Rio Grande do Sul

DESPREZO À MEMÓRIA

Artigo | A direita na contramão da história de Porto Alegre

"Sem enfrentar problemas sociais urgentes ou manter antigos prédios, preocupação hoje é com a especulação imobiliária"

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Usina do Gasômetro está fechada desde 2017 para reforma que já teve conclusão adiada três vezes - Foto: Joana Berwanger/Sul21

É impressionante como as forças políticas conservadoras não gostam da cidade Porto Alegre e do seu povo maravilhoso. Logo após o golpe de Estado de 1964, o Grande Hotel, que estava desgastado, incendiou. Lindo prédio, atraente e da história, encantava em seu estilo arquitetônico. Ali muitos atos públicos foram feitos e, também, grandes reuniões com seus moradores e com representantes da sociedade como senadores, trabalhadores, artistas, intelectuais e muitos outros. Era um prédio que embelezava a praça, foi muito significativo na organização urbana da cidade e acumulou valores significativos da nossa história.

Não era só pelo seu significado cultural que se lastima o fato de queimar o prédio, mas porque imediatamente após foi feita a demolição do prédio. Logo depois uma organização empresarial, pouco antes criada, teve a iniciativa de construir um shopping.

Estou falando de uma orientação que perdia o respeito ao prédio, mas que estava articulada com outras atividades como a qualidade da área urbana junto à Praça da Alfandega. Poucos anos após, em uma outra iniciativa, desta vez com concordância da própria Prefeitura da cidade e, evidentemente, seu prefeito, foram elevados os prédios dos bancos Banrisul e Caixa Econômica Federal, enormes edifícios na “beira” da área da praça pública.

Local de permanente participação com sentimentos das cidadãs e cidadãos. Inúmeras atividades culturais que ali são realizadas, encontros de amigos, namorados com muita alegria e, como faz parte da humanidade, o seu lado de tristeza. Um local em que o nosso querido poeta Mario Quitanda frequentava.

Uma vez assisti um senhor, que havia participado dos negócios, dizer com satisfação que eles conseguiram “tapar” prédios antigos do outro lado, inclusive do jornal Correio do Povo. Ele falava como deboche.

Estas iniciativas eram impulsionadas por orientações que surgiam de sociedades que tomavam iniciativas de concentrar o comercio e serviços. Por isso surgiu do incêndio do Hotel “criar” o shopping e “roubar” espaços, como fizeram os bancos que se apropriaram de áreas da praça de valor histórico.

Depois, mas logo após, continuou a prática sistemática de atuação da lógica urbanística reacionária, destruidora das condições de vida dos cidadãos, da história, da cultura, dos grandes valores humanos que uma cidade valorosa como Porto Alegre construiu em sua rica trajetória. Muito graves foram acrescentadas a estas atividades as “soluções” realizadas às atividades urbanas que o desenvolvimento propunha.

Um exemplo que gosto muito de citar são as nossas “grandes avenidas”, projetadas em 1928 e que combinam com a história de nossa sociedade e de seus cidadãos. Como a Cristóvão Colombo, que respeita a história dos migrantes, dos moradores, ao condicionar a sinuosidade de seu trajeto e permitir aos moradores transitarem nas calçadas, comprarem seus livros em livrarias, irem aos bares, restaurantes e muito mais - inclusive irem aos prédios maravilhosos de Theo Widesphan, aliás, morador do bairro. Avenidas muito melhores do que as de Paris de 1871, construídas larguíssimas para o exército ser rápido na repressão popular.

Outros exemplos são a Borges de Medeiros com sua arquitetura Art Deco e seu viaduto maravilhoso. É ótimo caminhar por ali. Depois temos a Osvaldo Aranha que simplesmente tem uma Universidade, o Instituto de Ensino, um parque doado pelo imperador Pedro II, suas feiras, o Pronto Socorro. Muito diferente com o que veio depois.

Surgiu um senhor nomeado como prefeito no município. Seu nome era Telmo Thomson Flores, ele tinha um projeto urbano com uma ideologia do pragmatismo. A época era muito concentrada no automóvel que dava “autonomia” às pessoas, “aproximava” as regiões da cidade, como eles diziam. Este delírio ao automóvel em grande parte era promovido pelas próprias empresas que, após o esgotamento da dinâmica economia do pós-guerra, saiam de suas sedes de produção e procuravam lugares como o Brasil. Afinal aqui o Estado doava terrenos para se instalarem, evitavam impostos e a mão de obra era muito barata. O mercado não era muito grande, mas já o suficiente. Para estimular, estes prefeitos facilitavam de diversas maneiras, por exemplo, o tráfego urbano.

As consequências afetaram profundamente todas as cidades brasileiras que antes se industrializavam com orientações totalmente diferente. Na época do governo de Getúlio Vargas em continuidade, mas como podemos verificar fortes diferenças, por Juscelino Kubitschek. O êxodo rural foi um grande efeito social. Atingiu Porto Alegre e “estimulou” o surgimento da sua Região Metropolitana.

