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Artigo | Ciro Gomes, já votei, não voto mais

Debate entre Ciro Gomes e Gregório Duvivier motivou professor federal a falar de suas percepções sobre o pedetista

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Ciro Gomes debateu com Gregório Duvivier em seu canal - Foto: Reprodução

Assisti o “debate” entre o Ciro Gomes e o Gregório Duvivier no programa Ciro Games, e tenho acompanhado esta ronha entre eles desde o episódio sobre o Ciro no Greg News, que também assisti.

Eu já escrevi em 2018 sobre as razões pelas quais votei no Ciro naquela eleição, curiosamente pelo mesmo motivo que o Duvivier também alegou ter votado, nesta edição do Greg News: porque, em função do antipetismo da época, intuía que Bolsonaro venceria a eleição contra o Haddad, o que acabou ocorrendo. Portanto, aquele voto não tinha nada a ver com Haddad ou Ciro, era um veto ao Bolsonaro mesmo, um voto útil, pragmático.

Hoje eu não voto mais em Ciro nem no primeiro turno, em parte porque acredito mesmo que, neste momento histórico, Lula é o melhor nome para estancar esta sangria moral, social, econômica, política e institucional que vivemos. Não digo que com ele vamos sair do buraco em que estamos porque as condições são catastróficas, mas parar de descer já é alguma coisa. Mas em outra parte a coisa se deve ao Ciro mesmo, ao que ele se tornou e talvez ao que ele sempre foi. Sintetizei isso em duas razões abaixo.

1) Uma primeira razão tem a ver com o contexto histórico. Desde meu voto em 2018 muita coisa mudou. De um lado, Ciro, frustrado e ressentido, foi pra Paris, saiu de cena quando o Brasil mais precisava dele; de outro, o antipetismo murchou parcialmente, tanto que Lula tem hoje quase metade das intenções de votos já no primeiro turno, parte pela comparação óbvia entre a tragédia Bolsonaro e a era Lula/PT, mas parte também pelo desmascaramento da Lava Jato, fator que, explorado pela mídia, foi fundamental para forjar o antipetismo que abateu Haddad na última eleição. De lá pra cá o antipetismo refluiu na mesma proporção do derretimento do governo Bolsonaro e da credibilidade da Lava Jato e seus artífices.

Mas Ciro, sei lá porque desrazão, se agarra no (e fomenta o) antipetismo para tentar se viabilizar, exatamente com o mesmo discurso que elegeu Bolsonaro: de que o PT faliu economicamente o Brasil (o argumento econômico) e de que Lula é corrupto e assaltou o país (o argumento moral). A mesma dobradinha que a grande mídia usou para forjar o antipetismo no qual Bolsonaro surfou para se eleger.

Pra mim tem um duplo problema aqui. O primeiro é político, nesta de discursar que o PT e Lula assaltaram e faliram o Brasil, Ciro fica parecendo um lavajatista extemporâneo, fora de hora, que faz duvidar de porquê ele mesmo, por tanto tempo, fez parte dos governos petistas e em 2018 queria o apoio do PT para a sua candidatura. Mas isso é tão ilógico que ele também parece um terraplanista quando age assim, o que não combina nem com a sua biografia nem com a sua inteligência. Isso corrói a crença de que sua postura atual seja honesta, o que depõe sobre sua credibilidade.

O segundo problema é moral mesmo. Eu não tenho dúvidas de que essa postura é só estratégia política, portanto, uma estratégia indigna e imoral, para ficar com palavras mais sóbrias. Se alguém acusa outrem de algo tão grave quanto falir e roubar um país só porque tem interesse pessoal ou político nisso, então vocês mesmos podem escolher o adjetivo para qualificar o sujeito.

Este desvio moral é tão evidente que, em 2018, Ciro defendia a absolvição de Lula dizendo que a sua condenação carecia de provas. Mas hoje, depois do STF e da ONU concluírem pela parcialidade do Moro, conluio entre promotores e juiz, obstrução do direito de defesa e perseguição política ao ex-presidente, o mesmo Ciro reitera, como fez no debate com o Duvivier, que STF e ONU não absolveram Lula.

Ora, se ele mesmo reconhece que não havia provas para a condenação, e agora se descobre que o juiz era parcial e conspirou com os procuradores (só isso para explicar uma condenação sem provas), tentar ainda manter esta pecha de suspeição sobre o Lula negando-lhe a absolvição só porque isso lhe interessa politicamente, é não só um erro lógico mas também um desvio moral. O que mais precisa para alguém ser inocentado do que a anulação de um julgamento declaradamente suspeito no qual houve uma condenação sem provas?

Eu tenho certeza que com a inteligência que o Ciro tem, no seu íntimo ele sente vergonha quando faz este tipo de fala, pois reconhece a desonestidade intelectual e o desvio moral que há nela. Mas ele insiste nisso, por pura estratégia política, e isso é imoral.

2) A segunda razão é de ordem mais, digamos, epistemológica. Em primeiro lugar, quero dizer que não considero Ciro de direita nem fascista como parte da militância petista faz crer; eu ouço as análises dele, acho que tem uma leitura especialmente acurada de nossas mazelas econômicas, e considero ele uma das vozes mais agudas e qualificadas contra o capitalismo financeiro e o rentismo brasileiro, contra a venda de estatais e a política de preços da Petrobras, dentre outros assuntos do campo econômico. O seu plano de desenvolvimento, que está materializado no livro Projeto Nacional, é realmente coerente e desenvolvimentista.

A questão aqui não é ideológica, portanto. Ciro tem conhecimento de causa, um bom diagnóstico e um projeto coerente, e tem uma boa orientação ideológica, que aponta para as prioridades de ação deste projeto com as quais eu concordo. É terraplanismo da esquerda não reconhecer isso e tentar desconstruir o Ciro por aí, o que só joga os ciristas pro lado de lá do muro.

O problema do Ciro é como passar do conhecimento e da intenção para a ação política. E aqui está o que eu chamei de problema epistemológico. O que faria o seu Projeto Nacional não passar apenas de um livro bem escrito?

Aqui está o busílis da questão. Em qualquer democracia ocidental plural, com separação de poderes e alternância de governo, esta passagem do diagnóstico, da orientação ideológica e do plano para a ação e a implementação é exatamente o papel da construção política. Mas a coisa não funciona assim como ele faz crer, primeiro eu concebo um plano, elejo ele como o melhor (como se eleição fosse um concurso) e depois faço a política para implementá-lo. Ninguém numa democracia tem controle para isso; nem na vida privada e nem numa empresa se tem, que dirá num país. O diagnóstico, a orientação ideológica e o plano são obras também da atividade política, da reunião dos atores relevantes, da conversação, da negociação, da composição, do entendimento coletivo, da acumulação de forças, da mobilização social, etc.

São uma construção da atividade política, não obra solitária de uma mente iluminada. Aí é que se separa o estadista, o líder, de um intelectual, um analista ou um bom escritor. Afinal, nós não estamos na República de Platão. E se é assim, uma construção da atividade política, então ela é mais dinâmica - se forma e se transforma no processo político - do que estática - do tipo, primeiro se pensa, se escreve um livro e depois se vê como implementar.

No fundo este é o problema epistemológico do Ciro, ele acredita demais no pensamento e na formulação como algo descolado da implementação. Ele acredita no conhecimento como algo abstrato que está acima da ação prática a que se destina. Mas não, o conhecimento advém da, e só tem sentido na ação prática. E no caso da democracia, na ação política. Um Projeto Nacional só tem sentido e só se viabiliza, por mais bem elaborado que seja, se emerge e se sustenta na ação e na construção política.

Interessante é que quando o Ciro foi perguntado pelo Duvivier sobre como ele implementaria aquele Projeto Nacional, ele também apresentou uma fórmula pra isso, em quatro passos, que vocalizou assim: “primeiro, transformar as eleições num plebiscito programático, usando a eleição para estabelecer uma cumplicidade com o povo; segundo, usar os seis primeiros meses, em que o poder do presidente é quase imperial, para propor; terceiro, negociar, porque todo o mundo tem que negociar, mas com governadores e prefeitos e não com o centrão; e quarto, mandar voto popular (ele não explicou o que quer dizer com isso)”.

No fim ele diz que esta proposta de como governar também está escrita no livro Projeto Nacional, ou seja, já está tudo formulado na cabeça dele e posto no papel. Só falta combinar com os russos, pensei.

Mas tenho certeza de que se tudo isso desse errado o problema não seria das suas formulações, que são perfeitas, mas da falta de condições para a implementação (condições que ele nunca se esmerou em construir), como alega todo o planejador que vê seus planos fracassarem e põe a culpa na implementação, porque o plano era perfeito. Não percebe que toda a falha de implementação é, antes, um erro de concepção, porque parte de uma crença absoluta na racionalidade, no controle, no plano, no formulismo, e de uma ignorância, negligência ou inabilidade total para o processo político em si, de construir as condições para formar (e não necessariamente formular) algo novo.

Engraçado, esta fórmula de implementação do Ciro, por extensão lógica, calharia muito mais se fosse adotada pelo Lula, que já goza de grande popularidade e de um significativo arco de alianças políticas. Mas não, ele imagina esta fórmula do alto dos seus 8% de intenções de voto, da quase nula base social de sua candidatura e da absoluta incapacidade que tem para fazer uma aliança política sequer.

A diferença entre os dois é que o Lula está construindo politicamente estas condições, com uma movimentação impressionante entre os diferentes atores que formam o cenário político e social brasileiro, enquanto o Ciro parece que formula seus planos políticos em uma planilha, e quer que o eleitor os adote apenas porque são lógicos e racionais.

Faz favor...

*Renato Souza é professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), formado em Engenharia Agronômica pela Universidade Federal de Pelotas (1992), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996) e doutorado em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004).

** Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira