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Nada se perde, tudo se transforma

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"Estamos perdendo o tino, como já perdemos Alcântara, o Pré-Sal, a Petrobras, a capacidade de investimento e a dignidade republicana. Com isso, estamos negando o que aprendemos ao longo da vida" - Leonardo Milano
Nos afastamos do Brasil que fomos. Estamos no país da imoralidade institucionalizada

Como a guerra da Ucrânia e a pandemia da covid afetariam o Brasil de ontem?

Não dá pra saber. Mas se pode especular que as crises globais de hoje impactariam de outra maneira sobre aquele Brasil que mantinha os ratos golpistas nos esgotos de onde acabaram saindo.

Vejam... tínhamos petróleo, gasolina e diesel suficientes para dar e vender. Tínhamos aquela riqueza do Pré-Sal orientada para apoiar a educação, a saúde, a ciência, o combate às desigualdades e a construção de um mundo melhor.

Com o BRICS, tínhamos liderança em processo de união e solidariedade entre os países do terceiro mundo. E fazíamos parte do primeiro mundo. Afinal éramos a sexta economia mundial e em expansão, construindo plataformas, aviões, submarinos e navios.

Vivíamos num Brasil sem fome, sem dívidas, com enorme volume de poupança/reservas, com influência e respeito internacional. Tínhamos credibilidade e músculos. Grandes cientistas, fortes organizações sociais e sindicais, um mercado interno robusto, grandes empresas nacionais disputando o erguimento de infraestruturas físicas e intelectuais em países de todo o mundo. Tínhamos a solidariedade e a alegria como modo de vida brasileiro. Avançávamos no empoderamento de grupos historicamente desfavorecidos e crescia a participação de mulheres, negros e jovens em todos os espaços de decisão nacional.

Não era o melhor dos mundos, não era perfeito, mas havia alguma proteção ao nosso maior capital global para o enfrentamento da crise climática: o gigantesco reservatório de recursos genéticos associado à produção de rios aéreos e ao sumidouro de gases do efeito estufa, na Amazônia.

Tínhamos, enfim, o potencial, os recursos e a expertise para avançar no campo das energias limpas, com aproveitamento do sol, dos ventos, dos rios e das refinarias. Estávamos perto da autossuficiência em biocombustíveis. Se ampliava e se qualificava nossa rede de universidades e institutos federais, com políticas de cotas que asseguravam, num horizonte de quem sabe 20 anos, mudança no perfil nacional da luta de classes.

E assim, vivíamos descuidados, reformando portos, aeroportos e estradas que assegurariam ampliação na já enorme atratividade de turistas e investimentos de todo o globo.

Tudo isso, pelo simples fato de sermos o que éramos, e porque os ratos se mantinham contidos, embora engordando, em seus esgotos.

E agora, desde o golpe de 2016, em que nos tornamos?

Voltamos ao mapa da fome, perdemos o petróleo, queimamos a Amazônia, destruímos as indústrias, acabamos com legislações protetivas, sucateamos as universidades, vendemos o controle da energia, armamos as milícias e estabelecemos, no paraíso terrestre, verdadeiro inferno tocado a gritos, sob o reinado do ódio e da ignorância.

Passamos a ser este país desorientado, espaço de deboche internacional, onde a gripezinha matou perto de 700 mil pessoas e a Constituição vem sendo remendada para esconder por semanas os reflexos da lava jato e assim proteger os irresponsáveis que o golpe guindou ao governo nacional.

Liderados por pessoa que é “non grata” em escala internacional, e seus bajuladores oportunistas, desabamos como nação.

Sob a influência dos piores entre nós, chegamos a este ponto onde tudo fede a podre e os vermes ocupam o topo da cadeia alimentar. Desde a PEC do Fim do Mundo, até a PEC do Desespero, estamos nos acostumando com roedores destruindo a Constituição Federal. Os orçamentos secretos, os ecocídios, os genocídios, os feminicídios, as mentiras governamentais, a desmoralização das instituições e o medo do dia seguinte se tornaram regra geral entre nós. Enquanto milhões passam fome, alguns grupos mancomunados com este governo, na confiança de que se manterão impunes, se lambuzam e “comem gente”, ao sabor de mantra tão inédito quanto insuportável. Eles cantam, na caradura: “para nós vale tudo e foda-se o resto”.

Vejam a Caixa Econômica Federal.

Aquela que seria uma das maiores empresas do mundo, responsável pelo programa Minha Casa Minha Vida. Aquela instituição gigante onde mulheres não deviam usar roupas vermelhas porque assim estariam apoiando o comunismo. Aquela estatal onde o executivo principal, Pedro Guimarães, vulgo Pedro Maluco ou Pedro Garagem, amigão e bajulador do presidente da República, montou rede para, literalmente e usando a objetividade do linguajar bolsonarista, “comer gente”.

Uma rede para “comer” colegas de serviço. Coisa que até o momento já fez a Caixa Econômica Federal “perder” o presidente, dois de seus vice-presidentes (Celso Leonardo Barbosa e Antônio Carlos Ferreira de Sousa), e outros cinco assessores ligados ao centro de poder.

Este é o Brazil a que chegamos em poucos anos de domínio golpista.

Um país onde o presidente da Caixa Econômica Federal pode se permitir “comer gente” em garagem de shopping.

Como então reclamar de policiais que dão carona a profissionais do sexo, em serviço e em viaturas oficiais?

Para ficar apenas neste tipo de coisa, que envolve descaramento, brutalidade e estupidez, registre-se que os maus exemplos se alastram a galope. Estatísticas oficiais, de 2021, dão conta de que o Brasil computou, neste ano – A QUE SE SAIBA, POR REGISTRO – um caso de estupro a cada dez minutos.

Em 2021 foram 66 mil os crimes desta baixeza, quem sabe se vários em instituições do Estado, e a maioria deles envolvendo abuso de crianças com até 14 anos de idade.

Como não sofrer com isso, se todas as crianças são lindas e somos todos responsáveis por elas?

Como nos rebaixamos ao ponto de colocar na Presidência da República alguém que faz seguidores enquanto elogia torturadores e estufa o peito para dizer que “não estupraria” uma deputada federal, ex-ministra de Direitos Humanos porque “é muito feia. Não faz meu gênero”.

Felizmente, ao que se sabe, na CEF não houve violências.

Ali, sob a leveza de bullyings, assédios e pressões da alta chefia, cediam tão somente mulheres que, afinal, teriam seus motivos. Talvez “mulheres fáceis, por medo, ou pobreza” como aquelas refugiadas iranianas as quais teve acesso, e de quem falava aquele vistoso e influente ex-deputado bolsonarista.

Pois é disso que se trata.

Estamos no país da imoralidade institucionalizada.

Nos afastamos do Brasil que fomos. Estamos perdendo o tino, como já perdemos Alcântara, o Pré-Sal, a Petrobras, a capacidade de investimento e a dignidade republicana.

Com isso, estamos negando o que aprendemos ao longo da vida.

Sabemos, por exemplo, que os padrões são validados e se consolidam a partir da educação e dos modelos de sucesso. Sabemos que os espaços de maior visibilidade e poder concentram também a maior capacidade de influência sobre o comportamento das massas. Sabemos o mal que fazem os golpistas para o espírito e a imagem da nação.

Não nos faltam dados e sobram motivos – no Ministério da Educação, da Saúde, do Meio Ambiente, do Exterior, nas decisões do Congresso e Procuradoria Geral da República, nas compras das Forças Armadas, entre outros locais –, para raiva, tristeza e vergonha.

À CPI da COVID se somam agora mais três outras Comissões Parlamentares de Inquérito, inoportuna e irregularmente pedaladas pelo bolsonarista na presidência do Senado, de forma a que os crimes que as justificaram só venham a ser comprovados depois das eleições de outubro. Se trata de golpe para tentar perpetuar o golpe, a infâmia e a desgraça da nação.

E vejam as implicações. No caso da CPI do MEC se prenuncia enraizamento de corrupção que liga o Planalto a prefeitos que recebem dinheiro do MEC. Afinal, outros prefeitos, aqueles que se recusaram a pagar propina aos pastores indicados pelo presidente da República, não tiveram acesso aos mesmos recursos. Com isso, se repete e amplia aquele modelo de rachadinhas que teria enriquecido a família do inominável? Os investigadores que pretendem cumprir suas funções, nestes casos, também serão perseguidos por chefias indicadas pelo chefão do Planalto?

Talvez sim, talvez não.

O fato é no caso do MEC o inominável não apenas “intuiu” que a Polícia Federal iria tomar providências que a função lhe obriga, como se apressou em alertar disso, a seu amigo ministro corrupto. Seria para eventual ocultação de provas?

Claramente não somos mais o país de ontem. Avança um câncer que decorre do empoderamento de canalhas que precisam ser desmascarados e punidos. E precisa ser apenas o começo, tardio, de correções que precisam ser aplicadas a mecanismos de degradação interior, anterior, hoje validados e estabelecidos desde o Palácio do Planalto até os fundões do Vale do Javari.

Se trata de cortar o processo de renovação da Elite do Atraso, discutida por Jessé Souza. Se trata de suspender o apagamento de virtudes, discutida por Anastácio Peralta.

Para Anastácio Peralta, liderança Guarany Kaiowá, a destruição dos povos, culturas e ciências diferentes daquelas que favorecem aos opressores, seria a regra de comportamento preferencialmente adotada, desde sempre, por “brancos” poderosos e endoidecidos, no Brasil.

Assim, criminosos do passado teriam estabelecido modelo de conduta tão desumano quanto –para eles – proveitoso. Basta ver que alguns dos seus foram e são até mais homenageados que Ustra o foi, por Bolsonaro. Combinando o uso da violência com métodos sutilmente destinados a acabar com valores espirituais dos que trabalham pelo fortalecimento de todas as formas de fraternidade e cooperação, eles semearam entre nós a prática absurda de queimar o mundo, para reinar sobre as cinzas.

Resultou nisso. A premiação da ignorância se institucionalizou. Está validada a percepção de acesso garantido a vantagens indevidas, para os canalhas e os subornáveis que eles criam, entre pessoas dispostas a lamber suas botas ou a suportar de tudo, por migalhas e tapinhas nas costas. Permitimos que os golpistas nos reduzissem ao padrão deles e por isso saímos tão menores e enfraquecidos da pandemia e dos efeitos da guerra na Ucrânia.

Precisamos expulsar os ratos e desmitificar seus maus exemplos. Não é tarde e estamos em tempo de reagir. Precisamos começar agora, garantindo que enganações de curto prazo, como o vale gás, o vale caminhoneiro, o auxílio emergencial e outras bolsonarisses inconstitucionais não impeçam os brasileiros de mostrar ao mundo, quem somos e o que queremos, encerrando esta disputa eleitoral já no primeiro turno.

Como canta Jorge Drexler, “cada uno da lo que recibe. Y luego recibe lo que da. Nada es más simple. No hay otra norma. Nada se pierde. Todo se transforma."

 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko