Rio Grande do Sul

Segurança Pública

Quem são as facções e por que estão em guerra em Porto Alegre

Ordens de execuções a partir de três penitenciárias levam tensão e morte a 19 bairros da capital gaúcha

Vista aérea da Grande Cruzeiro, na zona sul da capital: população de 19 bairros refém da disputa por territórios entre quadrilhas - Foto: Igor Sperotto

Postos de saúde e escolas fechados, toque de recolher, tiros e mortes, inclusive de inocentes. A situação, vivida por comunidades de pelo menos 19 bairros de Porto Alegre desde o dia 14 de março, não é nova, mas, a cada repetição, deixa comunidades inteiras acuadas e acaba alternando a rotina de muitas pessoas que nada têm a ver com os conflitos. Em pouco mais de um mês, pelo menos 25 pessoas foram assassinadas e dezenas ficaram feridas, em crimes interligados

A atual onda de homicídios, de acordo com o que foi apurado por órgãos de segurança, tem como motivo uma dívida que uma das facções criminosas que operam o tráfico de drogas no Rio Grande do Sul teria com outra. A determinação para as execuções teria partido de líderes recolhidos ao sistema penitenciário, principalmente na Cadeia Pública de Porto Alegre, conhecida pelo seu antigo nome, Presídio Central.

O grupo inadimplente é o V7, que, recentemente, obteve o status de facção. Nasceu como uma quadrilha de traficantes, na Vila 27, bairro Santa Tereza, dentro do complexo de vilas conhecido como Grande Cruzeiro, na zona Sul de Porto Alegre, a cerca de 10 minutos do Centro Histórico da Capital.

Para serem considerados facção, além de ter expandido seus tentáculos por praticamente todas as regiões da cidade, os V7 conquistaram uma galeria no Presídio Central. Os credores pertencem à facção dos Manos, a mais antiga e situada no mais alto grau de organização entre os grupos atuantes no Rio Grande do Sul. Teve origem no Presídio Central nos anos 1990 e firmou sua base territorial na região do Vale do Rio dos Sinos, situação mantida, mesmo com a expansão do grupo para praticamente todo o estado.

A dívida, de cerca de R$ 2 milhões, conforme o apurado, corresponde a uma carga de drogas vendida pelos Manos, que também atuam como atacadistas, aos V7. Devido à mercadoria ter sido apreendida pela polícia, os devedores teriam se negado a pagar por ela.

No entanto, em um mercado em que cobranças e contestações de dívidas não podem ser tratadas por meio de cartórios ou do Poder Judiciário, as disputas por meio de violência, ao custo de vidas, acabam prevalecendo.

“Em todo o contexto de mercados ilegais nos quais há vários grupos, disputas por territórios não cumpridas acabam provocando confrontos armados”, analisa o professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, doutor em Sociologia pela Ufrgs, com pós-doutorado em Criminologia pela Universitat Pompeu Fabra (Espanha), e especialista em Segurança Pública.

Rodrigo, 16 anos, a primeira vítima

E o confronto armado foi deflagrado. As determinações de ataques e contra-ataques partiram de líderes dos dois grupos, que estavam no Presídio Central. Uma das primeiras vítimas da guerra foi o estudante Rodrigo Fagundes Cabreira, 16 anos. Na noite de 17 de março, homens armados, integrantes dos V7, invadiram a Vila Planetário, no bairro Santana, onde Rodrigo morava, e atiraram indiscriminadamente, em pessoas que estavam na rua.

Além do estudante, que não tinha nada a ver com as disputas e que, segundo seus familiares, iniciaria um estágio no Palácio da Polícia no dia seguinte, outras duas pessoas foram atingidas por tiros, de raspão. Inocentes também sofrem com limitações no direito de ir e vir e com o medo provocado pelos conflitos.

“Meu filho ficou três dias sem poder ir à escola”, conta uma moradora da Vila Funil, no bairro Tristeza, na zona Sul.

Dentro do atual contexto de disputas armadas entre facções houve uma mudança no tabuleiro da guerra do tráfico em relação ao período de confrontos anterior, entre 2016 e 2017.

Porto Alegre, Viamão, Alvorada e Sapucaia do Sul ficaram entre as 100 mais violentas do país, enquanto que Canoas, Gravataí, Cachoeirinha, São Leopoldo e Novo Hamburgo apareceram entre as 200, conforme o Atlas da Violência divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Daquela vez, a guerra, considerada o pior momento do estado no que diz respeito à criminalidade, tinha, de um lado, a facção Bala na Cara e, de outro, uma coalizão de quadrilhas, liderada pelos V7, que ficou conhecida como Antibalas. Os Manos, por sua vez, firmaram um pacto de não agressão com os Antibalas e não se envolveram na guerra. Decapitações e esquartejamentos viraram rotina nas disputas, naquele período.

