Rio Grande do Sul

Coluna

Bestialidade e Humanismo 

Imagem de perfil do Colunistaesd
"Na TV vimos pessoas carregando os caixões para avaliação pericial. Pense nisso: caixões, com restos de dois homens superiores, destroçados porque se faziam agir movidos por sentimentos de amor" - TV Brasil
Avançamos em direção à desumanização e com isso nos colocamos na condição de párias

A grande questão, de quem somos nós, deve ser retomada em todos os lares, todos os bares, todos os encontros e reuniões?

O que houve com aquilo que nos ensinaram e que tentamos ensinar para as crianças, há gerações? Trate de ser uma pessoa amável, responsável e solidária... trate de ser quem queremos ser...

O que houve conosco? Perdemos rumos, significados, sentido e coragem de “ser gente”, nesta triste era de escuridão?

É isso que está em jogo.

É isso que se revelará de nossas reações à tragédia do Vale do Javari.

Disso resultará claro quem somos e o que pretendemos vir a ser.

Estamos diante de momento tão emblemático como aquele em que o centurião deu de chicote e Pilatos lavou as mãos, sob aplausos da plateia. Só vamos entender e enfrentar a dimensão de nossa crise se – como no caso bíblico – reexaminarmos o que a provocou e o que dali está emergindo. Sem isso, não haverá como garantir a limpeza do furúnculo que nos destrói como povos, como nação.

Hoje o Brasil, que foi o país da alegria, do futebol, do samba e do futuro, projeta, mundialmente, uma imagem da bestialidade que avança sob domínio da degeneração moral. Nos colocamos como ameaça civilizatória, a Meca da corrupção fascista pautada pelo escárnio às bases do humanismo.

Não vale a pena detalhar o significado de coisicas, como aquela de nossas Forças Armadas se permitirem usar helicóptero para entregar uma revista playboy nas mãos de um general em serviço (aliás, que número da playboy? que conteúdo, que mensagens subliminares trariam aquela revista? que relação haveria entre tal fato, as promoções de oficiais e as compras de, digamos “equipamento erótico”, por nossas forças armadas?).

Vejam que para movimentar uma lancha, um helicóptero, ou que seja, um cabo e um soldado, em busca de Dom Phillips e Bruno Pereira, o exército nacional esperou por “ordens superiores” (“O Comando Militar da Amazônia está em condições de cumprir missão humanitária de busca e salvamento, como tem feito ao longo de sua história. Contudo, as ações serão iniciadas mediante acionamento por parte do Escalão Superior”).

Vejam que não são poucas as denúncias de que traficantes de drogas, armas, minérios, madeiras e influenciadores de natureza fascista reinam, decidem, mandam e desmandam  sobre o que vem acontecendo neste país.

Vejam que a bestialidade do Vale do Javari se associa a promessas criminosas de liquidação da democracia republicana. “Se eleito, eu vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço”, dizia aquele candidato que – eleito – nos jogou, como país, nesta era de degradação, criminalização e perseguição de tudo e de todos que se colocam em defesa da humanidade.

Os números são gritantes. Os assassinatos em conflitos do campo já superam recorde de 35 anos atrás e continuam crescendo. Entre 2020 e 2021, ano em que alcançamos o maior índice de desmatamento da história, as mortes no campo cresceram 75%.

Ao mesmo tempo, e principalmente nas cidades, perdemos quase 700 mil pessoas por covid,  66 milhões de famílias estão inadimplentes e mais de 33 milhões de brasileiros passam fome.

Em outras palavras, avançamos em direção à desumanização e com isso nos colocamos na condição de párias, entre os povos civilizados do planeta.

Pois é assim que a insanidade ocorrida no Vale do Javari aconteceu e se impõe, como ponto de mutação, como aquele momento que definirá quem somos e para onde vamos.

Muito se escreveu sobre o ocorrido com Dom Phillips e Bruno Pereira. Seleciono aqui alguns informes para quem não teve oportunidade de acompanhar os fatos.

Dom Phillips, que havia entrevistado o presidente em 30/07/19, foi morto, esquartejado e queimado por se envolver em uma “aventura não recomendável”, segundo “aquele de quem não se fala o nome”. Afinal, segundo o inominável aquela loucura deveria ser esperada, pois “esse inglês era malvisto na região, porque fazia muita matéria contra garimpeiros, questão ambiental, então, naquela região lá, que é bastante isolada, muita gente não gostava dele".

Bruno Pereira, que o acompanhava e tem currículo de heroísmo em vida, era um dos indigenistas mais respeitados do Brasil. Servia de conexão com populações totalmente isoladas, falava pelo menos quatro línguas de povos ameaçados de apagamento, e por eles era amado.

Segundo consta, ambos teriam sido mortos por pescadores raivosos que, por ódio ao jornalista inglês e ao indigenista brasileiro, os evisceraram, desmembraram, queimaram e enterraram pedaços de gente. Trabalhariam sozinhos, teriam sido atiçados por publicações em jornal inglês, ninguém mandou?

Ora, neste país onde um maluco bocó ajudou a eleger o desvairado, com uma facada suspeita, o que pensar dos facões usados contra os corpos de Dom e Bruno, pelos bocós bestializados do Vale do Javari? Vem daí a consagração ou o fim do pesadelo?

Vejam as causas e as implicações, o significado das mortes reservadas aqueles dois homens trucidados porque se faziam movidos por sentimentos de amor. Dois revolucionários no sentido proposto por Cristo, por Francisco, por Che, por Júlio Lancelotti, desmembrados, cortados em pedaços como Tiradentes.

Na TV vimos pessoas carregando os caixões para avaliação pericial. Pense nisso: dois caixões, com restos de dois homens superiores, destroçados porque se faziam agir movidos por sentimentos de amor.

Neste país, dominado por seres rastejantes, impróprios ao convívio civilizado, que lição devemos tirar daquela imagem? O que ela nos diz, a respeito do que devemos ensinar a nossos filhos?

Que eles devem aceitar o fato de que, por nossa covardia, resulta normal o esquartejamento de quem se deixar mover por sentimentos de amor? Que apoiamos um Estado que se permite estimular, acobertar, disfarçar, fazer vista grossa a crimes políticos?

Ou que devemos acordar, e agir, em conformidade com o fato de estarmos vivendo em um tempo de guerra. Um tempo, uma guerra onde eles que distribuíram 1,5 milhão de armas a civis que pensam usá-las, eles que jogam veneno e bosta, de drones sobre manifestações democráticas (poderiam jogar gasolina?). Um tempo, uma guerra onde aqueles vermes, que vendem o Brasil no mercado das almas, não podem vencer.

Encerro com poesia de Roberto Liebgott, do CIMI sobre Bruno e Dom.

Vidas pelas vidas, vidas ceifadas, matadas, esquartejadas, incineradas, enterradas no lodo da mata encharcada.

Vidas arrancadas por mãos assassinas, por gente perversa, não eram pescadores os algozes, mas matadores a mando de covardes protegidos em mandatos políticos, nos gabinetes e palácios governados por tiranos.

Vidas pelas vidas indígenas, dos povos livres, das comunidades ribeirinhas engajadas na preservação do ambiente contra o garimpo, a depredação e exploração desmedida.

Vidas pelas vidas na ausência de fiscalização estatal, dispensada e desmantelada pelo cinismo governamental, facilitador e avalizador dos crimes, das ameaças, das torturas, da mais vil brutalidade.

Vidas pelas vidas dos que ficam, daquelas e daqueles que os amam, admiram, que sentirão falta do sorriso e das lágrimas, do abraço e do beijo, da militância comprometida com o bem viver.

Vidas pelas vidas indígenas que ainda terão outras dores, lamentos, tragédias e tristezas, porque os perversos permanecem ativos, vomitando ira e sedentos pelo sangue e destruição.

Vidas pelas vidas daqueles que já se foram, os ancestrais, as espiritualidades, os encantos da natureza que agora os têm na harmonia definitiva, os acolhem com o devido e máximo respeito.

Vidas pelas vidas, que esse sacrifício não seja em vão.

 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko