Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

“Catorze terras indígenas estão prontas para demarcação”, afirma Joziléia Kaingang

Em entrevista ao BdF RS, a chefe de gabinete do Ministério dos Povos Indígenas adianta que três delas estão no Sul

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Uma das lideranças indígenas que pilota o Ministério dos Povos Indígenas, Joziléia Kaingang concedeu entrevista ao BdFRS no programa Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato - Reprodução

Mestra em Antropologia Social e cursando doutorado na mesma disciplina na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Joziléia Daniza Jagso Kaingang é uma das lideranças indígenas que pilota o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), pasta criada pelo governo Lula.

Nesta conversa durante o programa Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato, ela aborda a violência desatada contra o povo Yanomami, o papel militante das mulheres indígenas contra a pandemia, o desrespeito dos civilizados perante a Mãe Terra, a devastação promovida pelo governo Bolsonaro nas políticas de proteção aos povos originários, o preconceito que sofreu na COP 27, realizada no Egito, por parte de fundamentalistas religiosos entre outros temas.

Adianta que o MPI está fazendo uma última varredura nos processos de demarcação de terras indígenas, duas delas em Santa Catarina e uma no Rio Grande do Sul, antes de encaminhá-los ao presidente da República.

Também entra no assunto do Morro Santana, em Porto Alegre, onde uma decisão judicial tensiona as famílias Kaingang que ocupam o lugar, ameaçadas de remoção com o uso da força policial. O prazo de retirada terminou na quinta-feira (9). Lá, a cacica Iracema Nascimento Gãh Té já recorreu até mesmo à greve de fome chamando a atenção para o drama vivido por seu povo.

Joziléia afirma que não somente os Kaingang mas Porto Alegre e o Rio Grande do Sul devem abraçar a causa dos indígenas do Morro Santana, já que o reconhecimento dos direitos dos povos originários beneficia humanos e não humanos, a natureza e a espiritualidade.

Assista a entrevista completa. Logo a seguir, um resumo da conversa.

 

BdF RS - Jozi, quem não acompanha a luta dos povos indígenas pode não ter a compreensão de como se deu essa conquista de um ministério próprio. Mas é uma luta de muitos anos e muitas marchas das mulheres. Fostes da direção da Articulação Nacional de Mulheres Indígenas, também da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Queria que falasses um pouquinho sobre isso.

Joziléia Kaingang - Os povos indígenas estão num processo de luta já há muitos anos, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, e quando a gente passa a responder por nós mesmos - porque antes da promulgação éramos tutelados pelo estado -- podemos buscar ecoar as nossas vozes.

A partir de 1988, vimos um aflorar do próprio movimento indígena nos debates, o que reverbera no início dos anos 2000, quando o movimento entende que precisa criar uma articulação nacional que dê conta de responder as demandas a partir do movimento das suas regiões, mas em uma esfera nacional e até internacional. Somos representados dentro da APIB pela Arpinsul, a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul.

Temos a Comissão Guarani Yvyrupa, que está desde o sul do Brasil até a região sudeste onde estão os Guarani, Guarani Ñandeva, Guarani Kaiowá, Guarani M'byá, Avá Guarani, representados então por essa articulação dentro da APIB, assim como APOINME, a organização regional do nordeste, a CUIAB, a organização da Amazônia legal, o conselho Terena, o conselho Aty Guasu, que compõem a APIB.

As mulheres indígenas foram se tornando invisíveis até dentro da nossa comunidade

Nós, mulheres indígenas, sempre estivemos nas nossas organizações de base na defesa dos nossos territórios e da demarcação das nossas terras, nesse lugar que sempre foi muito invisibilizado. A partir de um olhar que é muito do colonizador, as mulheres indígenas foram se tornando invisíveis, inclusive dentro das nossas comunidades.

Se antes do colonizador chegar tínhamos um papel central, porque somos nós que cuidamos na saúde, do alimento, que temos essa centralidade da casa, do educar, do cuidar. Mas compreendendo esse lugar de casa não como aquela estrutura física de uma casa, mas a partir de uma lógica indígena em que “casa” significa todo o território em que vivemos, como a gente elabora esse território com a nossa cosmologia, com o cuidado da natureza. Percebemos que a gente estava invisível e aí passamos a se organizar.

Tem aí registros de mais de 40 anos das mulheres que participam ativamente das ações do movimento. Mas a gente se organiza aqui em 2015 principalmente, a partir do projeto Voz das Mulheres Índígenas, realizado com a ONU Mulheres. A gente começa a perceber como precisávamos debater a violência contra os corpos das mulheres indígenas, e também como estamos silenciadas.

Começamos a construir uma rede forte no Brasil inteiro. Que vai se espraiar a partir da primeira marcha em 2019 que reuniu três mil mulheres indígenas em Brasília, trazendo o tema Território Nosso Corpo Nosso Espírito. Falava desse lugar que os nossos corpos ocupam, e que trazem sempre o diálogo com os nossos territórios, os nossos territórios presentes nas nossas vidas e nas nossas construções.

Depois da primeira marcha, tivemos a pandemia de Covid-19 e as mulheres indígenas deram uma resposta muito pronta. Quando a pandemia chegou nos territórios, foram as mulheres que conseguiram dar essa resposta e buscar informações para saber como tratar a pandemia, como se posicionar, como trazer informações que pudessem nos proteger. Foi tão importante para nós que conseguimos criar a ANMIGA, que é a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade.

Criar uma rede informando e principalmente ouvindo as mulheres e criando essa articulação, nomeando, parindo esse filho que estava sendo gestado, essa filha a ser gestada já desde 2015, com esse projeto Voz das Mulheres Indígenas.

O que a humanidade faz é sucumbir ao modo de vida que é proposto pelo capital

BdF RS - Parece que num determinado momento esse crescimento do protagonismo feminino entre os indígenas nos aproximou mais da América Latina, porque é assim na Bolívia, é assim no Peru, e não é assim no Brasil. E essa aproximação é uma aproximação associada a essa ideia de bem viver, que aqueles povos mais antigos tem e que nós perdemos...

Joziléia Kaingang - Conseguimos entender que o movimento não pode se dar só a partir de uma masculinidade, embora seja o movimento indígena, é a luta pela terra, é a luta pela nossa sobrevivência, é a Pachamama.

A gente tem que dialogar com outras mulheres de outros países, mulheres indígenas que também como nós querem cuidar da Mãe Terra, querem que nossos povos estejam protegidos nos seus territórios. Quando o movimento indígena brasileiro passa a dialogar mais a partir do nosso olhar de mulheres indígenas, conseguimos nos conectar com outros movimentos dos povos indígenas da América Latina.

Fizemos um encontro muito bonito trazendo as mulheres indígenas desse contexto latino-americano para chamar todas para a cura da terra. Estávamos dialogando por uma mesma causa. Se não nos posicionarmos agora não conseguiremos reverter tudo o que já foi feito e que tem causado um dano gigantesco à Mãe-Terra.

O que a humanidade está fazendo é tratar de forma desrespeitosa o único lugar que a gente tem para viver, o que a humanidade está fazendo é sucumbir ao modo de vida que é proposto pelo capital. Não faz sentido a gente ter uma conta bancária com dinheiro depositado se não pode ter comida. Vejo que os não-indígenas, às vezes, não percebem isso. Não faz sentido só ter a água engarrafada como a água possível para a gente beber. O que faz sentido é poder comer um peixe pescado no rio sem ele ter mercúrio que nos mata.

É a gente poder viver de forma boa, nos nossos territórios, com alimento que não é só agrotóxico. Eu fico imaginando que as outras mulheres não-indígenas também devem ter uma preocupação com isso. Hoje, as pessoas têm até dois ou três aparelhos telefônicos. E o que vamos fazer com esses aparelhos quando eles passarem a não ser os adequados? A gente descarta. Como se o elemento do qual ele é composto a gente pudesse comprar no supermercado.

BdF RS – Ser a chefe de gabinete desse novo ministério que precisa ser construído é um desafio muito grande. E está aí com uma demanda muito forte que vem de muitos anos, que é a situação do povo Yanomami e a questão do garimpo. Fala um pouco como está esse início.

Joziléia Kaingang - O ministério é uma demanda do próprio movimento indígena. No encontro com o presidente Lula, quando ele estava ainda para ser candidato, a gente pautou para ele uma necessidade nossa que era ocupar os demais ministérios, estar presente nos outros ministérios para que a gente pudesse incidir politicamente, trazendo as nossas realidades, as nossas demandas e tudo mais.

E aí o presidente Lula ouviu isso da Sonia Guajajara, quando ela era ainda coordenadora executiva da APIB da Amazônia, da CUIAB. O presidente disse então, no Acampamento Terra Livre, que ele criaria o ministério. Além de ser importante o ministério, vamos construir um diálogo com outros ministérios, acelerar demandas de muitos anos. São legítimas e estão na Constituição Federal e tudo o mais, como a demarcação das nossas terras.

Ter um ministério que dialoga com o governo é extremamente importante. Nós tivemos aí uma demanda do povo Yanomami que está morrendo por desnutrição, por malária, por adoecimentos que tem cura, que tem remédio que trata, e que eles não conseguem acessar. E não acessam justamente porque o governo federal (anterior) não quis implementar políticas públicas, retirou as políticas que atendiam de forma direta à população Yanomami e, além disso tudo, abriu as portas para trazer cada vez mais garimpeiros e madeireiras para dentro do território.

Os garimpeiros e os madeireiros restringem as áreas onde os Yanomami podem circular

Nas semanas que a gente está no ministério, já instituímos dois gabinetes de crise. Um é o dos Pataxó, do Sul da Bahia, com aquela violência e morte dos dois jovens, numa área que é um processo de retomada, e o outro é do povo Yanomami que é o maior território indígena demarcado no nosso país mas que não tem segurança hoje para vida dos Yanomami.

Além de serem impedidos de caçar e pescar, passam pelo impacto violento dos rios que estão contaminados pelo mercúrio. Várias situações levaram a essa crise. Começou quando os Yanomami não tiveram mais acesso a uma saúde de qualidade para poder tratar as doenças, quando passaram a ter um território restringido por conta do garimpo e altamente impactado no seu ambiente. Hoje, os madeireiros e garimpeiros restringem (a área) onde os Yanomami podem circular, onde podem fazer a coleta de frutas, onde podem fazer o plantio das suas roças.

Uma terra demarcada, com indígenas de recente contato e precisando do estado brasileiro como escudo protetor, não foi protegida. Pelo contrário, houve uma intencionalidade de ocupação desse território por garimpeiros, por madeireiros.

O Brasil é um país que não precisava ter conflito de terra. As terras agricultáveis já estão abertas para a agricultura e dão conta de produzir todo o alimento que a gente precisa e ainda exportar. O que não se quer é garantir a proteção das terras que devem ser protegidas.

O que se quer é cada vez mais explorar e não respeitar a vida de outras pessoas que vivem de um modo diferente e tem um modo diferente de se relacionar com o espaço em que estão. O Ministério dos Povos Indígenas já conseguiu construir um diálogo com o governo da Bahia e com o governo de Roraima. Mas outros governadores têm que fazer o seu papel e construir um diálogo superimportante e interministerial.

Enquanto movimento indígena, a gente já tem identificados os problemas. A partir do lugar que ocupamos durante muitos anos, de saber aonde o nosso sapato aperta, é que a gente pode dizer por qual caminho poderemos ter bons resultados.

A gente pode estar na aldeia, na cidade ou na universidade e vai continuar sendo indígena

Foi uma honra receber esse convite da ministra Sonia Guajajara. Caminho lado a lado com o movimento das mulheres indígenas há muitos anos. Desde a minha graduação pesquiso com as minhas parentas, meu TCC foi sobre isso, minha dissertação do mestrado sobre isso, minha tese de doutorado sobre isso.

Tenho dialogado com outras parentas e a gente entende que o lugar que a gente está ocupando nesse momento é um lugar de corpos coletivos. Não é só da Joziléia. É um lugar das mulheres Kaingang, das mulheres do Sul, um lugar que as mulheres indígenas podem ter pra fazer uso dessa voz, desse lugar, pra que a gente possa construir possibilidades de vida melhor pra todos nós.

Se os povos indígenas são impactados, nós mulheres indígenas somos as mais impactadas com toda a violência e exploração e também as nossas parentas que moram em contexto urbano. Participei (durante a pandemia) de um projeto chamado Vacina Parente, dando essa força para que os nossos parentes se vacinassem, não tivessem medo, não acreditassem nas fake news. A gente pode estar na aldeia, na cidade, na universidade, em um trabalho fora do país, que a gente vai continuar sendo indígena.

Os racistas objetificam alguém tornando-o um objeto que não vai sentir dor, não vai sofrer

BdF RS - Li uma carta do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), comentando do preconceito em relação a tua participação na COP 27. Não estás enfrentando um preconceito grande em Brasília quando falas da cura da terra num país que é dominado pelo agronegócio? Como está esse discurso?

Joziléia Kaingang - A gente está trabalhando tanto, chegando no ministério super cedo de manhã e saindo super tarde da noite, e não tenho conseguido ter tempo nem pra olhar as redes sociais.

Infelizmente na COP 27 fui vítima de um racismo perverso de mulheres e de homens que fazem parte de um organismo, que tem uma ligação com o fundamentalismo religioso – e é muito interessante porque fui, até poucos dias, funcionária do COMIN, que é o Conselho de Missão entre Povos Indígenas, que é parte da Fundação Luterana de Diaconia, e que me acolheram e estão me dando todo o suporte, inclusive jurídico, para que se possa enfrentar aquilo que a gente viveu. Percebo duas coisas naquilo. Uma que o racismo é muito violento.

Outra que ele (o racista) não consegue compreender e fazer uma leitura sobre o objeto pelo qual estão sendo racistas. Nós, indígenas de algumas regiões, como o Sul do Brasil, como o Nordeste, temos mais de 300 anos de contato com o não-indígena. Houve políticas de estado, de extermínio das nossas populações, as caçadas, os bugreiros, que praticamente exterminaram grande parte da nossa população no Sul, como também a violência contra os corpos das mulheres indígenas, desde estupros e casamentos forçados.

Mas para entender tudo isso, é preciso ler muito, estudar muito, querer saber sobre o outro, o que aconteceu com o outro. Os racistas não fazem isso. Simplesmente objetificam alguém, tornam isso não um ser humano, mas um objeto que não vai sentir a dor, não vai sofrer, não vai chorar, não vai se sentir diminuído, constrangido, e a partir desse objeto que criam daquele sujeito, eles desqualificam você.

O racismo não consegue considerar a história de ninguém. E o racismo obviamente entre as populações negras e indígenas é muito mais saliente. Mas eu sei que tem outras pessoas que também sofrem racismo. Já ouvi em vários lugares “O que os venezuelanos vieram fazer aqui? Por que que o pessoal tá vindo pra cá, quanto senegalês. O que que esses índios estão fazendo na cidade?”.

Enquanto indígena, a gente se sente constrangido até quando alguém chega e diz assim: “Eu quero te pedir desculpa pelo que já fizeram com vocês”. As pessoas vinham pra mim e diziam: “Joziléia, eu quero te pedir desculpa pelo que estão fazendo, eu me sinto incomodado por isso”. E eu me sentia constrangida. Estamos acostumados a só as pessoas diminuírem a gente, serem violentos com a gente, terem falas violentas com a gente.

É preciso pensar como fazer a desintrusão e não impactar as cidades pequenas

BdF RS – Desde o golpe de 2016 ficaram represados os processos de demarcação no Ministério da Justiça. Vocês já tem algum cronograma para dar prosseguimento? E no caso dos territórios já demarcados em todo o país e que requerem desintrusão, assim como a questão Yanomami, existe algum projeto pra definir um local ou trabalho para os garimpeiros, de modo que não retornem ao território?

Joziléia - Temos sim um planejamento da demarcação, da homologação das terras indígenas. Existem identificadas 13 terras que já estão prontas para homologação. A Funai identificou mais um território, então são 13 mais um. Já estavam prontas.

Estamos fazendo de novo esse levantamento, essa leitura, organizando tudo para que se possa ter essa demarcação. Inclusive de territórios do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. O Morro dos Cavalos (em SC), que é uma terra emblemática, está aí nesse grupo dos 13 territórios, Vicente Dutra (no RS) também, e temos Imbu em Santa Catarina também está nessa condição.