Mas a situação não parou por aí. A nova “visão de urbanismo”, altamente destruidora, que desconsiderava as pessoas, começou a construção de túneis, elevadas, pontes. Um exemplo clássico foi esconder o belo Edifício Ely, projetado por Theo Wiederspahn, passando em sua frente avenidas, automóveis, ônibus e até a rodoviária de Porto Alegre.

Talvez, para coroar esta orientação conservadora, houve a proposta deste senhor nomeado que era demolir o Mercado Público para construir uma imensa garagem e permitir que as pessoas “chegassem” ao Centro. Como sabemos o Centro é um concentrador de história e valores da cidade de Porto Alegre. Felizmente várias entidades da sociedade, intelectuais pressionaram este sr. Telmo a recuar em seus delírios até que deixasse o prédio de 1869 vivo.

Por último, mas não por fim, quero observar que este mesmo governo promoveu uma “solução” para a moradia popular, uma alternativa que havia sido criada na Europa na sua reconstrução, depois da segunda guerra, para a periferia. Jogar os pobres bem distantes da cidade constituída. Sem os necessários serviços como saúde, educação, trabalho e muitos outros, inclusive com precário transporte público. Esta orientação começou com a Restinga. Uma orientação que foi construída à enorme distância com sua população avisada em uma ocasião onde no dia seguinte seriam levadas, portanto que se preparassem. Lugares onde grandes nomes de Porto Alegre haviam nascido, como Lupicínio Rodrigues, tiveram seus moradores levados. E não podiam reclamar.

Mas esta ideologia e condução política continuou. Como exemplo, o impulso foi bem mais da especulação imobiliária e o senhor impulsionador foi o candidato a prefeito em 1992, que no debate dizia: “eu não sou contra estas obras e atividades populares, só que isto é um feijãozinho com arroz. A cidade deve ser impulsionada por túneis, elevadas, grandes obras”. Como vemos a orientação continuava. Hoje ele é secretário do governo do sr. Melo, eleito recentemente.

O modelo está de volta com força

Agora as obras estão combinadas com uma reforma do Centro de Porto Alegre. Foi feito um Plano Diretor específico do Centro, o que já mostra um caráter destruidor por separar um bairro de toda a cidade. Neste sentido está sendo promovido que os prédios, muitos de estilos arquitetônicos definidos, possam ser demolidos e construídos novos com índices de construção bem mais elevados. Agora é o delírio sistemático da obra particular com apoio e promoção do Estado.

Hoje vivemos uma época de crise do Brasil. A população não tem trabalho, existe muita fome, a saúde está com a grave pandemia da covid e a Prefeitura concentrada na sua especulação imobiliária do centro de nossa querida cidade de Porto Alegre.

Ao mesmo tempo esquecem que tem pessoas com fome, desemprego e falta de moradia. Muitas pequenas e médias empresas quebram e é o próprio povo, sem apoio da Prefeitura, do governo do estado e do governo federal, que reage para sobreviver. É por estes motivos que temos muita gente recolhendo lixo e outros dormem na rua. Existem poucas novas empresas por iniciativas próprias, mas sem apoios estatais.

No governo anterior o objetivo maior era a privatização de todas as instituições da cultura. A partir deste primeiro passo estaria sendo cumprida a “orientação” da cultura do pensamento absoluto, sem divergência e único. Assim foi dito pelo diretor da cultura do Ministério do Turismo. Aqui era só cumprir a ordem. Felizmente houve uma forte resistência e eles perderam todas.

Hoje, sem enfrentar problemas sociais urgentes como moradia, alimentação, educação e outras graves questões, sem apoiar a manutenção de antigos prédios como a Casa de Cultura e a Usina do Gasômetro, a “preocupação” é especulação imobiliária. O mais importante de tudo nesta época de pandemia é explorar a Orla do Guaíba. Vender o terreno ao lado do estádio do Internacional para construir dois edifícios de inúmeros andares. Junto construir um conjunto de edifícios no Cais do Porto. E ainda, para “estimular” estas iniciativas, Porto Alegre terá uma super roda-gigante, como se isso fosse o que mais necessitamos.

É a política de quem não gosta do feijão com arroz porque é muito popular. A ideologia de quem quer “usar” o que foi desenvolvido na trajetória da história de nosso povo, de nossa cidade, ignorando as exigências na vida das pessoas. Utilizando valores do “empreendedorismo” para a cidade. Apresentam essas iniciativas conservadoras que só sabem destruir o que conquistamos para produzir o isolamento, o individualismo para as pessoas. Tudo isso para quem sobreviver na sua cultura porque as exigências sociais não perdoam e matam.

Mas não se esqueçam: em meio a esse governo a resistência também é forte!

* Urbanista e professor da Universidade de Caxias do Sul.

**  Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira