Distrito Federal

Combate à LGBTfobia

Rappers avaliam como o Hip Hop pode ser aliado às questões de gênero

"Não funciona mais o mundo que rechaça e deixa de incluir pessoas em qualquer espectro", diz Rico Dalasam

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Artistas do DF, Dree-k, Amaro e Realleza falam sobre arte, periferia, machismo e oportunidades - Fotos: Coletivo M.A

O movimento Hip Hop surgiu para contestar o preconceito às chamadas minorias e reconhecê-las. Se tornou um espaço de luta que cobra que este fenômeno social não se desdobre em ausências de direitos. Em forma de arte, são abordadas questões sociais e políticas como um alerta.

"A nossa sociedade, estruturalmente falando, carrega preconceitos intrínsecos a ela. Então quando a gente fala de tudo aquilo que não é padrão ocidental europeu, estamos falando de fobias. As dificuldades começam dentro da nossa própria casa. A primeira coisa que você tem medo é como os pais irão reagir", diz Realleza, rapper moradora do Sol Nascente, periferia do Distrito Federal que se reconhece como bissexual.

O Hip Hop no papel de ser aliado em debates sociais, não fica de fora na luta contra a fobia de gênero.

Segundo a Rede Trans Brasil, a cada 26 horas, aproximadamente, uma pessoa trans é assassinada no país. As pessoas que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros/travestis, queer, intersexuais, assexuais e pansexuais  possuem expectativa de vida de no máximo 35 anos. Essa pouca expectativa de vida é, em sua maioria, vivida com negação de direitos, à margem da sociedade com relações diretas com a prostituição, tráfico, violências sexuais e tantas outras agressões. 

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"O meu processo de aceitação foi bastante doloroso. Minha mãe me espancou e me expulsou de casa. Eu já tinha envolvimento com o crime. Mesmo com todo o preconceito existente na cultura, o rap me salvou. Eu escuto as músicas e também componho. Aprendo. Porém sou a provedora do meu sustento. Minha mãe me dizia que se eu quisesse ser lésbica, que eu me bancasse. Aos 15 anos de idade, e em um contexto de periferia, não temos muitas opções", revela Dree-k, 28 anos, rapper, mulher lésbica, moradora da Ceilândia, maior região administrativa do Distrito Federal.


Dree-k relata dificuldades de mulheres lésbicas dentro do Hip Hop / Foto: Coletivo M.A

Dree-k, que já cumpriu pena com privação de liberdade, relatou ainda as dificuldades em ser uma mulher lésbica, ex-presidiária e rapper.

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"O machismo e o preconceito foram determinantes para a pouca atuação das mulheres do rap em shows e projetos. Se for mulher LGBTQIAP+ é pior. A mentalidade machista no meio do rap abre espaço pra assédio sexual e moral.  Esses motivos afastam a mulher de uma carreira de sucesso. Se não nos rendermos a isso, ficamos para escanteio. Deveríamos ter os mesmos acessos e oportunidades para sermos provedoras do nosso sustento por meio da música".

Chegada

Mesmo com história de décadas, só em 2014 que o Hip Hop Nacional teve sua entrada oficial na comunidade LGBTQIA+. O paulista Rico Dalasam é considerado o primeiro rapper gay do país.


Rico Dalasam abriu os caminhos para a comunidade LGBTQIA+ no rap / Reprodução Instagram

Para ele, o movimento LGBTQIAP+ não é um subgênero da música rap, mas uma das manifestações culturais que o Hip Hop influencia.

"O espaço que está sendo fundado não é um subgênero e nem uma variação dentro do Hip Hop. É uma manifestação cultural que tem influências no Hip Hop, mas cruza com outras coisas culturais nacionais. Ele tem diversos outros fundamentos que vieram antes. Talvez o candomblé em algumas regiões, as coisas de rua, e as influências diversas de outras manifestações culturais como a dança. Fazem agora seis anos do meu primeiro álbum de nome “Modo Diverso”, o primeiro registro LGBTQIAP+ do Hip Hop", aponta Rico.

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Invisibilidade

Por muito tempo, o Hip Hop evitou pautar o tema e reconhecer que nos lugares comprometidos pela ausência de políticas públicas também estão as pessoas que se identificam como LGBTQIAP+.


Amaro reforça que "o rap se constrói com essa voz em defesa do oprimido, mas ele é reflexo da sociedade". / Foto: Coletivo M.A

"É um sentimento de invisibilidade dentro da invisibilidade. O rap se constrói com essa voz em defesa do oprimido, mas ele é reflexo da sociedade. Então ele também projetou a opressão contra nós. É como se a comunidade LGBTQIAP+ não existisse na quebrada durante muitos anos. Agora estamos em movimento e dizendo que sempre existiu. A gente é uma geração que está construindo essa pauta dentro da cultura Hip Hop", reflete Amaro, rapper residente na Samambaia, região administrativa do Distrito Federal. 

Presente no diálogo, Realleza completa que “a voz dos oprimidos criou um personagem que no caso é o homem preto de periferia. Mas dentro da periferia têm mulheres, transexuais, lésbicas, assexuais, gays, enfim. Insisto: só um oprimido que tem voz?".

Por que o rap? 

As pessoas que aderem e participam do movimento Hip Hop, em geral, chegam à cultura por meio da identificação. Mesmo ao relatar a personificação do masculino heteronormativo, existem elementos em comum entre a comunidade LGBTQIAP+ que os convida a querer fazer parte desta história cultural.

“A vivência de ir às batalhas de rima, a vontade de descobrir as coisas, a habilidade com as palavras, as escritas de poemas e a composição de músicas me trouxeram onde estou hoje", pontua Rico Dalasam. 

Para Dree-k o rap também se apresentou por meio da vivência. "Estava presente dentro da minha casa, a história da música Rosas, do Grupo Atitude Feminina. Minha mãe e minha cunhada sofreram violência doméstica. E eu sofri violência da minha mãe. Essa música falava diretamente comigo. Devo muito ao rap por aprender muita coisa sobre a vida. Eles pavimentaram o meu caminho. Devo muito ao rap de Ceilândia. Minha carreira foi construída a partir disso", relembra.

Já a rapper Realleza conta que o rap tem uma função social que é o grito dos invisibilizados.

“É o único instrumento que a periferia consegue achar para ter um direito de resposta às nossas questões. O rap me chamou, me deu o microfone e não tampou a minha boca. Aí fui entendendo até quem eu era. E hoje sei que para além de tantas coisas, sou uma mulher preta, periférica, bissexual que participa de um movimento que amplia a nossa voz. O rap é minha vivência, onde posso contar a minha história por completo para a galera entender que a periferia é múltipla".


"O rap é minha vivência, onde posso contar a minha história por completo", ressalta Realleza / Foto: Coletivo M.A

"Na verdade, estamos fazendo aquilo que o rap ensinou. Ter compromisso com a verdade. Trazer as pautas LGBTQIAP+ é trazer a nossa verdade", conclui Amaro. 

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Oportunidades

Quando o assunto é oportunidade dentro do cenário musical, Dree-k, Amaro e Realleza questionam a indústria fonográfica quanto a estimular a circulação dos trabalhos do público que se identifica e pontua as questões de gênero. 

"Os artistas LGBTQIAP+ registram alguns trabalhos mas somem porque a indústria musical não abraça devido ao preconceito da sociedade. Mesmo com a pauta já exposta, o Hip Hop ainda tem dificuldade de abraçar a ideia", pontua Realleza.

Para Dree-k, a referência de rap com mulheres lésbicas é o grupo Plus Size. "Cadê essas meninas sendo convidadas para shows, recebendo um bom cachê e estando na mídia? Levantando as suas pautas. Por que ter que se render ao pop para continuar na mídia?"

Amaro destaca que a indústria musical coloca a sexualidade à frente da arte, da música, do rap. “O nosso trabalho não vem primeiro. Sendo assim, somos apenas um recorte". 

Reflexo social

O machismo que reverbera na sociedade é espalhado também dentro do Hip Hop.

"O Hip Hop tem um histórico machista. Ainda tem preconceito com o público LGBTQIAP+, assim como a nossa sociedade. É interessante perceber que quando estou numa roda de gays, o rap é muito distante. Ainda não conseguiu criar muito diálogo por ser machista e ter fobias de gênero. Ainda é difícil conectar com o público levando o rap como uma musicalidade que abraça o movimento gay. E quando você está com as pessoas do meio rap, você é muito gay. O gay pode ouvir e fazer rap, porém nos é lembrado o tempo todo a nossa sexualidade", reflete Amaro. 

Hip Hop é arte da periferia

"Querendo ou não. Independente do lugar que as pessoas queiram colocar, é um movimento. Não é o mesmo da década de 80. É o único estilo musical em que a gente pode pontuar as nossas questões integralmente. Onde posso bater no peito e falar: eu sou viado! É um espaço de resistência", diz Realleza. 

Amaro reflete que a cultura Hip Hop oportuniza, mesmo com as contradições, a possibilidade de trabalho e a de se expressar, direitos estes, que geralmente não são garantidos a pessoas periféricas e incluídas nas siglas LGBTQIAP+.

"Quando a gente pensa em movimento Hip Hop, lembra que tem vários elementos artísticos. Quando a gente pensa em arte, vem à mente algo elitista. Aí vem o Hip Hop e diz que tem produção de arte na periferia. Ele faz com que a gente consiga trabalhar e ter voz. Ele atravessa os preconceitos junto conosco", diz Amaro.

Para Dree-k, o Hip Hop não tem dono. "Falar sobre as questões que estamos falando aqui é o sinal de que o Hip Hop está nos ajudando a superar questões. Mesmo tendo rappers, que não vem ao caso citar nomes, que já falaram que Hip Hop não é coisa de viado".


Amaro, Dree-k e Realleza: Hip Hop atravessa preconceitos / Foto: Coletivo M.A

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"O universo da inclusão é bem amplo. Mas é a única possibilidade da gente continuar tecendo novos mundos e fazer o mundo rodar. Não funciona mais o mundo que rechaça e deixa de incluir pessoas em qualquer espectro. Só há uma possibilidade de construir novos mundos e salvar alguma coisa desse, que é a inclusão em todos os espectros. Seja lá na educação primária, em ter todo tipo de gente na sala de aula construindo outros imaginários, seja no mundo do trabalho, seja nas relações. Porque as relações são criadas por meio de todas as vivências que tivemos durante a vida. Mas sabemos que é difícil na vida adulta construir imaginário e a possibilidade da inclusão uma vez que a gente foi ensinado de diversas maneiras a recortar e não a incluir", sentencia Rico.

Colaboraram com essa matéria:

Coletivo Fotográfico M.A composto por Beatriz Ferraz, Bruno Gustavo e Kairon Angelo; Débora Carvalho - DJ DONNA; Tatiana Reis, mãe, fotógrafa e artista visual.

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Edição: Flávia Quirino