Desta vez, quem ficou na espreita foi a Bala na Cara. Aparentemente, a facção, criada no bairro Bom Jesus, na zona Leste de Porto Alegre, que, em sua trajetória, já foi de assaltos a joalherias ao tráfico de drogas e braço armado dos Manos (como mercenários, matando por encomenda), não se envolveu diretamente na briga pela dívida. Mas tentou tirar proveito do enfraquecimento dos V7 diante da disputa com os Manos, para conquistar novos territórios, principalmente o vasto e altamente lucrativo complexo da Grande Cruzeiro.

“Os conflitos são inevitáveis. Em São Paulo, houve uma redução significativa nos casos de homicídios por conta do monopólio obtido por um dos grupos chamados de facções, que passou a regular os assassinatos”, argumenta o professor Ghiringhelli.

No caso citado por ele, o Primeiro Comando da Capital (PCC) conquistou o comando de boa parte das prisões e das regiões dominadas pelo crime nas ruas. A partir disso, além de não ter a necessidade de disputar territórios, estabeleceu que homicídios só podem ser praticados mediante autorização da facção.

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Terror nas ruas e na cadeia

Em meio à guerra nas ruas, um conflito entre facções deixou sete presos feridos, no Presídio Central, no dia 19 de abril. Os envolvidos eram de duas galerias, cada uma controlada por uma facção diferente.

Embora a direção da casa prisional não confirme, a disputa foi uma consequência da guerra nas ruas. O episódio foi uma quebra de pacto firmado há décadas entre os grupos criminosos, a direção do presídio, com o aval de autoridades do Poder Judiciário e do Ministério Público.

“Desta vez, houve inclusive consequências no sistema prisional. Esses conflitos antes ficavam do lado de fora”, observa Ghiringhelli. Por conta dos pactos, apenados, especialmente líderes, sentiam-se mais seguros nos presídios do que nas ruas.

Em mais de uma ocasião, presos procuraram a Vara de Execuções Criminais para solicitar a regressão do regime semiaberto, em que se consideravam ameaçados, para o fechado, no qual assassinatos e atos de rebeldia são reprimidos pelas próprias lideranças.

Com a manutenção da ordem em suas galerias (onde ficam confinados os presos no Presídio Central, com as portas das celas abertas, devido à superlotação), as facções recebem o salvo conduto de comandar e ditar a dinâmica desses espaços. Aproveitam-se disso para transformá-los em seus escritórios do crime e, a partir deles, comandar o crime nas ruas.

Guerra comandada de dentro das cadeias

Investigações desenvolvidas principalmente pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e pelo setor de Inteligência da Polícia Civil gaúcha apontaram que líderes de facções, presos em três casas prisionais diferentes, estão por trás da guerra nas ruas.

Por conta disso, no dia 13 de abril foi deflagrada pela cúpula da Segurança Pública do Estado a Operação Fatura, que transferiu 10 apenados do Presídio Central, da Penitenciária Estadual de Porto Alegre e da Penitenciária Modulada Estadual Charqueadas (Pmec) para a Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc), onde, em tese, o acesso a telefones celulares é mais difícil.

“Foi feito um trabalho contínuo e integrado das forças de segurança pública. Isso, mediante três estratégias específicas, como a saturação das áreas conflagradas, investigação criminal qualificada e intervenção prisional”, argumenta a diretora do DHPP, delegada Vanessa Pitrez.

Pelo policiamento ostensivo, o comandante-geral da Brigada Militar, coronel Claudio Feoli, que assumiu o cargo um mês antes do início dos conflitos, também ressalta o trabalho policial. “Os policiais estão percorrendo os locais dia e noite e, também, no caso de alguma busca eventual a algum criminoso”, afirma Feoli.

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Menos força, mais inteligência

Para Ghiringhelli, os órgãos de segurança agem corretamente diante das circunstâncias. Não apenas no conflito atual, como em casos anteriores. Para o sociólogo, mudanças na forma de atuação das polícias têm sido responsáveis pela queda nos indicadores criminais, fator registrado especialmente a partir de 2018.

“A política de segurança pública tem sido bem conduzida. Houve um investimento para uma polícia que atua mais com a Inteligência. Qual o papel da segurança pública? Evitar que a população em geral seja afetada. Com a Inteligência, investigações sobre os grupos, mapeamento, verificação e responsabilização de lideranças que estejam ordenando a eliminação de rivais, aumento de efetivo nas áreas conflagradas, as polícias dão uma resposta ao crime”, analisa.

Por outro lado, Ghiringhelli reconhece que as medidas, embora contemplem o que é exigido das polícias, a falta de políticas e projetos para médio e longo prazos tornam o problema cíclico.

“Há coisas que vão além da segurança pública, como a política de drogas e a necessidade de reformulações no sistema prisional. Há também a questão de emprego e renda, da juventude, da desconexão dos jovens destes mercados ilegais”, elenca.

* O jornalista e escritor Renato Dornelles é autor do livro-reportagem Paz nas Prisões, Guerra nas Ruas (Falange, 264 p.), juntamente com Tatiana Sager mergulharam de cabeça na mais degradada das cadeias do Rio Grande do Sul, o Presídio Central, rebatizado de Cadeia Pública pela Secretaria de Segurança – uma prisão há décadas abandonada pelo Estado e sob o controle das fações do crime.

Edição: Extra Classe