Fazemos esse papel junto com a Funai, uma varredura. O ministério dialogou com a Funai para fazer também a retirada dos coordenadores das regionais da Funai, pessoas alinhadas ao antigo presidente. A Funai passou a compor o Ministério dos Povos Indígenas e estamos fazendo esse levantamento e essas exonerações na própria Sesai, a Secretaria Especial de Saúde Indígena. A ministra já falou com o presidente e com os ministros de estado (dizendo) que é importante haver a desintrusão.

É preciso pensar como fazer a desintrusão e não impactar as cidades pequenas envolventes. Por exemplo: lá nos Yanomami são 20 mil garimpeiros. Simplesmente tirar os garimpeiros vai solucionar o problema? Mesmo esses garimpeiros sendo responsáveis por mortes, estupros, violências e violações, nós aqui no ministério, temos dialogado que a gente precisa ter uma política de emergência para poder mandar de volta quem tiver que mandar para suas cidades, fazer a construção de um programa que possa atender minimamente aos trabalhadores.

Sabemos que os donos do garimpo, que levam as pessoas pra lá, os donos das dragas, não estão lá garimpando. Sabemos que quem está lá está numa condição muitas vezes subhumana. Isso não é minimizar o que fizeram. Porque a violência que cometem contra as nossas populações precisam ser punidas. Mas se precisa pensar como retirar os garimpeiros de lá sem também impactar e colocá-los numa situação social que vai engrossar cada vez mais essa borda social excluída nos municípios.

Cada vez mais então a gente precisa pensar, dialogar de forma interministerial, para que que se possa ter uma solução. É importantíssimo responder de forma rápida às necessidades dos nossos parentes que estão sob ameaça, que estão sendo mortos. Tivemos a morte de três pessoas Guajajara no território de Araribóia, temos (outras) duas vítimas de violência também no território Araribóia, tivemos pessoas (mortas) no Sul do Brasil. Estamos aqui tentando de todas as formas conseguir dar as respostas possíveis e fazendo com que os ministros também pensem dentro dos seus ministérios como se pode responder e não deixar tudo no MPI, que a gente ainda é todo mundo muito novo e bem de movimento indígena.

Porto Alegre e o Rio Grande precisam abraçar a retomada do Morro Santana

Nós viemos de movimento indígena, então é muito interessante também, como trabalha o movimento e como trabalha o estado. Estivemos com a dona Iracema Gah Té, que é cacica lá na retomada Morro Santana. Sabemos da história do Morro Santana, principalmente aquele local onde a dona Iracema está retomando com as suas irmãs.

Porto Alegre é um território ancestral Kaingang, Porto Alegre precisa reconhecer, e muitos reconhecem isso, essa territorialidade, essa afetividade, a tradicionalidade da ocupação do povo Kaingang. Aquele local da retomada do Morro Santana está nas mãos de uma exploradora. Não posso chamar de outra coisa. Não vou chamar de empresa. Vou chamar de exploradora, que não conseguiu dar conta de usar aquele local de forma adequada. Aquele local estava abandonado e agora também podemos fazer essa leitura da especulação imobiliária, que está agindo de forma direta para que não haja a ocupação pelas populações indígenas que estão ali. E, à frente dessa retomada, está a dona Iracema. Ela entregou no MPI um pedido de apoio, de agilidade, mas principalmente pedindo para que a justiça não tire eles da ocupação. Há uma necessidade de uma mobilização para que a sociedade de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul abrace a causa da retomada do Morro Santana pelas mulheres Kaingang. Dona Iracema Gah Té é uma curiã, uma rezadeira, uma remedieira, uma mulher de muita, muita, muita conexão espiritual, e ela com certeza tem capacidade de fazer a recuperação da vida daquele território.

BdF RS - Essa é a ideia da cura da terra?

Joziléia Kaingang - Essa é a ideia da cura da terra. Muitas vezes as pessoas falam: mas os índios retomaram aquela terra e agora estão deixando virar mato. Não, a gente não deixa virar mato, a gente deixa a vida se reconstruir, a gente permite que haja uma reformulação e uma reconstrução daquilo que foi perdido, daquilo que foi arrancado, daquilo que foi morto ali.

Então o Morro Santana tem todo esse significado da cura da terra. É deixar que a vida possa ressurgir naquele lugar, a partir de uma conexão espiritual, que a dona Iracema tem muito, mas a partir daqueles corpos territórios das mulheres indígenas, das crianças indígenas, dos homens indígenas que estão ali.

A gente precisa se reflorestar enquanto sujeitos, pensar no outro, compartilhar, nos humanizar

BdF RS - A noção de corpos territórios é nova para nós. Mostra que somos parte de algo bem maior do que a gente entende... Falas da retomada do Morro Santana e o Brasil de Fato vem acompanhando essa luta desde o início, e outras também que a cacica puxou aqui, como a da Casa do Estudante Indígena na UFRGS.

Ela chegou a fazer greve de fome para justiça não conceder a reintegração de posse. Estão conseguindo com a mobilização tanto do povo Kaingang, como do Xokleng, estender esse prazo. A dona desse terreno, que é a empresa Maisonnave, quer construir muitos prédios. Fico pensando nessa arrogância do homem branco de achar que sabe tudo e que os povos indígenas são aqueles que precisam ainda ser civilizados...

Joziléia Kaingang - É uma luta de todos nós. Se o Morro Santana é tão significativo para Porto Alegre, por que não permitir que ele possa ser recomposto, repovoado, e falo não só de humanos, falo de não-humanos, do ambiente da natureza, mas também do ambiente espiritual. Que possa renascer em vez de ter vários prédios construídos, que vão atender à demanda de um grupo social que nunca pensa coletivamente. Não é só o Morro Santana.

Em São Paulo, a gente viu isso chegar no Jaraguá, na terra dos Guarani, e a violência com que foi tratado. O Brasil de Fato e outros veículos precisam continuar fazendo esse debate. A gente vive infelizmente numa era em que o “Eu” é válido e o “Nosso” nunca é pensado. São grupos pequenos que pensam em nós todos.

Temos feito esse chamado de reflorestar mentes. O reflorestar mentes parte do princípio de que a gente precisa se reflorestar enquanto sujeitos, pensar no outro, compartilhar, nos humanizar, porque perdemos nossa humanidade. É nessa necessidade de reflorestar mentes que a gente precisa trabalhar com cada um e cada uma dessa sociedade.

Nos ameaçaram, soltaram bomba, tentaram vir de carro pra cima e a gente ficou na resistência

BdF RS - É a primeira vez que escuto essa expressão “reflorestar mentes”. É um programa do ministério?

Joziléia Kaingang - Reflorestar Mentes é um projeto da ANMIGA, a Articulação Nacional das Mulheres Índígenas Guerreiras na Ancestralidade. Lançamos o Reflorestar Mentes em 2021, quando viemos à Brasília. Foi um momento em que a gente não aguentou mais o termo do “passar a boiada”.

Eles (o governo Bolsonaro) estavam atropelando todo mundo e nós precisamos vir à Brasília fazer um enfrentamento, fazer uma discussão, mostrar a nossa cara pro mundo, e dizer que nós precisávamos que parasse, que era a destruição, a morte e a morte dos nossos territórios.

Ficamos no nosso acampamento, segurando com a reza das mulheres Guarani, com a nossa espiritualidade, para eles não invadirem o nosso acampamento. Muitas pessoas nos ameaçaram, soltaram bomba, tentavam vir de carro pra cima do acampamento, e a gente ficou na resistência. E fizemos a segunda marcha das mulheres indígenas que teve como tema “Reflorestando mentes para a cura da terra”. E conseguimos lançar o projeto.

Reflorestar mentes tem muito essa ideia. Não é só plantando uma árvore que se refloresta. Você tem que plantar a sua árvore, tem que jogar a sua semente, mas precisa também cuidar do resto, e da tua cabeça, e da tua humanidade, pra poder se reflorestar de verdade. Temos partido desse princípio que é humanizar as pessoas.

Cada um de nós precisa fazer a sua parte, formando essa corrente coletiva forte, para que o mundo todo possa vencer o que estamos vendo aí: as mudanças climáticas, as guerras, a falta de respeito, que é você não querer que o outro tenha direito a uma vida boa. Todos temos que ter direito a uma vida boa para que a gente possa conseguir construir o bem-viver.


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Edição: Ayrton Centeno