Rio Grande do Sul

Coluna

Carta a uma amiga colombiana

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"Tenho aprendido a não deixar que se apague o brilho das nossas conquistas, deste sonho por cumprir-se o chamado Abya Yala" - Foto: Raul Arboleda/AFP
Hasta que la dignidad se haga costumbre

Te escrevo para compartilhar nossas alegrias e tristezas, nossas diferenças e semelhanças desse tempo histórico em que vivemos. Como eu poderia não vibrar com o tão esperado resultado das eleições em seu país? Aprendemos que é preciso disputar as institucionalidades para frear o ritmo alucinante da barbárie colonial que, por muito que a conheçamos, sempre nos surpreende. Tenho aprendido a não deixar que se apague o brilho das nossas conquistas, deste sonho por cumprir-se o chamado Abya Yala, ciente de que é justamente na diferença e no aprendizado que nos irmanamos e planejamos um futuro comum.

Vivemos em países onde a necropolítica impera há tempos. Na semana passada, os assassinos de Dom Phillips e Bruno Pereira confessaram suas mortes. Surpreendeu-me a semelhança do método com o assassinato de Eliza Samudio, em 2010: ela também foi torturada, morta e esquartejada, e seu corpo nunca foi encontrado. A relação intrínseca entre feminicídios e assassinatos de ambientalistas visibiliza a intencional negligência do Estado para com quem denuncia as milícias e suas pedagogias próprias da violência, orientadas pelo machismo, patriarcado e capitalismo predatório.

Mas essa semana veio a tona um caso absurdo de tortura: uma menina de 11 anos está sendo obrigada a gestar e parir após ser vítima de violência sexual. Após detectar a gravidez, a mãe levou-a ao hospital da Universidade Federal de Santa Catarina, que recusou-se a realizar a interrupção sob a alegação do tempo gestacional exceder 20 semanas. Sabemos que profissionais de saúde são resguardados nesses casos, já que há risco de vida para a criança gestante, mas a instituição, em uma manobra de “lavagem de mãos”, resolveu solicitar uma autorização judicial, e tornar a vida da mãe e da menina um verdadeiro inferno. 

Com o intuito de obstaculizar completamente o aborto legal, o Estado brasileiro sequestrou essa criança e a isolou de sua família, mantendo-a sob cárcere em um abrigo destinado a vítimas de violência. Não pude deixar de lembrar das crianças presas e torturadas nos estabelecimentos públicos da ditadura militar. Este caso só veio à tona porque vazou uma gravação da audiência, em que a juíza e a promotora torturam psicologicamente a mãe e a menina: imagine que essas mulheres, brancas e representantes das nossas malditas oligarquias, usam da coação e da dissuasão para que a gravidez seja mantida por mais algumas semanas para que o feto, extremamente prematuro, seja entregue à adoção e, nas palavras delas, façam uma outra família feliz. 


"Este caso só veio à tona porque vazou uma gravação da audiência, em que a juíza e a promotora torturam psicologicamente a mãe e a menina" / Reprodução

Há algum tempo se fala de tráfico humano através dos processos de adoção que retiram compulsoriamente recém-nascidos de suas mães se essas forem pobres, em situação de vulnerabilidade ou com histórico de uso de drogas. Agora sabemos que isso opera também nos casos de aborto legal. 

Até mesmo o feto será torturado por iatrogenia, e a ironia é que chamam a isso de cuidados médicos. Assim como na ditadura: sempre havia médicos nos quartéis para tentar reanimar os corpos desfalecidos, e emitir os atestados de óbito que pudessem mascarar a verdade dos fatos. A gestação chegou a 29 semanas, quando soubemos de tudo isso: essa tortura lenta, cruel e institucionalizada acontece há cerca de 50 dias. Não sabemos quanto tempo mais durará, e se deixarão que essa situação absurda termine em óbito. Com a legalização e ampliação do aborto até 24 semanas em seu país, também não pude deixar de pensar: talvez nada disso estaria acontecendo se elas estivessem na Colômbia. 

Imaginamos a dor da mãe e dessa menina, que no seu itinerário institucional foram se tornando as vítimas materializadas de nossas estatísticas. Assim como nas ditaduras, é o Estado que está produzindo estes desfechos. A novidade desse caso não seria uma suposta excepcionalidade, mas ter se tornado público através do vazamento do vídeo, constituindo, talvez, um ato cívico de desobediência e cujos efeitos não devem ser minimizados, hasta que la dignidad se haga costumbre.

Com amor, B.

* Benke Yelene é ativista por direitos humanos.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko