Paraná

Entrevista

"Câmara de Curitiba é um espetáculo do circo dos horrores", diz Renato Freitas sobre cassação

Vereador teve mandato cassado, após ser acusado de quebra de decoro parlamentar por participar de ato antirracista

Curitiba (PR) |
Renato Freitas deu entrevista ao Brasil de Fato Paraná na manhã desta quinta (23) - Foto: Reprodução Facebook

Após quatro meses de processo, a Câmara de Curitiba decretou a cassação do mandato de Renato Freitas (PT), nesta quarta (22). Na manhã seguinte à perda do mandato, nesta quinta (23), Freitas concedeu entrevista ao Brasil de Fato Paraná.

O agora ex-vereador afirmou que irá lutar na Justiça pela anulação da decisão da Câmara, com base em todas as irregularidades cometidas ao longo do processo. "Estamos confiantes de que o Judiciário reconheça essas nulidades", disse.

Freitas foi acusado de quebra de decoro parlamentar após participar de ato antirracista, que culminou na entrada dos manifestantes na Igreja do Rosário, no Centro de Curitiba, em fevereiro. Ele foi acusado de liderar o ato, interromper culto religioso e fazer ato político dentro da igreja.

A entrevista completa pode ser vista no canal do Brasil de Fato no YouTube.

Confira alguns trechos:

Brasil de Fato Paraná: Qual é a sensação hoje, ao acordar cassado pela Câmara Municipal de Curitiba?

Renato Freitas: A sensação que eu tenho, ao contrário da expectativa de muita gente, não é de desespero, não é de lamento. Eu acho que não há o que temer nem lamentar. Uma vez que a gente escolheu um caminho estreito contra os grandes interesses, sabíamos que os riscos eram muito grandes de lutar contra o coronelismo, essa elite branca que domina a política. Essa é mais uma etapa de um processo de perseguição que eu vivo desde que me entendo por gente, sobrevivendo nas periferias de Curitiba.

BdF: Desde o início, sua defesa vem apontando uma série de irregularidades na forma como a Câmara encaminhou o processo. Quais são os próximos passos? Vocês vão levar isso para a Justiça e tentar anular a decisão da Câmara?

Vamos, com certeza. O processo todo é eivado de vícios insanáveis. Desde o áudio do vereador Márcio Barros, integrante da Comissão de Ética, declarando o próprio voto antes de a gente apresentar a defesa. A vereadora Noêmia Rocha foi pressionada por esse mesmo vereador e também por Marco Feliciano, Silas Malafaia. O e-mail racista que foi enviado para mim. Vários elementos comprometem o processo. Agora, por último, os elementos formais. Eles não me deram nem 24h de aviso com antecedência para iniciar a votação. Estamos confiantes de que o Judiciário reconheça essas nulidades.

BdF: Você é um dos poucos vereadores negros da Câmara de Curitiba. Dos 38 vereadores, apenas 4 são negros. A denúncia de racismo permeou todo o processo da sua cassação. Como foi o seu mandato até aqui, dentro de um ambiente formado majoritariamente por homens brancos e ricos?

Foi absolutamente hostil. Com demonstrações explícitas de racismo. Em sessões oficiais, fui chamado de moleque, de mano, maconheiro, foi dito que eu não tinha maturidade para estar naquele lugar. O líder do prefeito na Câmara, vereador Pier Petruziello, me perguntou se eu, eventualmente, levava cachaça para a Câmara, se eu bebia antes das sessões. Tudo isso tentando me colocar num estereótipo de pessoa negra que foi utilizado há 100 anos.

BdF: Durante o processo, chamou a atenção uma fala sua de que as pessoas que davam "tapinha nas suas costas" na Câmara foram as que forçaram sua cassação. Você pode explicar melhor isso?

Essa Câmara de Vereadores é um grande teatro, um espetáculo do circo dos horrores. Eles são hipócritas porque não acreditam naquilo que fazem e dizem. O único compromisso deles é com o poder e com o dinheiro. Isso ficou muito evidente. Esse teatro farsesco se fundamenta a partir da hipocrisia.

O maior ensinamento que tiro desse processo todo é o nível de hipocrisia arraigado na Câmara de Vereadores, que não deixa que a população de fato seja representada. O povo é coadjuvante nesse teatro e os protagonistas são aqueles que tem condições de comprar os vereadores que se colocam à venda. O prefeito é o grande comprador, digamos assim, porque ele é quem distribui os cargos comissionados.

BdF: Diante de todo esse cenário e pensando na própria acusação de quebra de decoro parlamentar, que é algo subjetivo, que depende da interpretação de quem julga: em algum momento você se arrepende de ter participado da manifestação?

Olha que interessante sua observação: é um elemento subjetivo, faz parte da interpretação. E por ser subjetivo é também arbitrário. Varia de acordo com seu contexto histórico, com o tempo e lugar do sujeito que interpreta.

Eu fui preso umas 16 vezes. Dessas, ao menos 12 foi por desacato à autoridade. Que consistia em ordens absurdas que eu não cumpria ou pelo fato de eu reivindicar direitos. A interpretação era dada pelo policial. "Eu estou me sentindo desacatado", logo: algema, porta-malas da viatura, delegacia. A quebra de decoro é a mesma coisa, é o desacato. É a mesma lógica.

Como objetivamente não podem nos enquadrar em nenhum crime, em nenhuma conduta antiética, eles pegam uma margem de arbitrariedade e colocam todas as energias persecutórias, racistas, e apostam nessa interpretação esdrúxula de que eu quebrei o decoro.

Levar a memória de alguém que foi torturado em um quiosque aos pés de Cristo, que foi torturado em uma cruz...a comunhão desse encontro é a realização de princípios cristãos. Sobretudo quando reivindicamos a vida. O cristianismo combate a desigualdade, a falta de amor, a desvalorização da vida. Nós fizemos isso dentro de uma igreja que estava vazia, não interrompemos nenhuma missa, respeitamos o local sagrado. Não tem porque nos arrependermos. Nós levamos as vozes dos nossos mortos para clamar a Deus para que tudo isso mude.

BdF: Seu caso não é exceção no Brasil atualmente. Tem um número grande de parlamentares negros, mulheres, LGBTs que vêm sofrendo ameaças de morte, ofensas, processos de cassação. Como você analisa esse cenário atual do país, de violência política, tendo em vista também que este é um ano eleitoral?

Com a ascensão do bolsonarismo, pós golpe, todo esse cenário foi se agravando no que diz respeito aos ataques às instituições que tinham por finalidade garantir a democracia no país. Nesse momento, não se respeita o princípio democrático mínimo da convivência de opostos.

Se o judiciário não garantir a existência e a liberdade de expressão e ação das oposições dentro das Câmaras, que estão dominadas pelo bolsonarismo, é claro que isso vai comprometer radicalmente qualquer noção que se tenha sobre democracia.

Esse ataque à democracia tem como principal alvo nós, que viemos e vivemos nas margens, não só geográficas, mas também políticas: negros, mulheres, LGBTs, a população empobrecida, encarcerada, em situação de rua, imigrantes, refugiados e todas as outras que estão à margem dos centros de poder.

Edição: Pedro Carrano