perda de investimentos privados, a volta da inflação, o desemprego, a crise social e a corrupção no governo, mas que por conta dos ataques incessantes ao TSE e ao STF não consegue se livrar da agenda que o próprio Bolsonaro cria. E assim ele controla a agenda política, e quem controla a agenda tem mais poder.

Então, para mim esta sanha de afrontar diuturnamente o TSE e o STF parece mais uma estratégia eleitoral, o que sugere que ele voltou a acreditar e investir na reeleição. Mas, se tudo der errado e ele for derrotado em outubro, terá também construído a narrativa perfeita para a própria derrota, a alegada fraude nas eleições, posando como o mito vitimado pelo sistema, e que se apresentará para continuar liderando suas hordas neofascistas, que ainda que minoritárias representam uma fatia considerável do eleitorado. Esta também é uma forma de se proteger futuramente, visto que além de numerosas, barulhentas, violentas, estas hordas estarão armadas e boa parte delas bem posicionadas nas instituições policiais e nas forças armadas. Ele está criando, então, o próprio salvo-conduto futuro.

Bem, mas embora eu não creia que vá haver um golpe oficial, não significa que ache que a eleição vá transcorrer normalmente. Ao contrário, é bem possível que ela seja marcada pela violência, pelo conflito civil, pela arruaça, pelas tentativas de cerceamento, de virada de mesa, e até de insurreição da parte de bolsonaristas. A exemplo do que aconteceu nos EUA na última eleição. Mas não acho que será algo vertical e centralizado como um golpe, e se ocorrerem episódios graves e o Bolsonaro for derrotado nas urnas, tenho certeza de que, assim como fez o seu ídolo estadunidense, ele tentará se distanciar dos acontecimentos, tirar o corpo fora e mais uma vez terceirizar as responsabilidades, como sempre fez.

Espero não estar errado, mas na minha opinião não se deve cair nesta armadilha bolsonarista do temor de um golpe; a estratégia deve ser continuar com as pautas relevantes para os brasileiros, aquelas que, a meu ver, acabam definindo o seu voto.

* Renato Souza, professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko