Rio Grande do Sul

Coluna

Respirar, falar e gritar: na corda bamba entre o horror e a esperança

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"Sinto minha respiração suspensa, como mulher que sempre foi interrompida, que sempre sentiu na pele como é ser preta e periférica, nesse país misógino e racista" - Imagem: Jacques Etienne Arago
Sejamos as guardiãs das memórias dos que tombam. Sejamos as escritoras que denunciam o patriarcado

Trazendo as palavras de Grada Kilomba, em Memórias da Plantação, recorto a apresentação de três facetas do racismo: a construção da diferença, a construção da diferença inseparavelmente ligada a valores hierárquicos (através do estigma, da desonra e da inferioridade). E finalmente, o poder (histórico, político, social e econômico). Na combinação de preconceito e poder racismo é a supremacia branca. Numa velocidade estonteante, todos os dias, a supremacia branca pratica e aceita práticas da necropolítica.

O mês de maio, usado comercialmente como o mês das mães, tem trazido notícias difíceis de digerir, que ficam entaladas nas gargantas. Dizer numa frase que uma menina Yanomami que foi estuprada e morta, sabendo e sentindo que essa frase apenas resume um ato que não é isolado, mas sistemático, que segue ocorrendo sem meu conhecimento, me coloca numa espiral de emoções dolorosas. Eu mesma completo o quadro, com imagens que alimentam meus piores pesadelos. Porque os fatos noticiados são a ponta de um iceberg movente e veloz: a violência contra as meninas e mulheres, a sobrecarga das mulheres cuidadoras, as violências contra nossas representantes no parlamento.

Todos os dias, os minutos estão povoados de fatos que não viram notícias nem são divulgados. Integro coletivos de luta contra o racismo e o patriarcado, rodas de mulheres, projetos de educação popular e rede de apoios a mulheres cuidadoras. Saímos de nossos encontros na corda bamba entre o horror e a esperança. Indignadas, furiosas e na luta.

Sempre tive medo da polícia. E ainda tenho. Aqui onde moro, no Rio de Janeiro, já quase fui presa por tentar defender uma jovem que estava sendo abordada com violência por policiais. Tremi nas bases, tive medo. Mas mesmo com medo tive coragem de me manifestar e dei sorte: nós duas estamos vivas. Estou exausta. As notícias chegam como avalanches, que ameaçam me soterrar. E é na rede de apoio e de luta que encontro de novo fôlego, força e voz.

Todos os dias mulheres sofrem todo tipo de violência. Aqui no Rio, todos os dias, tanto nas mídias quanto nos grupos de whatzap, fico sabendo de mães e familiares que perderam filhos pela violência contra as crianças e jovens pretos. Sempre em situações absurdas e que seguem sem punição.

Uma ferida aberta, que sangra sem parar. Até onde posso agir para que algo mude? O que faço parece ser insuficiente. Escrevo, faço canções, vou aos debates, participo de manifestações. E sangue não para de escorrer. E os corpos marcados para a execução estão sempre no mesmo endereço: pessoas pretas, pobres, de territórios periféricos. Aquelas mais vulneráveis, cujos corpos não interessam para o projeto neoliberal e fascista. O patriarcado, junto com o projeto colonialista, cria o capitalismo, que se reinventa em versões cada vez mais monstruosas.

Chorei junto com a mulher de Genivaldo de Jesus Santos. Fiquei indignada com a frágil reação que tivemos. O espetáculo, executado à luz do dia, da montagem improvisada de uma câmara de gás, para matar sem dó e sem pudor, o marido e pai, que apenas cometeu o erro de estar numa moto sem capacete. Dois anos antes, George Floyd foi executado por policiais brancos e repetiu várias vezes: eu não consigo respirar.

É desse lugar que falo aqui: sinto minha respiração suspensa, como mulher que sempre foi interrompida, que sempre sentiu na pele como é ser preta e periférica, nesse país misógino e racista.

Com que palavras posso me juntar ao coro das mulheres que perdem seus filhos? Como dói o coração da mãe da menina Yanomani? Quantas estão, a essa hora, sendo violadas e perdendo o direito de respirar e de falar?

Em algum ponto, essa ferida que compartilhamos, que também machuca e mata corpos de homens pretos e pobres, vai ser curada?

É preciso atacar os danos quase permanentes do patriarcado, do neoliberalismo, do fascismo e do racismo.

Mas talvez, tudo comece quando juntas aprendermos a falar e ouvir nossas histórias. Que juntas sejamos capazes de desmontar as câmaras de gás, as celas, os “doce lares” em que somos aprisionadas.

Que Genivaldo descanse em paz. E que estejamos vigilantes para que a violência presente nos corpos e mentes dos policiais que o executaram seja derrotada: pela nossa palavra combatente, pela nossa resistência e pela nossa consciência política.

Sejamos as guardiãs das memórias dos que tombam. Sejamos as escritoras que denunciam o patriarcado e sejamos as testemunhas atentas do nosso tempo, para que não fique no esquecimento as práticas diárias de morte contra os corpos marginalizados e postos em situações de subalternidade. Que o afeto e o cuidado, que é um ato coletivo, sejam fonte de nossas revoluções.

* Eliana Mara - Artivista, educadora popular, escritora, faço parte do Fórum de Pré Vestibulares Populares do Rio de Janeiro, do Coletivo Juntas e do Projeto Mulheres Cuidadoras- IPUB-UFRJ.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko