A agenda das cidades inteligentes vem, desde sua origem, alinhada com a política neoliberal
Já faz tempo que a agenda das cidades inteligentes está presente em Porto Alegre. Especialmente as últimas duas gestões municipais buscaram promover a cidade através dessa terminologia que carece de uma definição precisa. Essa agenda é, usualmente, associada a inovações tecnológicas para melhoria na qualidade de vida de cidadãos. Na pesquisa “Porto Alegre, cidade inteligente: análise crítica de uma agenda urbana” (Winckler, 2023), aponta-se as particularidades dessa agenda na cidade, indicando que sua difusão alimentou desregulamentações, grandes projetos urbanos, privatizações de bens públicos e mercantilização de partes da cidade.
Diretamente responsável pela pretensa transformação da cidade em Inteligente, a Secretaria Municipal de Parcerias (SMP) adota tal missão por meio de concessões e privatizações. Por seu turno, a Procempa busca soluções tecnológicas no mercado, enquanto o Gabinete de Inovação fomenta um Distrito de Inovação, às custas da possível gentrificação do 4º Distrito. Como marketing urbano, as iniciativas têm resultado, e o Cais Mauá se transforma em um “território inovador” durante a realização do South Summit Brazil.
Desde Marchezan Jr. (2017-2020) e, atualmente, com Sebastião Melo (2021-), a agenda inteligente se intensificou alinhada com uma política neoliberal. Com o primeiro, foram criados ajustes regulatórios que garantiram a continuidade desse projeto pelo segundo. Entre esses, em 2018, o Departamento Municipal de Esgotos Pluviais (DEP), responsável pela drenagem urbana, foi incorporado pelo Departamento Municipal de Águas e Esgoto (Dmae), o qual já sofria com desinvestimentos e defasagem de funcionários. No ano anterior, Marchezan Jr. defendeu a contratação, sem licitação, de um novo sistema para o Dmae para trazer, supostamente, inovação para o órgão, ao substituir o sistema mantido pela Procempa, mesmo que esta tenha oferecido um novo sistema mais barato e eficiente. Ao final, contudo, a justiça suspendeu o edital. Nesse período, o Sindicato dos Trabalhadores em Processamentos de Dados do Rio Grande do Sul (SINDPPD/RS) já afirmava que essa manobra tinha como objetivo o enfraquecimento da Procempa e a privatização do Dmae.
De fato, essa controvérsia se seguiu na gestão Melo, e o Dmae se encontra na carteira de privatizações da SMP, ao passo que o prefeito faz campanha pela “quebra de monopólio” da Procempa sobre as tecnologias municipais. A agenda inteligente alinhada à ideologia neoliberal aponta para a necessidade de acesso a tecnologias desenvolvidas na iniciativa privada, em detrimento do poder público: “inovação urbana” passa a ser confundida com a necessidade de parcerias, pois, supostamente, o mercado ofereceria melhores soluções. Isso resulta em uma inteligência urbana desalinhada com a noção de “soberania tecnológica”, por entrar em um círculo vicioso de contratações externas que enfraquecem a transparência sobre dados e tecnologias utilizadas nas cidades e, portanto, o controle por parte dos cidadãos.
Agora, durante a enchente de 2024, a ameaça de privatização do Dmae vem à tona. A fórmula já é conhecida: a partir da pressão de agentes privados, promove-se o sucateamento da estrutura pública, tornando-a menos eficiente; frente à opinião pública, legitima-se a sua venda. Essa estratégia ficou evidente e cobrou suas consequências, diante da falta de investimentos, o sistema de contenção do Dmae colapsou. O cenário fica ainda mais crítico, na medida em que a Defesa Civil estadual igualmente enfrentou limitações orçamentárias da política neoliberal do governador Eduardo Leite.
É certo que problemas na contenção de enchentes já haviam sido identificados, tanto em 2015, quanto em 2023, oito meses antes da tragédia anunciada. Mesmo defendendo o desejo de construir uma Porto Alegre inteligente, Melo não seguiu nem a própria cartilha dessa agenda que tem, entre seus fundamentos, o uso sistemático de dados e evidências para a tomada de decisões de resiliência urbana. Dados e estudos foram sistematicamente negligenciados, tanto por agentes públicos, quanto privados – indo, portanto, na contramão do próprio discurso disseminado pela agenda das cidades inteligentes.
A chegada das águas em 2024, embora previstas, evidenciou, ainda, o despreparo na comunicação entre poder público e população antes e durante a tragédia. A inundação iniciava, mas ainda não havia projeções disponibilizadas pela administração pública. Esse papel foi desempenhado voluntariamente por pesquisadores do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH-UFRGS), os quais traduziam dados em informação para a população. Voluntários também organizaram sites e páginas em redes sociais, atualizados diariamente sobre desabrigados, animais, abrigos e demandas. O poder público passou a compartilhar esses materiais, mas de maneira improvisada.
Em uma situação de crise e na promoção da inteligência urbana, a comunicação digital é fundamental. Para Melo, “a inovação deve estar serviço do cidadão”, e a prefeitura, na “palma de sua mão”. Esse aspecto, contudo, também fracassou quando colocado à prova. A prefeitura optou por utilizar redes sociais e coletivas de imprensa, com significativa demora para criação de canais dentro da Central do Cidadão (156). Por sua vez, o Centro Integrado de Coordenação de Serviços (CEIC) não disponibilizou mapeamentos e dados em tempo real. Em vez disso, aos poucos, se limitou às informações sobre a cota de inundação, sem grandes explicações do que aquele dado significava, tornando a população alvo fácil para notícias falsas e negacionismos, incentivando, portanto, a descrença nas instituições. Canais colaborativos surgiram, mas de iniciativa da sociedade civil. Isso fez com que a imagem das instituições públicas ficasse ainda mais enfraquecida, um prato cheio para a despolitização desse processo e disseminação da ideologia neoliberal. De fato, o papel da sociedade civil foi fundamental, através da organização popular, comunitária e pela ação dos movimentos sociais. Mas isso não revela a eficiência da iniciativa privada, e sim o desespero pela sobrevivência, aliado ao senso de solidariedade entre muitos indivíduos e coletivos.
Não está em andamento um plano estratégico e coordenado; no máximo, improvisos – consequência da negligência quanto à emergência climática. Nesse cenário, as frentes de fomento à cidade inteligente sofreram diretamente o baque da enchente: a SMP viu boa parte de sua “carteira de projetos” inundar; a Procempa e o CEIC igualmente tiveram seus prédios invadidos pela água. O tão desejado Distrito de Inovação foi uma das áreas mais afetadas pela tragédia, ao passo que o território inovador, sede do South Summit, foi o primeiro a inundar. Mas isso se traduz antes num símbolo desse fracasso, do que na razão de considerarmos que a enchente revelou a fábula ideológica da cidade inteligente. A execução dessa agenda se revela mera retórica mercadológica, pois as supostas inovações urbanas, que fizeram a cidade ser reconhecida como inteligente em rankings e eventos, não muniram o poder público, e nem a iniciativa privada, de ferramentas para uma efetiva resposta, que dirá prevenção à enchente.
Ora, quais foram as inovações concretizadas por essa agenda e, se elas existem, quais delas contribuíram para prever, administrar ou solucionar os problemas decorrentes da enchente? Para que a agenda inteligente sirva, de fato, para a melhoria na qualidade de vida de cidadãos e que crie ferramentas efetivas, é preciso partir do entendimento que inovações urbanas devem ser orientadas ao interesse público, jamais confundido com o privado. Para tanto, é fundamental que se supere um urbanismo privatista, que visa ao lucro imediato – enfraquecendo a soberania tecnológica dos municípios, bem como expondo a população a riscos pelo sucateamento das estruturas já existentes.
A agenda das cidades inteligentes vem, desde sua origem, alinhada com a política neoliberal; contudo, ela não precisa ser a única. Uma alternativa apoia-se na retomada do planejamento urbano e regional, no qual as potencialidades trazidas pelas inovações urbanas e tecnológicas não estejam ancoradas na privatização e mercantilização de serviços essenciais e bens públicos, enfraquecendo a ação do Estado e o controle da sociedade. Por um lado, como no caso do Dmae, a falha não foi de seus técnicos ou suas tecnologias, mas da falta de manutenção e investimento. Por outro, houve ausência de uma estratégia para uma comunicação efetiva. O mínimo que se espera de uma cidade é a manutenção, valorização e investimento nas estruturas que já existem. A fórmula neoliberal vai precisamente na contramão dessa perspectiva, deixando-nos reféns da precariedade dos improvisos. Convenhamos que não há nada de inteligente nisso.
*Joana Winckler é mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles e do Grupo de Pesquisa em Sociologia Urbana e Internacionalização das Cidades (GPSUIC/UFRGS).
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
*** Medina, Tiago, 2024. “O sistema anti-enchente falhou por falta de manutenção”, avaliam especialistas. Matinal Jornalismo, 06 de maio de 2024. Disponível em: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/reportagem-matinal/falta-manutencao-sistema-causou-inundacao-enchente-porto-alegre/ . Acesso em: 12 de maio de 2024.
**** UFRGS, 2024. Disponível em: https://arcg.is/1zWXO91 . Acesso em 12 de maio de 2024.
Edição: Vivian Virissimo