Rio Grande do Sul

DIREITO À CIDADE

Artigo | O direito ao lazer e a privatização de parques e praças de Porto Alegre

Conceder praças e parque para a iniciativa privada significa cercear o direito ao lazer de grande parcela dos cidadãos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A Redenção é um dos parques na mira privatista do governo de Sebastião Melo - Foto: Joana Berwanger/Sul21

As políticas de lazer e esportes na cidade de Porto Alegre já existem há muito tempo, tendo seu início com a criação do primeiro Jardim de Recreio (1926) e continuidade com a institucionalização do Serviço de Recreação Pública (1950). O seu ápice ocorreu em 1993, com a estruturação da Secretaria Municipal de Esportes, Recreação e Lazer (SME), criada pela Frente Popular.

Desde o surgimento dessas estruturas e serviços públicos, as ações desses setores se efetivaram especialmente nos parques e nas praças da cidade. Nesses locais, denominados Unidades Recreativas, a Prefeitura vem oferecendo serviços de profissionais de Educação Física voltados para pessoas de todas as idades, desde crianças até idosos. Isso contribuiu para o acesso democrático aos espaços públicos da cidade e às práticas de tempo livre, e ainda incentivou a criação de associações populares que participam de decisões e assumem responsabilidades para a manutenção desses locais.

Em 2017 o governo Nelson Marchezan Junior (PSDB) extinguiu a SME, ‘desinvestimento’ que reduziu o corpo de profissionais e, consequentemente, a oferta de atividades de lazer à população. Sebastião Melo (MDB) reativou o setor (2022), denominado agora Secretaria Municipal de Esporte, Lazer e Juventude, mas ‘investe’ para a realização de concessões de praças e parques à iniciativa privada. Ambas as iniciativas se orientam pela agenda neoliberal, que busca a diminuição do Estado, desobrigando-o de oferecer serviços de lazer para a os cidadãos.

Mas essas iniciativas foram motivo de críticas e pressões: a extinção da SME ocorreu com protestos por parte da população, especialmente a partir do movimento Somos Todos SME, que ‘lotou’ a Câmara dos Vereadores em três oportunidades. Melo recebe críticas às concessões das praças e parques, o que vem acontecendo através de várias manifestações, como o Abraço à Redenção (3.000 pessoas), promovido pelo Coletivo Preserva Redenção.

Mas em que medida o lazer é importante a ponto de merecer investimentos públicos? O que faz com que a população se manifeste quando os setores ‘do lazer’ estão ‘em perigo’? Respondo a partir de um relato da minha vida pessoal.

Numa conversa em que eu criticava a extinção da SME, o meu interlocutor me disse algo assim: “não há dinheiro para manter todos os serviços públicos... e o lazer não é tão importante como outras coisas”. Eu respondi dizendo que as políticas esportivas e de lazer se relacionam direta e positivamente com diferentes dimensões da vida, como a saúde, a educação, o desenvolvimento pessoal e inclusive a segurança. Várias pesquisas apontam nessa direção.

Mas o fato é que o meu interlocutor era uma pessoa com boa situação econômica, tem casa na praia, pratica futebol em quadras alugadas, é usuário de academia, faz viagens pelo Brasil e para o exterior, frequenta cinemas, shoppings e restaurantes. O meu interlocutor não poderia ser chamado de uma pessoa ‘sem lazer’ e talvez desqualificasse os serviços públicos nessa área por não ser um dos seus usuários. Mas é evidente que ele dá valor a essas atividades, até porque vivencia uma variedade de práticas de lazer que o ‘mercado’ oferece para quem pode pagar. A existência de um potente ‘mercado do lazer’ voltado para um fiel público consumidor é uma evidência da importância que as atividades do tempo livre têm para as pessoas.

Diferente é a vida de quem não tem acesso regular a essas atividades, já que lhes falta tempo para elas: algumas pessoas despendem horas diárias em deslocamentos para o trabalho e/ou ocupam parte do fim de semana em ‘bicos’ para complementação de renda. Quando têm tempo disponível, vivem o lazer dentro de possibilidades restritas, limitadas às atividades de baixo custo, como assistir à televisão aberta ou ‘bater papo’ com amigos e amigas pela vizinhança. Quando podem, ocupam os parques e praças das cidades, locais que lhes possibilitam encontros e práticas de atividades que lhes trazem alegria e lhes dão prazer. São essas pessoas que necessitam dos serviços públicos nessa área – foram elas que protestaram quando da extinção da SME e elas serão prejudicadas se ocorrerem as pretendidas concessões.

Essas diferentes realidades dizem algo sobre as desigualdades que ocorrem no âmbito do lazer, aspecto já estudado por pesquisadores da área.

Sobre o assunto, o Relatório Nacional de Desenvolvimento Humano do Brasil – Movimento é Vida: Atividades Físicas e Esportivas para todas as pessoas, realizado em 2017 e centrado em atividades realizadas no lazer da população, mostrou 1) que o acesso às atividades físicas e esportivas no lazer se relaciona positivamente com o Desenvolvimento Humano de uma sociedade e 2) que as disparidades brasileiras relativas às condições econômicas, níveis de instrução, raça, gênero, idade, entre outros, se refletem nas possibilidades de acesso às práticas realizadas no lazer.

Um dado desse Relatório sintetiza essa desigualdade: homens brancos, com formação universitária e com rendimentos mais altos têm 4,5 vezes mais possibilidades de ter acesso às práticas esportivas realizadas no lazer, do que mulheres negras, com ensino fundamental incompleto e localizadas em estratos econômicos mais baixos.

Mas o relatório mostra outros fatores que também interferem no acesso às práticas esportivas no lazer, os quais, associados aos anteriores, também conduzem às desigualdades sociais que existem nessa dimensão da vida das pessoas. Entre eles, estão o local de moradia e a sua proximidade (ou não) de parques e praças públicas, assim como de outras instalações recreativas. 

Porto Alegre se caracteriza por ser uma cidade rica em parques e praças, locais que muitas pessoas procuram na expectativa de desfrutar experiências emocionais agradáveis, encontrar pessoas e se relacionar por diferentes formas de sociabilidade. Tanto durante a semana, como nos fins de semana, são espaços utilizados por inúmeras pessoas que os vivenciam de várias formas, individual ou coletivamente, inclusive associados a grupos ‘institucionalizados’. Assim, como habitués ou frequentadores eventuais, muitas pessoas e grupos encontram nas praças e parques um tempo/espaço para exercer o seu direito à cidade, mais especificamente, o direito ao lazer.

Sim, o lazer é um direito dos cidadãos, o que está previsto em vários documentos de âmbitos nacional, estadual e municipal: a Constituição Federal prevê o direito ao esporte e ao lazer; a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul institui garantias para o desenvolvimento de atividades de esporte e lazer; o Estatuto da Cidade estabelece garantias do direito às cidades, o direito ao lazer e aos espaços a ele destinados; a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre determina garantias no sentido de tornar efetivos os direitos ao esporte e ao lazer; o Estatuto do Idoso e também o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem como obrigação do poder público assegurar a efetivação do direito ao esporte e ao lazer para essa população.

A partir do que está referido nas páginas anteriores, finalizo:

  • as ações de políticas de esporte e lazer de Porto Alegre existem há muito tempo e, em grande medida foram/são desenvolvidas em parques e praças da cidade, locais onde os principais serviços são/vêm sendo oferecidos;
  • apesar de ‘contratempos’ e mesmo ‘desinvestimentos’ efetivados por alguns governantes, elas vêm se mantendo como políticas ‘de Estado’ graças ao engajamento do seu corpo de funcionários e pressões da população através das suas lideranças;
  • essas lideranças, junto com demais usuários, têm participado da gestão das Unidades Recreativas, contribuindo para a sua manutenção – não necessitam da iniciativa privada para as suas ações;
  • nesse contexto, a continuidade da característica ‘pública’ desses equipamentos da cidade se mostra fundamental para a garantia do acesso democrático a experiências qualificadas no âmbito do lazer;
  • restringir o acesso a esses espaços e serviços via concessões à iniciativa privada demandará custos aos usuários, aspecto que, além de desmobilizar as comunidades que vêm contribuindo para a sua gestão, implicará em excluir desses locais aquelas pessoas que não tiverem recursos para neles adentrar;
  • nessa perspectiva, conceder as praças e os parque para a iniciativa privada significa cercear o direito ao lazer de grande parcela dos cidadãos porto-alegrenses.

 

Venho, então, me manifestar contrariamente a essa iniciativa de caráter privatista/neoliberal proposta pelo governo Sebastião Melo.

* Professor aposentado na ESEFID/UFRGS e membro do Comitê de Lutas ESPERANÇAR

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira