ABANDONO

Omissão da Funai possibilitou invasão de garimpeiros em aldeia no Vale do Javari

Lideranças expõem terror vivido por indígenas e dizem que Funai só deu assistência após repercussão na imprensa

Brasil de Fato | Lábrea (AM) |

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Moradores registraram festa de garimpeiros em aldeia invadida - Reprodução/CTI

A comunidade Jarinal, na Terra Indígena Vale do Javari (AM), está sob invasão de garimpeiros ilegais desde o final de abril. A invasão poderia ter sido evitada, se uma base de proteção prevista pela Funai tivesse entrado em operação. 

A avaliação é de lideranças indígenas, entre eles o vice-coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Thoda Kanamari, que vê omissão na conduta do órgão indigenista estatal.

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”Na região do Jarinal não tem pessoas fazendo a barreira. Por isso que os garimpeiros estão entrando na comunidade”, afirmou ao Brasil de Fato

A presença dos garimpeiros foi tornada pública pela Univaja em 20 de abril. O integrante da organização diz que as primeiras providências só foram tomadas após a repercussão na imprensa. 

“A Funai já está indo para esse local, junto com o movimento indígena. Estou vendo que a nossa denúncia, com a ajuda dos jornalistas, está fazendo efeito”, atesta. 


Aldeia Jarinal: Funai contratou funcionários, mas base de proteção não foi operacionalizada / Reprodução/Cimi Norte I/José Rosha

Isolamento e abandono

Banhada pelo rio Jutaí, a Jarinal é lar de cerca de 150 indígenas Kanamari e  Tyowük Dyapah. O trajeto até as cidades mais próximas pode demorar até cinco dias, entre trechos de caminhada e de barco.

A falta de presença do Estado em uma área geograficamente isolada favorece a atuação dos garimpeiros, que promovem festas e incentivam o consumo de bebida alcoólica. 

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“Nossas jovens e mulheres indígenas estão correndo o risco o tempo todo de abuso sexual”, narra uma carta da Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaja).

“Estamos à mercê de doenças por causa da água contaminada, estamos à mercê de alcoolismo e drogas dentro da aldeia, do desmatamento de nossas árvores, de nossas florestas, nossos líderes indígenas estão correndo risco de manipulação política por parte dos garimpeiros”, continua o documento. 

Funcionários contratados, mas sem lugar para trabalhar 

Pressionada por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), a Funai lançou em outubro do ano passado um processo seletivo com a abertura de 776 vagas temporárias.

Os funcionários deveriam atuar na proteção de povos isolados e de recente contato. Conforme o edital, 30 deles iriam atuar na Base de Proteção Etnoambiental (BAPE) Jarinal, que nunca saiu do papel.

O processo seletivo foi concluído e as contratações foram efetuadas, mas o vice-coordenador da Univaja afirma que não há presença fixa da Funai na região. 

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Thoda viu, em fevereiro deste ano, uma instalação ampla e conservada, próxima à Jarinal, com estrutura adequada para receber os funcionários, mas abandonada.

“O Jarinal foi contemplado com esses funcionários no edital, mas a Frente de Proteção [Etnoambiental da Funai] não mandou ainda essas pessoas para lá. A Frente de Proteção fala que é muito gasto e não tem recurso. Então a Funai sempre coloca dificuldade para gente. A casa já existe, mas as pessoas é que não estão lá para trabalhar”, descreveu. 


"A barreira de Jarinal era para estar funcionando", diz Thoda / Acervo pessoal

Vulnerabilidade extrema

A associação que representa os Kanamari teme prováveis confrontos e mortes envolvendo os indígenas Tyowük Dyapah, que também habitam a região. Por serem povos de recente contato, são ainda mais vulneráveis aos aspectos predatórios do garimpo ilegal. 

Povos com essa classificação já passaram pelo processo de contato com não indígenas, mas não assimilaram completamente o modo de vida da sociedade capitalista. 

Os órgãos da Funai responsáveis pelos indígenas de recente contato são as Frentes de Proteção Etnoambientais (FPE). 

Segundo a da Akavaja, a vice-presidente da entidade, Feliciana Rodrigues Kanamary, levou o caso imediatamente à FPE local. Como resposta, foi orientada a procurar uma unidade da Funai em Eirunepé, a três dias de viagem da comunidade invadida. 

Abandono se repete 

A contratação de funcionários para trabalhar em bases da Funai inexistentes não ocorreu apenas no caso da aldeia Jarinal. 

Em março deste ano, o Brasil de Fato revelou que o mesmo havia acontecido com a BAPE Mamoriá, prevista para ser construída na região do médio rio Purus, no sul do Amazonas.

A instalação, onde 12 funcionários foram contratados para trabalhar, seria vital para resguardar a integridade de um novo grupo de indígenas isolados, identificado por servidores de carreira da Funai fora de áreas demarcadas.

A negligência da Funai com a proteção desses povos foi denunciada por organizações indígenas e indigenistas, além do Ministério Público Federal (MPF), que alertam para o risco de genocídio

A iniciativa da contratação dos mais de 700 funcionários não partiu da Funai. O processo seletivo foi uma resposta a uma decisão cautelar do ministro Luís Roberto Barroso, do STF.

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A ordem judicial foi expedida em julho de 2021, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, protocolada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e por seis partidos políticos. 

Conforme o edital, a principal atribuição desses servidores é atuar “na implementação das barreiras sanitárias e postos de controle de acesso como forma de medidas de prevenção à COVID-19 nas Terras Indígenas, sobretudo às que contam com presença de povos indígenas isolados e de recente contato”.

Ainda de acordo com o documento, todos os contratados deveriam atuar “em barreiras sanitárias (BS) e postos de controle de acesso (PCA) para prevenção da COVID-19 nos territórios indígenas”. 

Ambas as regiões, no entanto, seguem sem restrição de acesso. Procurada pela reportagem, a Funai não respondeu por que as bases não saíram do papel. 

Mortalidade infantil 

Na comunidade Jarinal, no Vale do Javari, mineradores ilegais já haviam sido expulsos por uma operação policial há três anos. A ação da Funai, do Ibama e da Polícia Federal destruiu 60 balsas de garimpo. 

O temor é que a invasão possa agravar novamente a saúde dos moradores da Jarinal. Segundo o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), eles enfrentaram recentemente um cenário de elevação da mortalidade infantil.

Entre 2012 e 2019, 17 crianças e seis adultos Kanamari e Tyowük Dyapah morreram na aldeia Jarinal, a maioria vítimas de problemas respiratórios. As doenças, segundo o CTI, foram levadas pelos garimpeiros. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho