Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

“Mulheres continuam a ser mortas somente por serem mulheres”, afirma juíza Taís Culau

BdFRS entrevista a juíza corregedora da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Família

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"A violência doméstica geralmente acontece em forma de ciclos de violências", avalia a juíza Taís Culau de Barros, - Foto: Juliano Verardi/DICOM-TJRS

O Agosto Lilás marca o mês de conscientização pelo fim da violência contra a mulher e o aniversário da Lei Maria da Penha. O Rio Grande do Sul registra, de acordo com o levantamento do Lupa Feminista, 70 feminicídios no estado, de janeiro até julho deste ano. 

Dados do Observatório Estadual de Segurança Pública, da Secretaria da Segurança Pública, aponta que neste mesmo período o RS registrou 68 feminicídios, 132 tentativas, 17.708 ameaças, 10.127 lesões corporais e 1.257 casos de estupro (incluindo de vulnerável). De acordo com o relatório da Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios, divulgado em julho deste ano, 991 mulheres foram mortas no RS nos últimos 10 anos. 

Para a juíza corregedora da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do RS, Taís Culau de Barros, houve um aumento preocupante do número de feminicídios, que são os homicídios cometidos contra mulheres por questões de gênero. “Mulheres continuam a ser mortas somente por serem mulheres”, frisa. 

Em janeiro deste ano, a Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid), sob responsabilidade da juíza Taís, divulgou uma pesquisa que aponta que em 69% dos casos, as tentativas ou assassinatos de mulheres envolvem os ex ou companheiros atuais das vítimas. 

Ainda, segundo a pesquisa da entidade, dos crimes que acontecem nas casas das vítimas, 58% são motivados pela inconformidade com o fim dos relacionamentos e por sentimentos de posse e de ciúmes. Em 86% dos casos, as mulheres não contavam com Medidas Protetivas de Urgência (MPU). A maior parte são mulheres jovens de 18 a 38 anos, 63% brancas e 22% negras. Já os réus, 79% são brancos e 16% negros. As armas utilizadas nesse tipo de crime são as brancas (53%), de fogo (19%) ou as próprias mãos (17%). 

Um dos gargalos quando se trata do combate à violência contra as mulheres diz respeito ao investimento. De acordo com o relatório da Força Tarefa, ao longo dos últimos anos, especialmente entre 2017 e 2021, há uma queda de mais de 90% no orçamento para as políticas para as mulheres. “Realmente há necessidade de investimentos nos mais diversos setores envolvidos com a questão, há, por exemplo, falta de casas de acolhimento que poderiam receber essas mulheres e seus filhos, há falta de policiais nas delegacias especializadas e precisamos aumentar as equipes multidisciplinares envolvidas nos processos. Em algum momento há falhas na inserção da mulher na rede de proteção e sua não inclusão dificulta o combate à violência”, destaca a magistrada. 

Formada na PUC/RS, em 1997, Taís possui Pós-Graduação em Criminologia e Justiça Criminal na Portland State University. Ingressou na magistratura em 1998, tendo atuado nas Comarcas de São José do Ouro, Getúlio Vargas, Taquara, Butiá, Carazinho, Sapucaia do Sul e, nos últimos 5 anos, estava atuando na 1ª Vara do Júri de Porto Alegre. Em 8/2/2021, ela assumiu como Juíza-Corregedora, ficando à frente da Cevid. 

Abaixo a entrevista completa.

Brasil de Fato RS - O Agosto Lilás marca o mês de conscientização pelo fim da violência contra a mulher e o aniversário da Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006. Como a senhora analisa a situação da violência contra a mulher no estado?

Taís Culau - A situação da violência contra a mulher no estado e no país é muito séria e inspira o engajamento de toda a sociedade na luta pela igualdade de gênero e contra a violência. No estado houve um aumento preocupante do número de feminicídios, que são os homicídios cometidos contra mulheres por questões de gênero. Ou seja, mulheres continuam a ser mortas somente por serem mulheres. 

Por ouro lado, foram concedidas mais de 60 mil medidas protetivas de urgência no primeiro semestre, o que demonstra a ocorrência de muitas situações que colocaram em risco as mulheres, mas mostra a procura pelo Poder Judiciário e pela Rede de Proteção. Essa busca de medidas é benéfica, pois se sabe que as medidas protetivas podem salvar vidas.

BdF RS - Diversos movimentos e entidades da sociedade civil apontam como um dos gargalos nesse debate a falta de investimentos e a desarticulação da rede de proteção às mulheres. Como essa situação “contribui” para o atual momento?

Taís Culau - Realmente há necessidade de investimentos nos mais diversos setores envolvidos com a questão, há, por exemplo, falta de casas de acolhimento que poderiam receber essas mulheres e seus filhos, há falta de policiais nas delegacias especializadas e precisamos aumentar as equipes multidisciplinares envolvidas nos processos. Em algum momento há falhas na inserção da mulher na rede de proteção e sua não inclusão dificulta o combate à violência. 

Temos feito, em nível estadual, diversas atividades de articulação de rede, inclusive através do Comitê Interinstitucional Em Frente Mulher para identificar os pontos de falha e articular a rede de proteção, o que é essencial para o combate à violência.

BdF RS - Ano passado a coordenadoria divulgou uma pesquisa em que aponta que 69% dos casos de tentativas ou assassinatos de mulheres envolvem os ex ou companheiros atuais das vítimas. Mais da metade deles acontece dentro de casa. É possível saber onde e como inicia essa violência?

Taís Culau - Sabemos que a violência doméstica geralmente acontece em forma de ciclos de violências e que, normalmente, em casos de feminicídio a vítima já sofreu violências anteriores, sejam violências físicas ou psicológicas.

Simplificadamente, no ciclo de violência a mulher sofre a violência, depois há o arrependimento do agressor, pedidos de desculpas, há um período de paz e, posteriormente, nova agressão (que, volto a frisar, pode ser psicológica). Esses ciclos são cada vez mais curtos (em espaço de tempo) e usualmente aumenta o grau da agressão. 

Portanto, é essencial que a vítima consiga identificar a violência, que a mulher consiga notar que atos de humilhação, de cerceamento de sua liberdade, ofensas, etc. são atos violentos e que podem evoluir para situações bem mais graves. Importante também o auxílio e intervenção de pessoas próximas à vítima e ao agressor para que a vítima consiga sair desse ciclo.

É essencial que a vítima consiga identificar a violência, que a mulher consiga notar que atos de humilhação, de cerceamento de sua liberdade, ofensas são atos violentos e que podem evoluir para situações bem mais graves

BdF RS - Como prevenir a violência doméstica, o feminicídio? Que ações deveriam ser tomadas?

Taís Culau - A primeira intervenção é o auxilio à vítima de violência para que ela busque uma medida protetiva. Sabemos que 90% das vítimas de feminicídio não tinham medidas protetivas vigentes no momento do crime, portanto, se a vítima tem medida protetiva sua vida pode ser salva.

O segundo aspecto a ser destacado é a importância da conscientização e da educação. Verificou-se em recente pesquisa que os motivos relacionados aos feminicídios são ciúme, término de relacionamento, sentimento de posse. Em outras palavras, a cultura machista que identifica a mulher como uma posse do homem precisa ser combatida. Dessa forma, ações educativas são essenciais.

BdFRS - Qual o papel do TJ quando se trata de violência doméstica?

Taís Culau - O TJ/RS atua em várias frentes. A primeira delas é o trabalho dos juízes com atribuição nessa matéria que analisam os processos de violência doméstica. Os juízes analisam pedidos de medida protetiva de forma imediata, em menos de 48 horas o pedido é analisado e há uma resposta. A partir daí, resumidamente, há um processo criminal, onde são assegurados às partes todos seus direitos. Essa é a função principal do Judiciário, a prestação jurisdicional. Mas na área da Violência Doméstica as atribuições vão além, esses mesmos magistrados desenvolvem projetos em suas comarcas visando a prevenção e a articulação da rede de proteção.

Em nível estadual, a Coordenadoria das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/RS atua fomentando projetos estaduais para melhor atenção às vítimas, identificando e disseminando as boas práticas das unidades jurisdicionais, trabalha para o aprimoramento das estruturas relacionadas ao combate da violência. Também é feita a capacitação e atualização constante de magistrados e servidores que atuam na área, além da organização e coordenação das semanas de esforço concentrado de julgamento do processos e articulação interinstitucional.  

É necessária uma mudança cultural profunda para que a violência contra a mulher deixe de existir

Para exemplificar, foi idealizado (pela Dra. Marcia Kern) um Projeto chamado Sarau Capitu e outras mulheres, que é um sarau que alia literatura, música e arte na educação e conscientização pela igualdade e contra a violência. Transformamos esse Sarau em um vídeo e celebramos um convênio com a Secretaria de Educação do Estado visando apresentar essa atividade educativa nas escolas para que se altere o machismo e a normalização à violência e de atitudes que relacionam a mulher a uma posse do homem. Isso porque é necessária uma mudança cultural profunda para que a violência contra a mulher deixe de existir.

Como aprimoramento jurisdicional, a Cevid transformou um guia de Serviços (criado pela Dra. Madglei Franz Machado) em um projeto estadual para que as mulheres que pedem uma medida protetiva, recebam além da resposta jurisdicional, um guia simplificado que esclarece sobre a rede de apoio a sua disposição e sobre quais as atitudes que pode tomar no processo e como buscar auxílio.

Além disso, como já referido, o TJ/RS trabalha em conjunto com as demais instituições na busca do aprimoramento do acolhimento e proteção integral às vítimas.


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Edição: Katia Marko