Rio Grande do Sul

ESPECIAL 8 DE MARÇO

'Todas as mulheres sofriam e seguem sofrendo discriminação no âmbito do poder Judiciário' 

A advogada Márcia Soares é fundadora e diretora-executiva da Themis, que atua há 30 anos no direito das mulheres

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Hoje estamos em uma situação de atendimento quase como era a 30 anos atrás", avalia Márcia Soares - Foto: Jorge Leão

No dia 8 de março a Themis -  Gênero, Justiça e Direitos Humanos completou 30 anos de história, marcada pelo enfrentamento da discriminação contra mulheres no Sistema de Justiça. Em um tempo em que a volta da democracia dava seus primeiros passos e o direito das mulheres era mais vulnerável.  

Em 1993, a Themis trouxe para o país o projeto de capacitação legal de mulheres, o Promotoras Legais Populares, após participar de um seminário sobre os direitos da mulher promovido pelo Cladem - Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher. Estes cursos já vinham se desenvolvendo há pelo menos uma década em alguns países da América Latina, como Peru, Argentina e Chile. De Porto Alegre, o projeto ganhou o país. 

Em três décadas, serviços foram surgindo, outros se solidificando. Contudo, viu nos últimos anos um recrudescimento no que tange os serviços, nas políticas públicas e na vida das mulheres. “Hoje estamos em uma situação de atendimento quase como era a 30 anos atrás. As promotoras estão fazendo o papel do Estado no atendimento da ponta, porque o serviço não existe. As mulheres chegam absolutamente pauperizadas”, afirma a diretora-executiva da Themis, Márcia Soares. 

Em entrevista ao Brasil de Fato RS, Márcia conta um pouco da trajetória da instituição e desafios para os próximos anos. 

Márcia Soares é advogada de direitos humanos e feminista, diretora-executiva e fundadora da Themis. É responsável pela gestão institucional e coordenação dos programas. Entre os anos 2006 e 2011, esteve à frente da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do governo federal. Também em 2011, passou a atuar como Oficial de Projetos da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Integra o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. 

Abaixo a entrevista completa

Brasil de Fato RS - Como surgiu a Themis?

Márcia - A Themis é uma organização da sociedade civil fundada basicamente por advogadas, tendo como co-fundadoras mulheres da área da ciência, sociais, psicólogas, enfim. Nós tivemos um quadro de sócias bastante interessante. 

É focada na questão do acesso à justiça para mulheres. A nossa teoria da mudança, o que veio nos formando desde então, foi identificar que mulheres, principalmente as mais vulneráveis, têm menos acesso à justiça. Não só a justiça em sentido lato sensu, mas também aos serviços de justiça e a realização do direito. Para além disso todas as mulheres sofrem, sofriam e seguem sofrendo uma espécie de discriminação, espécies distintas de discriminação no âmbito do poder Judiciário. 

E a nossa estratégia na época foi pensar formas de facilitar o acesso dessas mulheres à justiça, e enfrentar as discriminações que o Judiciário impõe às mulheres ao longo desses anos. A partir daí, nós fizemos a seguinte pergunta: quem busca direitos que não sabe que tem? Ninguém busca direitos que desconhece. 

Então criamos um programa que inicialmente foi implementado no Peru, e que nós trouxemos e adaptamos para o Brasil lá em 1993, chamado Promotoras Legais Populares (PLP), que é um processo de empoderamento legal dessas mulheres, onde elas têm aulas de direitos, do exercício dos seus direitos. Elas passam a conhecer os direitos, conhecer os mecanismos de acesso à justiça, entender a lei, estabelecer um diálogo com o próprio Judiciário e com os serviços de justiça e de realização de direitos.

Entendendo os serviços de justiça como todos aqueles que realizam direitos, como, por exemplo, o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), o Conselho Tutelar. Ter um conjunto de serviços públicos que se destinam a dar eficácia a lei. Os serviços não são nada menos do que a eficácia da lei. Por exemplo, a Maria da Penha diz que tem que ter um serviço de retaguarda, e ele não existe, a eficácia da lei está comprometida. Então entendemos os serviços também como realização de direitos. Isso foi o que começamos há 30 anos. 


Atividade das Promotoras Legais, no dia 8 de março, na estação Mercado, em Porto Alegre / Foto: Nadie Alibio / Sindimetrô RS

BdFRS - E nesses 30 anos os desafios ainda continuam os mesmos? Como está esse conhecimento das leis por parte das mulheres? 

Márcia - Os desafios são múltiplos, e é bastante interessante essa pergunta, porque quando começamos há 30 anos, começamos na Restinga e na zona Leste. Hoje estamos em toda Porto Alegre, e o programa, o PLP, está no país inteiro. 

O que acontece? Há 30 anos nós não tínhamos Lei Maria da Penha, o Conselho Tutelar estava recém se fortalecendo, estava se iniciando o Orçamento Participativo, era um outro momento. Naquele momento a Defensoria Pública também não existia, estava começando o seu processo. 

Qual era a demanda naquele momento para além de que as mulheres reconhecessem seus direitos, identificassem as ferramentas, era afirmar que não existem os serviços, era propor serviços. E no que diz respeito à justiça, que é o nosso norte, precisávamos dialogar com o Judiciário. Então nós temos aí as promotoras legais e o eixo que é de empoderamento legal, que é um dos eixos de trabalho. O segundo eixo é defesa de direitos, onde dialogamos com o Judiciário de várias formas, dialogamos pelas revistas, por debates, e pela própria litigância. 

O Judiciário é um poder hermético, ele dialoga consigo mesmo, e precisamos dialogar por dentro

Naquela época, como não tinha Defensoria Pública, começamos a atuar em massa nas comunidades, com advogadas na ponta, acolhendo demandas, litigando, advogando, por quê? Porque o Judiciário é um poder hermético, ele dialoga consigo mesmo, e precisamos dialogar por dentro. Precisávamos naquele momento fazer duas coisas. Primeiro o uso dos instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos das mulheres que não eram usados no Brasil. A advocacia comum não usava, não se apropriava desse regramento internacional. Então a nossa ideia era litigar, trazer esse regramento, e forçar uma demanda positiva do Judiciário.

Bom, passou-se anos, os serviços começaram a se estabelecer, por óbvio o papel das promotoras passa a mudar e o da Themis também, já existe Defensoria Pública, o nosso papel não é advogar em nome do Estado. O Estado tem que fazer.

O que fazemos hoje? Fazemos litigância estratégica, que são casos emblemáticos de violação de direitos humanos das mulheres que não foram acolhidas pelo Judiciário, pelo Estado brasileiro. Aí entramos na litigância e vai até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Estamos hoje com três casos na comissão. 


"Ninguém busca direitos que desconhece" / Foto: Jorge Leão

BdFRS - Poderia falar quais são esses casos? 

Márcia - Nós temos o caso de uma menina abusada por um padre, um caso de violação de direitos humanos na penitenciária, no sistema prisional, e um caso de direitos sexuais e reprodutivos. Nós temos um caso relacionado a música Um tapinha não dói? O que aconteceu com a música? Nós processamos o Grupo Furacão, e eles foram obrigados a tirar do ar imediatamente. 

Desde aquela época o processo está no Supremo Tribunal Federal, e nós fomos litigando e ganhando. Nós pedimos ali uma indenização de R$ 100.000,00, que ajustado vai dar para construir um fundo de apoio à mulheres vítimas de violência. Nós viemos litigando, ganhando, eles vêm recorrendo, e está lá no Supremo parado. 

Foi um caso muito emblemático, e eles tiveram que retirar, ninguém nunca mais ouviu. Isso é um dos nossos eixos, e da nossa teoria da mudança, que é a importância de litigar por dentro, de dialogar com o Judiciário, de forçar o Judiciário, o Estado brasileiro, a responder positivamente a algumas demandas, que a advocacia comum não provoca. 

BdFRS - Como tu avalias a situação da mulher no estado, dos direitos das mulheres e do acesso à justiça?

Márcia - Vou voltar ao ponto da mudança das promotoras legais. As promotoras passaram a desenvolver outro trabalho, pressionar, fazer parte da rede, integrar os serviços, acolher as mulheres. Mas integrar uma rede de serviços que hoje acabou, essa é a questão. Faz pelo menos quatro, cinco, seis anos que os serviços de atenção às mulheres foram desmontados. Os que existem estão sem recurso. Não só não foi ampliado como muitos serviços fecharam. 

Hoje estamos em uma situação de atendimento quase como era a 30 anos atrás. As promotoras estão fazendo o papel do Estado no atendimento da ponta, porque o serviço não existe. As mulheres chegam absolutamente pauperizadas.Temos que ficar dando cesta básica, que é uma coisa que nunca fizemos na Themis, porque o CRAS funcionava, porque o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) funcionava. 

Nesses últimos anos, do último governo federal, foi um desmonte absoluto, isso teve um reflexo inclusive no governo do estado e nos municípios, parte por falta de recurso, parte por falta de vontade política, e tem que se avaliar caso a caso. Mas o que ocorre, efetivamente, é que os serviços de atenção, a rede de atenção às mulheres, às crianças, aos idosos, à comunidade LGBTQIA+, a rede de serviço de atenção aos direitos humanos, foi absolutamente desmantelada. Isso não é uma situação das mulheres no Rio Grande do Sul, é um problema das mulheres no país, todo mundo que está na ponta, que acompanha os movimentos sabe disso. 

Hoje estamos em uma situação de atendimento quase como era a 30 anos atrás. As promotoras estão fazendo o papel do Estado no atendimento da ponta, porque o serviço não existe

No que diz respeito ao Judiciário, não se trata só de ser um Judiciário que é machista, ele é um poder que é a cara da sociedade brasileira, do Estado brasileiro. Um poder branco, majoritariamente masculino, sem deficiência, alfabetizado e rico. Para um Judiciário composto por esse perfil de magistratura, do Ministério Público, ele termina constituindo, mesmo no âmbito dos processos, uma ideia de sujeito de direito. Essa ideia é um sujeito homem, branco, maior de idade, sem deficiência. Isso constitui uma ideia de sujeito de direitos, quer dizer, para o direito existe uma persona ideal de cidadão, que é o “cidadão de bem”, que é o cidadão homem, branco, heterossexual, bem apessoado e com universidade. 

Isso por si só informa, é uma cultura muito forte, isso vem da vivência de quem está julgando, do olhar de quem está julgando, de quem está acusando, de quem está defendendo. Enquanto não fizermos essa provocação interna via processos, que eu acho que é absolutamente importante, e enquanto o Judiciário não construir uma política ampla de incorporação da diversidade nos seus quadros, a discriminação contra mulheres, negros, pobres, vai permanecer. 

Fomos convidadas pela ministra Rosa Weber para integrar um grupo de trabalho no Judiciário, o Observatório do Judiciário, que lançou um projeto agora no início desse ano, justamente de enfrentamento do racismo no âmbito da instituição. 


Ação “Respeita as gurias na folia”, promovida pelo programa Jovens Multiplicadoras de Cidadania (JMCs) Foto: Janaína Kalsing/Divulgação Themis

BdFRS - Uma questão quando tratamos das mulheres é o crescimento da violência e dos números de feminicídio. Vocês trabalham com essas mulheres, na ponta, como tu vê isso, por que essa situação continua, apesar de todas as leis, da lei do feminicídio, da lei Maria da Penha? 

Márcia - Tem fenômenos muito particulares, como foi o caso da covid, que tem repercussão até agora sobre a situação das mulheres. Outro fenômeno é que temos que saber ler o dado, de onde esse dado é extraído, essa é uma questão importante. Se o dado vem da saúde, do Datasus, por exemplo, ele fala de morte de mulheres, mas ele não classifica feminicídio, porque não tem essa capacidade. 

Quem é que classifica feminicídio? É o dado da polícia, que é um dado super-importante, mas que precisa ser olhado com cuidado, por quê? Porque a lei do feminicídio é nova. Então os delegados, os agentes, terminam classificando como homicídio contra a mulher. É um processo de construção de informação para que eles aprendam a classificar corretamente o que é um feminicídio, e não coloquem homicídio. O dado precisa ser analisado sempre com cuidado. 

Esses tempos saiu uma informação de que de um ano para o outro subiu 70% os feminicídios. Isso não quer dizer que subiu 70% a morte das mulheres. Este dado é um dado da delegacia, quer dizer que esses homicídios foram classificados corretamente como feminicídio. Por que eu estou dizendo isso? Por que o fenômeno é pequeno? Não, o fenômeno é enorme, morrem três mulheres por dia, classificadas como feminicídio ou não, é isso que precisamos entender, não é só o feminicídio.

Por outro lado, tem um enorme contingente de agentes que não classifica como feminicídio porque não reconhece que é, só se morreu dentro de casa morta pelo marido, e sabemos que não é assim. Esse dado do feminicídio não é um dado simples de ser analisado, ele pode estar subnotificado ou super notificado do ponto de vista da tipificação do crime. Temos que ver feminicídio, homicídio de mulheres, e ver onde que isso dá. Isso vai dar em quase quatro mortes por dia, é isso que importa, é muito alto. 

:: Mulheres denunciam desmonte dos serviços públicos em audiência da Assembleia Legislativa do RS ::

Eu penso que tem algumas questões que são óbvias, que impactam o momento, que é a falta do serviço, é a falta de retaguarda do Estado para mulheres que estão em situação de violência. Sabemos que não iniciou na pandemia, todas nós que trabalhamos com isso sabemos que o processo, o ciclo da violência, é um ciclo que se agrava, e na pandemia ficou mais evidente.

Quando as mulheres estão dentro de casa com possibilidade de sair, há um lapso temporal que interrompe a escalada da violência, o cara vai beber e a mulher vai trabalhar, isso retoma a relação em outro pé. As mulheres encerradas dois anos dentro de casa, com os maridos, essa escalada não se interrompia nunca, portanto é uma rota que vai se agravando, chegando no feminicídio. 

Para além disso, de lá pra cá, os serviços acabaram, as mulheres não têm a quem recorrer. Como que uma mulher que está absolutamente pauperizada, que não tem escola para os filhos, porque agora não tem nem escola, que não tem onde buscar uma cesta básica, e que tem uma relação abusiva, vai sair? Ela vai se manter na relação, em um país quebrado como esse, com uma população esmagada pela falta de política pública. Isso é um fator que com certeza interfere nessa coisa que agrava e que piora. 

Segundo, um discurso de ódio que foi destilado pelo Estado brasileiro durante quatro anos, isso aumentou os índices de violência em todos os lugares, contra animais, contra gays, contra lésbicas, evidentemente contra mulheres. Então, aí nós vemos uma pandemia, um país quebrado, mulheres pauperizadas, discurso de ódio, ausência total de serviços de retaguarda, e os serviços existentes operando à meia luz. Junta isso tudo, e vai resultar em quatro mortes de mulheres por dia nesse país. 


"Nós estamos na hora da violência, o Estado não está, mas a vizinha está, a diretora da escola está, a liderança da escola de samba está, as promotoras estão" / Foto: Jorge Leão

BdFRS - Fizemos uma matéria sobre de onde nasce a violência contra as mulheres, e os especialistas ouvidos apontaram que ela vem de muitos fatores, e porque muitas vezes a mulher não consegue identificar que a violência está começando, ela só vai identificar que está sofrendo uma violência quando vem a agressão física...

Márcia - É isso, os fatores são múltiplos, sabemos que isso está ancorado em uma sociedade patriarcal que subalterniza as mulheres, que hierarquiza as relações. Isso é a base conceitual desse processo de violência de gênero no Brasil, são relações absolutamente hierarquizadas. 

As pessoas mencionam o álcool, o álcool pode ser um agravante, mas ele não é um determinante da violência, porque um homem alcoolizado não bate no chefe dele, nem no vizinho. Ele bate na mulher, no cachorro, nos filhos. Isso pressupõe relações hierarquizadas, eu bato, eu violo, eu pego e uso aquilo que é meu, e do qual eu posso dispor da forma que eu achar melhor. 

Então de onde vêm? Vem daí. Agora isso é agravado por inúmeros outros fenômenos como esses todos já mencionados, com um país destilando ódio, com um governo destilando ódio contra as mulheres, é evidente que isso se agrava. 

Também há uma questão importante de analisar, todas as mulheres morrem, mas nem todas sofrem violência da mesma forma, e nem todas estão da mesma forma predispostas ao feminicídio. Os dados demonstram que 68% das vítimas de feminicídio no Brasil são mulheres negras. Os dados demonstram, que em análise, em um corte temporal de 10 anos da Lei Maria da Penha, a violência contra mulheres brancas reduziu em torno de 9%, e a de mulheres negras subiu em torno de 20%.

As mulheres negras neste país são as que mais morrem, e as que mais são violadas, inclusive são as que mais são estupradas também

Estamos em um país onde o racismo estrutura as relações pessoais, as relações sociais. Isso não é diferente nas relações familiares, isso não é diferente nas relações com a justiça, nas relações multifuncionais. Então as mulheres negras neste país são as que mais morrem, e as que mais são violadas, inclusive são as que mais são estupradas também, os dados demonstram isso. (De acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2022, em 2021, 52,2% dos estupros registrados no país foram de mulheres negras)

Quando percebemos isso, e nos damos conta de que nós temos um Judiciário branco, masculino, hétero, nós vamos ver que há uma incongruência, que por óbvio as demandas das mulheres negras têm respostas menos positivas por parte do Judiciário e dos seus instrumentos. 

:: Educação machista, estereótipos culturais e raiva estão na base da violência contra a mulher ::

Por exemplo, faltam ferramentas adequadas para que as mulheres negras possam ser acolhidas nas suas demandas. E vou te trazer uma coisa muito simples que é a lei Maria da Penha. Quando dizemos que as ferramentas têm que estar adequadas, podemos chamar direto a lei Maria da Penha. Ela tem um negócio chamado medidas protetivas de urgência. Qual é a principal medida protetiva de urgência? O afastamento do agressor. Quem é o órgão responsável a rigor por acompanhar esses casos? Aqui no Sul as patrulhas Maria da Penha, que não tem em todos os lugares do país. A rigor a competência é de quem? Da Polícia Militar.

Agora me diga, uma mulher negra, pobre, que mora numa periferia, de Porto Alegre ou do Rio de Janeiro, submetida ao crime organizado, muitas vezes com filhos traficantes, enfim. Tu acha mesmo que essa mulher tem condição de chamar a patrulha Maria da Penha para vir correndo atendê-la no meio da periferia? Primeiro porque o tráfico não quer aquela polícia lá. Segundo porque, às vezes elas são mulheres de traficantes. E terceiro porque para muitas delas a mesma polícia que deveria ir lhe socorrer, é a polícia que mata os filhos dela. Aí o que resulta isso? Nós temos uma grande maioria de mulheres negras no Brasil, aqui no Rio Grande do Sul, que não pede a protetiva. 

BdFRS - Ainda sobre a violência, tu acreditas que uma das medidas é debater o tema na educação básica?

Márcia - As questões de gênero devem ser discutidas, a educação básica é essencial para construção de um perfil do cidadão. Agora também não dá para depositarmos todas as nossas esperanças e fichas no papel do Estado, porque o Estado tem que tomar pra si essa tarefa de construção de um sujeito cidadão se constitua não discriminatório, que se construa como cidadão tolerante com a diversidade, amoroso, mas o Estado não toma, nunca tomou. 

Quando vamos para periferia, quando temos há 30 anos um programa super consolidado, que é o das promotoras legais populares, nós estamos fazendo isso. Nós estamos na hora da violência, o Estado não está, mas a vizinha está, a diretora da escola está, a liderança da escola de samba está, as promotoras estão. Elas estão no momento em que o Estado brasileiro não está. E se o Estado está, está através da sua mão armada, da sua mão violenta, que as mulheres não querem. Não por acaso esse programa se consolida, e ele hoje já é executado por 24 grandes organizações no país. 

Nossa questão central esse ano é, e nós já estamos trabalhando nisso, conseguir alcançar as mulheres indígenas, que nunca conseguimos, fomos aos poucos. É uma coisa bastante peculiar e que exige muito estudo, mas nós pretendemos alcançar esta mulher indígena. E por que que eu te digo que não é simples, porque o programa das promotoras legais populares, ele não é só informação, informação seria simples fazer. O que precisamos fazer para isso funcionar? Temos que identificar quais são os obstáculos de acesso que as mulheres têm à justiça, e isso muda de lugar para lugar, do Norte do país para Sul, de característica para característica. 

As promotoras estão na hora da violência. Elas estão no momento em que o Estado brasileiro não está. E se o Estado está, está através da sua mão armada, da sua mão violenta, que as mulheres não querem

A nossa grande questão é identificar quais são os bloqueios de acesso à justiça, e criar ferramentas para transpor, e linguagem é uma delas com certeza. Desconstruir esse jurisdiques para que as mulheres entendam, para que as promotoras entendam e consigam explicar pra outras mulheres, a ausência do serviço é importante, a sensibilização do Judiciário, a resposta é importante. É uma série de obstáculos que identificamos, que vamos criando ferramentas junto com as PLPs para ir operando. 

As indígenas ainda não temos a menor ideia, não é um programa, isso é importante dizer. Nós fomos selecionadas entre 300 organizações para uma cooperação Sul-Sul, nós estamos implementando o programa em Cabo Verde, uma cooperação Brasil-Cabo Verde com o apoio do Mant. São 4 anos de projeto, é fazer uma adaptação, é diferente do que replicar, você tem que identificar lá quais são os obstáculos, como que a justiça se comporta, e nós estamos fazendo isso.

Com as mulheres indígenas é a mesma coisa, são inúmeros outros obstáculos que elas têm, até porque a ideia de justiça numa tribo é diferente. Vamos ter que trabalhar com a justiça que é constituída naquela comunidade indígena e com a justiça formal, a justiça do Estado brasileiro, que para as indígenas são duas coisas completamente distintas. A noção de justiça, de resolução de conflitos se dá no interior daquela comunidade. Isso é um enorme desafio para esse ano. 

Nós entramos os 30 anos nos desafiando agora a conseguir alcançar essa parcela de mulheres da população que esteve tão isolada, cujos corpos têm sido mortos e foram infelizmente dizimados pelo último governo. 

BdFRS - Uma das ações que vocês têm envolve a questão das trabalhadoras domésticas...

Márcia - A Themis trabalha em três eixos: empoderamento legal, defesa de direitos, e mais recentemente tecnologia e justiça. A ideia da tecnologia desse eixo é usar as tecnologias sociais pra facilitar o acesso da justiça para as mulheres, e não o contrário como vem acontecendo. Então no empoderamento legal hoje trabalhamos com as promotoras, com as jovens multiplicadoras de cidadania, que é um programa de empoderamento legal dirigido especificamente para jovens, e tem uma campanha belíssima que está ocorrendo para trabalhadoras domésticas. Esses três grupos são os de trabalho prioritários da Themis, nossas bases prioritárias de trabalho. Nós pretendemos nos próximos quatros anos incluir as indígenas. 

Na tecnologia e justiça, no que tange as trabalhadoras domésticas, a Themis vem trazendo essa questão desde 2011 quando a OIT aprova a convenção 189, que é a convenção acerca dos direitos das trabalhadoras domésticas. O Brasil veio ratificar esta convenção no último ano da presidenta Dilma, quando lançou a PEC 150 tentando construir uma base legal no Brasil que correspondesse ao que evoca a convenção 189. Desde lá, viemos trabalhando com isso por uma coisa muito simples.

O trabalho doméstico no Brasil é uma confluência dos três principais marcadores de discriminação, gênero, raça e classe. Tem uma vinculação direta entre a trabalhadora doméstica e a escrava lá do passado

Primeiro porque é a maior categoria de empregabilidade de mulheres no Brasil, são mais de 6 milhões de trabalhadoras domésticas. A categoria, o trabalho doméstico é o maior responsável pela autonomia financeira das mulheres brasileiras. A categoria das domésticas é a que até hoje sustentou a autonomia financeira das mulheres brasileiras, porque elas que dão direta ou indiretamente condições de que as mulheres estejam no mercado de trabalho.

É uma categoria basicamente formada por mulheres negras, pouco alfabetizadas, pauperizadas, e com condições de trabalho absolutamente degradantes. O que eu quero dizer com isso? Dois terços das trabalhadoras domésticas, as mensalistas, não têm vínculo de trabalho, não têm carteira de trabalho. A cada três trabalhadoras domésticas que estão mensalistas, duas não têm vínculo empregatício. Pega qualquer outra categoria para ver qual de 3, 2 não tem vínculo empregatício, é raríssimo.

O trabalho doméstico no Brasil é uma confluência dos três principais marcadores de discriminação, gênero, raça e classe. O trabalho doméstico tem na nossa consciência, no nosso inconsciente, origem na escravidão, e trabalho doméstico ainda é considerado pelas pessoas um trabalho menor, sem o qual elas não vivem. Tem uma vinculação direta entre a trabalhadora doméstica e a escrava lá do passado. Portanto é um trabalho desorganizado, realizado por mulher, por mulher negra, por mulher negra e pobre, dentro da casa, que tem uma origem na escravidão, é por isso que as pessoas acham que elas precisam assinar a carteira da sua secretária e não tem que assinar a carteira da trabalhadora doméstica da sua casa. 

BdFRS - E como funciona o programa das jovens multiplicadoras?

Márcia - O programa  Jovens Multiplicadoras de Cidadania (JMCs) é um programa de empoderamento legal, também adaptado para essa linguagem, para esse público que opera diferente das promotoras. O das promotoras, são já os referenciados, quando vamos para comunidade para constituir uma referência, uma liderança naquela comunidade, mapeia os serviços ali, identifica quais são as lideranças e tal.

As jovens é o contrário, toda a estratégia é tirar os territórios de volta e trazer para dentro da universidade, para o centro da URB. É ela, jovem, entender que o centro da URB também é um lugar dela, que a universidade é um espaço dela, e que ela pode construir isso como uma estratégia de vida pra si, o que já aconteceu milhões de vezes, a própria coordenadora do programa, hoje ela é formada, tem dois filhos, uma baita de uma liderança, foi da primeira turma JMCS, e hoje é uma grande liderança no movimento por moradia. 

O programa tem uma outra lógica, é de empoderamento legal. Ele é uma adaptação, não replicamos, adaptamos, e toda a ideia é que essas jovens vão atuar no seu território, que elas atuem entre seus pares, na sua linguagem. A ideia com as jovens é prevenir violência, porque quando trabalhamos com as promotoras, estamos trabalhando na ponta onde a violência via de regra já aconteceu, mais leve ou menos, mas ela já aconteceu. Com as jovens o processo é de prevenção de violência, é de disputa de narrativa, é de trazer os jovens meninos para o projeto. O projeto é focado nelas, e a continuidade dele envolve os meninos.


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Edição: Katia Marko