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Coluna

Construir uma economia para a vida: repensando o cuidado

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Mulheres participam do ato Fora Bolsonaro em dezembro passado, em Porto Alegre (RS) - Foto: Isabelle Rieger/ATBr
Precisamos pensar urgentemente em uma forma de reorganização e redistribuição do trabalho doméstico

A crise de cuidado é um tema cadente em muitos países nos últimos anos. A realidade da América Latina, no entanto, revela raízes mais profundas e antigas da crise, que coincide com o avanço das políticas neoliberais em toda a região. O envelhecimento populacional, o aumento do número de famílias que são monoparentais, os desafios para inserção das mulheres no mercado de trabalho formal e a efetivação de políticas de austeridade que reduzem os investimento públicos em políticas de cuidado têm sobrecarregado a vida das mulheres.

Uma realidade invisível, que é acompanhada da completa incapacidade de reorganização social e estatal frente a essas mudanças de cenário, que terminam por fortalecer a estrutura desigual que torna as mulheres as únicas responsáveis pelas tarefas relacionadas aos cuidados. Assim, se transfere tudo relativo ao cuidado, ou seja, à sobrevivência e renovação da vida dos trabalhadores e das trabalhadoras, para as mulheres. São elas que têm a tarefa de cuidar das crianças, idosos, enfermos, preparar alimentos, organizar e limpar casas.

Em verdade, estamos falando de uma série de trabalhos que não possuem relações contratuais, mas são essenciais para a reprodução do capital. Cada vez mais, com o avanço da retirada de direitos sociais, cortes orçamentários como a PEC 95, a diminuição do poder aquisitivo das famílias, a desvalorização do salário mínimo, o cuidado se concentra ainda mais nas mulheres. Assim, essa transferência, quase obrigatória, da tarefa de cuidado para as mulheres tem servido como um amortecedor dos efeitos mais destruidores da crise do bem estar das pessoas.

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As mulheres ingressaram no mercado de trabalho sem superar a concentração do trabalho doméstico. Para tanto, algumas passaram a contratar outras mulheres para realizar o trabalho, as quais precisam contratar ainda outras mulheres ou contar com uma rede de solidariedade para exercer o direito ao trabalho, criando uma nova organização da reprodução social que se divide entre mulheres que podem pagar pelo cuidado de outras mulheres, que não podem. É importante destacar que desde a escravidão, grande parte do trabalho de cuidado é realizado por mulheres negras, historicamente vinculadas aos trabalhos domésticos. Cabe ainda recordar que é muito recente o reconhecimento da precariedade do trabalho doméstico e a afirmação de direitos trabalhistas a essa categoria.

Sem a economia do cuidado não paga, não há capitalismo, constituindo-se, portanto, num eixo estruturante da manutenção da dominação e exploração do trabalho no sistema. O aumento das horas de trabalho, da informalidade, da redução da renda das famílias aumenta a demanda de trabalho doméstico. Todas as alterações desde a inserção das mulheres no mercado de trabalho não foram acompanhadas de uma revisão dos papéis sociais na sociedade patriarcal. Tantas políticas de impacto na vida social, radicalizadas na pandemia, não foram acompanhadas do aumento da vaga de creches, da adequada remuneração do trabalho doméstico e do aumento da oferta de serviços públicos de cuidado.

Essa crise se agrava quando tomamos em conta a realidade de desterritorialização e desenraizamento, que vem ocorrendo com o avanço do capital, da mercantilização sobre comunidades e territórios. A destruição dos modos de vida tradicionais e os impactos no meio ambiente afetam diretamente as redes de solidariedade, que são fundamentais para os cuidados. A quebra dos laços comunitários afeta muito as mulheres do campo, das águas e das florestas. Além do que a destruição dessas coletividades aprofunda a dependência nesse sistema de cuidados hegemônico, tornando a falta de exemplos concretos de alternativas um problema para a construção de outras utopias.

É diante desse cenário desfavorável que somos obrigadas a pensar e construir alternativas.

Politização do cuidado e lutas

Recentrar a economia para a vida, repensando o papel histórico relegado às mulheres de serem responsáveis por todo o cuidado, é uma luta urgente e necessária. A pandemia exacerbou a necessidade de pensar a dimensão dos cuidados em nossas vidas, quando observamos que a linha de frente da pandemia era composta por mulheres na saúde, as professoras sobrecarregadas com a realidade do ensino à distância, mães impossibilitadas de trabalhar com crianças em casa. Entender a necessidade de valorização do trabalho de cuidados, desprivatizá-los e fornecer condições concretas de políticas públicas para as mulheres se libertarem da sobrecarga é o caminho.

Movimentos feministas urbanos têm enfatizado a economia feminista como uma alternativa a essa crise, recentrando a organização da sociedade não pela lógica do lucro, mas para a do cuidado, da manutenção das condições de vida. A Marcha Mundial das Mulheres tem investido no desafio de "desmercantilizar" o cuidado, apostando que este, fora da família, seja acessível a todos, não apenas aos que podem pagar por ele. Ao lado disso, a valorização do trabalho doméstico e de cuidado deve estar atrelada à distribuição de responsabilidades e à expansão e ampliação das infraestruturas públicas para o cuidado: a) aumento de creches e centros de educação infantil; b) espaços para cuidado dos idosos; c) formação e organização do trabalho de cuidadores/as em casa; d) garantias de direitos trabalhistas a domésticas e cuidadoras.

É preciso inserir na agenda da esquerda algo além do debate da produção, seu controle, e também pensar a dinâmica de reprodução, repensando o trabalho doméstico e de cuidados. Não apenas reconhecer sua existência diante da invisibilidade que paira é uma tarefa, mas também perceber como sua realização é feita de forma injusta e desigual, isso porque as mulheres são as que arcam com a maior parte desse trabalho. Por isso, precisamos pensar urgentemente em uma forma de reorganização e de redistribuição do trabalho doméstico e de cuidados.

As mulheres dos campos, das florestas e das águas também têm, por meio de uma ecologia feminista, integrado os debates de cuidado com os movimentos socioambientais, construindo alternativas desde a resistência e (re) existência de saberes de cuidado que existem, entre outras formas de organização social ainda presentes entre nós, como as das comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais e povos indígenas. As práticas de socialização do cuidado das crianças, exercida por homens e mulheres, nas cirandas dos movimentos populares, e as novas distribuições da tarefa de preparo de alimentos são alguns exemplos de alternativas.

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Letícia Paranhos, da Amigos da Terra Brasil, afirma que "o movimento feminista tem nos ensinado que a economia feminista é mais do que um conceito, é uma ferramenta de luta. Aprendemos, por meio de discussões sobre a sustentabilidade da vida, a noção de interdependência, em que necessitamos de cuidados ao longo de toda a vida. Também compartilhamos muito sobre a ecodependência; para a sustentabilidade da vida, a natureza é a base de tudo, rechaçando a falsa ideia de separação entre seres humanos e a natureza. Somos natureza. Esses entendimentos questionam e confrontam o atual modelo de (re) produção e cuidado. É urgente pensar políticas públicas com base no respeito dos tempos, tempos estes que devem repensar as jornadas de trabalho e combater a mercantilização da vida".

É preciso valorizar os avanços em nossa região, conquistados pelas mulheres na Argentina, Chile e Uruguai, com as lutas pelo reconhecimento dos trabalhos de cuidado não pagos nos cálculos previdenciários. Ou, ainda, destacar as discussões na Argentina para se firmar uma política de cuidados no país, a exemplo da criada no Uruguai.

O cuidado no Brasil e a necessidade de superação

Na contramão da discussão mundial e dos avanços regionais, o atual governo brasileiro, sobretudo por meio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tem contribuído para a brutalidade da agenda neoliberal do cuidado. Isso porque defende o papel da família em assegurar o cuidado ao invés de investir em políticas públicas para sua superação. Acreditar que a família vai absorver o impacto das políticas de austeridade é mercantilizar e privatizar a vida.

O fechamento da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, ainda no Governo Temer, representou o desmantelamento de toda uma estrutura que vinha avançando em repensar a organização do cuidado no Brasil. A política de acolhida na Casa da Mulher Brasileira e a produção de dados sobre a reorganização familiar estavam entre as atividades paralisadas. Ao passo que o investimento na família nuclear brasileira, em valores conservadores, durante o Governo Bolsonaro, tem feito explodir a violência contra as pautas políticas de mulheres, construindo um cenário no qual sequer há espaço para o debate.

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O cuidado é uma responsabilidade coletiva, social, que deve ser  compartilhada entre homens e mulheres, com um papel bastante ativo do Estado. É necessário avançar para uma participação ainda maior das mulheres no mercado de trabalho formal com igualdade salarial, na redistribuição das tarefas de cuidado na sociedade, no avanço da proteção social para cuidadoras e empregadas domésticas. E na garantia dos direitos das mulheres à autonomia sobre seus corpos, assim como ao aborto com cuidados médicos legais, estes são alguns dos passos para se avançar numa economia centrada na sustentabilidade da vida.

"Queremos e precisamos de mudanças reais e radicais na nossa sociedade, estamos em momento eleitoral e os partidos do campo progressista precisam incorporar perspectivas que coloquem a sustentabilidade da vida no centro da economia e da política", defende Letícia Paranhos.

* Amigos da Terra Brasil (ATBr) é uma organização que atua na construção da luta por Justiça Ambiental. Quinzenalmente às segundas-feiras, publicamos artigos sobre justiça econômica e climática, soberania alimentar, biodiversidade, solidariedade internacionalista e contra as opressões. Leia outros textos.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko e Nicolau Soares