Rio Grande do Sul

Coluna

O espírito do capitão Rodrigo Cambará

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"A imagem deste tipo de gaúcho, que não envelhece porque é mais ideia do que gente, para mim sempre se assemelhou, no trato e nas atitudes, ao ex-bancário Olívio Dutra" - Reprodução
Capitão Rodrigo representa o guerreiro poeta, que ama a vida sem temer a morte. Me lembra Olívio!

Nesta semana escutei uma poesia declamada por um gaúcho de respeito, das antigas, em uma banda moderna, de rock, e me veio a vontade de passar adiante.

Fui atrás de detalhes para dividir o que encontrei, e esse será o tema desta coluna.

Mas para não fugir muito do formato tradicional, comecemos por coisas de relevância nacional, que nos convocam a lidar com os valores fundantes do que somos, em face da necessidade de ajustes impostos por estes tempos. Escrevo isso adiantando que pretendo chegar no final, ao momento onde se unem os cantos, as lutas e a dignidade de raízes campeiras à rebeldia honesta, moderna, de matriz roqueira.

Não qualquer rock nem qualquer milonga, nada de fogo de palha, nem de nhem-nhem-nhem caça níquel. Me refiro aqui à rebeldia do rock de verdade, que inova a partir de uma brasa de cerne, respeitosa, pau-ferro de espinilho, de cambará.

Mas disso tratamos depois, por hora, como diria o Rodrigo, deixa que se espalhem.

Primeiro vale referir que o orgulho, dentro de certos limites, é coisa boa.

Ele impõe respeito com o que nos circunda, senão por nós, pelo menos para que de nós não se envergonhem os netos. Afinal, que será de nós quando os piás de hoje se derem por conta de que abaixamos a cabeça e fazemos vista grossa para agentes da República que, metaforicamente, estão nos cuspindo na cara?

É forte, e não é motivo de orgulho, mas sim de vergonha. Mas é a imagem que me ocorre quando vejo o pedido de arquivamento de todas as ações judiciais solicitadas, após meses de trabalho, pela Comissão Parlamentar de Inquérito que avaliou os acontecimentos da CPI da Covid. Os senadores desmoralizados pela decisão da subprocuradora geral, Lindôra Araújo, dizem que isso não vai ficar assim.

Estão em marcha, reclamando para o povo, o Papa e o STF. Talvez funcione. Afinal, o povo pode mudar isso e nesta semana até a União Brasil e a Federação Nacional das Indústrias já estão se afastando da fonte do mau cheiro. E convenhamos, o tráfico de influências, as propinas para superfaturamento de vacinas, o descaso a empresas reais em favor de comerciantes tabajara, os experimentos humanos com remédios sem serventia, a desocupação forçada de leitos para ampliação das altas hospitalares, o não atendimento de povos indígenas, a propaganda enganosa, as compras e a distribuição de cloroquina e tubos com oxigênio alimentados em postos de gasolina, os deboches, as risadinhas, tudo isso e  sabe-se lá o que mais, não pode ser varrido, impunemente, para debaixo do tapete. Ou pode?  

Na interpretação das mais altas autoridades dentre os servidores públicos responsáveis pela fiscalização das leis, no país, não só pode como deve.

Por isso a Ilma Sra. Prof. Dra.  Lindôra Araújo, subprocuradora geral da República, no exercício da titularidade, que já se mostrara capaz de cortar o microfone do presidente da OAB, por não gostar do que ele estaria falando no IX Fórum Jurídico Brasileiro, agora eliminou tantos problemas para aquele-de-quem-não-se-fala-o-nome que se torna forte candidata a ocupar poltrona vitalícia junto ao grupo negacionista do STF.

Entra na cancha reta contra seu chefe, o Procurador Geral da República, Augusto Aras, que disputando a mesma vaga, precisa ficar atento. Diante disso e considerando que as vaias das arquibancadas pesam mais que os elogios dos colegas de palco, o Procurador Geral da República deve ter finalmente entendido que neste governo, em qualquer disputa, de pouco vale ser o cavalo do comissário. Afinal, convenhamos, e pra azar dos cavalos o delegado é maluco e parece estar contando com vantagens muito ao seu estilo, daquelas em que outros sangrarão por conta de entreveros que os borrachos possam vir a desatar, com faca e bala.

Mas estou me alongando.

Comecei esse texto pensando tratar da importância dos rosnados e tapinhas nas costas, das barras de ouro e ameaças de cadeia, enfim, das promessas de punições ou recompensa para o controle de determinado tipo de pessoa, mas ainda não cheguei nos exemplos iniciais.

Me explico: dá pra entender mais fácil com os animais.

Inexistindo fundamentação moral para sustentação de valores como a ética e a dignidade humana, os bichos sempre aproveitam as oportunidades que surgem no ajuste dos novos tempos. Mas com gente é diferente.

E isso pode ser ilustrado, tanto pelo lado negativo, no caso do perdão dos crimes apontados na CPI da Covid, como nos exemplos opostos dali emanados. E são muitos. Para ficar em dois casos, vejam o que se passou com Andréa Stinghen e Pedro Hallal. Foram perseguidos e continuam sofrendo ameaças por terem mantido posturas dignas, eticamente responsáveis, antagônicas à orientação negacionista do governo. Deve ter sido difícil, mas eles deixarão para os mais jovens o exemplo e o orgulho de não terem cedido.

Poucos sabem disso, mas certamente ninguém discordaria que este seria um país melhor, se aqui os estudos de Andréa, mostrando efeitos tóxicos da cloroquina sobre vasos sanguíneos, tivessem sido levados a sério. Quantos casos de trombose e infartos associados à covid poderiam ter sido evitados?

E quanto aos alertas de Pedro Hallal? Risco dobrado para pessoas negras e quintuplicado para povos indígenas? Se viessem a ser adotados como orientação para práticas preventivas, quantas mortes teriam sido evitadas?

Bem sabemos que são muitos os campos onde, no Brasil de hoje, a dignidade, que precisaria ser valorizada no interesse de todos, está sendo penalizada, quando não criminalizada, para vantagem de poucos.

Como exemplos considere-se análises recentes de O JOIO E O TRIGO, mostrando perseguições institucionais a estudiosos brasileiros que insistem em revelar danos à saúde humana, causados pelos agrotóxicos.

Vale lembrar aqui os seguintes casos:

Vicente Almeida, um dos fundadores da Rede Irerê de Proteção à Ciência e pesquisador líder de análise que desmistifica o anuncio de redução de agrotóxicos em lavouras transgênicas, foi demitido.

Fernando Carneiro, pesquisador que liderou a publicação do Dossiê Abrasco - Impactos dos Agrotóxicos na Saúde e do Dossiê Contra o Pacote do Veneno e em Defesa da Vida sofre contínuos assédios judiciais.

A tônica de hostilidades e ameaças também é sentida por Marcia Montanari, Débora Calheiros e outros pesquisadores.

Finalmente, para não exagerar nesta parte introdutória ao assunto da coluna, temos o caso de Mônica Lopes Ferreira, envolvendo pesquisas já comentadas acima e que estão detalhadas nesta reportagem. Tendo demonstrado inexistência de “dose segura” para agrotóxicos que sustentam os lucros de transnacionais do ramo, Mônica foi proibida de publicar suas conclusões, perdeu o cargo de chefia, teve cancelamento de convites para eventos e ainda enfrenta procedimento administrativo interno ao Instituto Butantan, onde trabalha.

O importante aqui é lembrar que estes casos são sinalizadores de algo que acontece diariamente, em diferentes formatos e desde o golpe de 2016, em sabe-se lá quantas repartições públicas controladas por negacionistas, medíocres ou não.

Por quê? Porque, quero crer, as resistências são a regra. O Brasil espera com paciência o fim deste período triste, alimentando em silêncio os valores que definem o que somos e o que queremos ser. Há nisso uma força maior do que a atratividade de conveniências ou o medo de punições.

E aqui no RS isso é particularmente importante porque, apesar do avanço do fascismo, nossos mitos originais ressurgem de tempos em tempos como espelhos, onde queremos nos refletir. Imagens que brotam em ações de pessoas reais, do presente, como Zorávia Bettiol, Caio Lustosa, ou do passado, como Sepé Tiaraju, Teixeira Nunes e Antônio de Souza Netto. Carregam o simbolismo de figuras imaginárias, que nos sintetizam, como sabemos que teriam sido, se encarnassem, Ana Terra e o capitão Rodrigo Cambará.

E é deste último que quero falar porque daí veio esta coluna.

“Um Certo Capitão Rodrigo” é o terceiro episódio do romance "O Continente", parte da trilogia "O Tempo e o Vento", de Erico Verissimo.

Ele representa o guerreiro poeta, que ama a vida sem temer a morte.

É aquela pessoa que sabia a importância do respeito, como elo de conexão entre tudo e todos. Uma persona que dá corpo ao conceito por detrás da palavra. Alguém que sabe a base do que tem valor, do que não se vende, não se compra, só se recebe por doação, ao mesmo tempo em que só se dá a quem já o tem, e o distribui. Respeito. Respeito é bom e eu gosto, diria Rodrigo Cambará, um capitão que não envergonharia exército algum.

Pois bem, este tipo de gaúcho, que está em brasileiros de todos os rincões, como aqueles já citados, cá entre nós – ao menos a meu ver – nunca foi um fazendeiro, um patrão. Sempre esteve mais para peão, para trabalhador, para poeta declamador e contador de causos.

E a imagem deste tipo de gaúcho, que não envelhece porque é mais ideia do que gente, para mim sempre se assemelhou, no trato e nas atitudes, ao ex-bancário Olívio Dutra.

Veio daí meu prazer ao vê-lo declamando poesia em um show da banda Capitão Rodrigo. Guitarras elétricas e poesia gaudéria, ajustadas fio a fio, mostrando o Rio Grande do Sul que, recusando o cabresto, e retomando o controle de nossa história, poderemos vir a ser.

A banda é produto do Grupo Mosaico Cultural. Articulação multifacetada de produtores de artes, de vários naipes, tipos e tiques, em parceria verdadeira, como deve ser a vida e como mandam os princípios da alegria e da agroecologia.

Pois bem, entrei em contato com eles, que autorizaram fazer pequeno recorte no show e aqui apresentar a música poema “Milonga de um Gaudério Metropolitano”.

Uma espécie nova, para mim, ao mesmo tempo forte como as do Vitor Ramil, harmoniosa como as do Nei Lisboa, e com a energia dos Replicantes. Tudo isso carecendo de um nome, em termos de estilo, mas já apontando no rumo de um barco, que como o de Garibaldi, firme nas rodas e com bons ventos quem sabe nos trará uma mais nova e moderna configuração de futuro cultural, respeitosa ao passado, e substituindo as enganações que campeiam por aí ao sabor do agropop e seus clubes de tiro.

Enfim, terminando, vamos ao que interessa mostrar e divulgar: com música de Rafa Cambará, Cuba Cambará e Nando Rossa; com letra de Rafa e Cuba Cambará com ajustes de Olívio Dutra Cambará, que segundo me disse o Rafa, assim se expressou no momento decisivo: “se me for permitido fazer algumas alterações para melhor oratória...”

Preceito do velho e do novo momento... Música da raiz campeira à beira da matriz roqueira.

 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko