Rio Grande do Sul

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Direito à cidade ou barbárie: projetos em disputa no pós-enchente em Porto Alegre

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Que mudanças substanciais nossa geração fará para proteger a cidade de outras tragédias como esta? - Márcia Falcão
O paradigma do direito à cidade é diametralmente oposto ao da inflexão ultraliberal

Além das águas turvas carregando o solo exposto das lavouras que avançam nas bordas de rios desprovidos das matas ciliares, o que mais a enchente expõe? Além do lixo boiando e bueiros entupidos, que jorram águas para fora, o que mais a enchente expõe?

Em 2023 foram dados os avisos: as cheias de setembro e novembro demonstraram as falhas no sistema de proteção das cheias de Porto Alegre. Em 2024, cerca de 12,5% dos domicílios da capital foram atingidos, segundo dados divulgados pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) em 6 de maio, quando as águas ainda avançavam pela Cidade Baixa, Menino Deus e Sarandi.

Em alguma medida, toda a cidade foi atingida, uma vez que o fornecimento de água, luz e internet colapsou. Além disso, milhares de famílias acolheram os que não têm casa na praia para sair da cidade, conforme a inacreditável orientação do prefeito.

A enchente de 2024 ficará marcada na história de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, e é preciso aprender lições da tragédia. A primeira é que o custo social e econômico do desmonte do corpo técnico e da manutenção do sistema de proteção da cidade é infinitamente maior do que a economia com a redução da máquina pública, defendida pela mídia e arautos do Estado mínimo.

A onda de solidariedade que salvou vidas nos resgates e abrigos precisa agora converter-se em consciência coletiva. A narrativa que retira a responsabilidade do município, culpabilizando até mesmo o Orçamento Participativo, é inaceitável. A extinção do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) e a precarização dos serviços do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) são parte da operação de sucateamento dos serviços e posterior privatização. 

É escandaloso que o DMAE tenha R$ 400 milhões investidos no sistema financeiro e, em 2020, tenha perdido R$ 122 milhões disponibilizados pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para a modernização do sistema de proteção anti-cheias. Não foi por falta de aviso dos técnicos municipais, como fica evidente no conhecido processo administrativo em que são demonstradas as necessidades de reparos nos equipamentos e apontadas possíveis fontes de financiamento.

Outra face da mesma política ultraliberal que foi exposta pela enchente é a flexibilização das legislações ambientais em favor do agronegócio e da especulação imobiliária. Custou caro não escutar os povos tradicionais. O desmatamento e as queimadas na Amazônia e no Cerrado têm causado mudanças no ciclo das chuvas no Brasil e América do Sul, e o Rio Grande do Sul paga o preço das “boiadas” ambientais e urbanísticas que nos últimos anos alteraram o Código Florestal brasileiro, o Código Ambiental estadual e, na capital gaúcha, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental, tornando Porto Alegre um trágico exemplo de que o clima, alterado pelo sistema capitalista, manda a conta de maneira desigual, onerando os mais pobres

Infelizmente, o cenário poderia ser outro. Porto Alegre já foi uma cidade referência em democratização da gestão urbano-ambiental. Implantou o Orçamento Participativo, instituiu a primeira Secretaria Municipal de Meio Ambiente, publicou o primeiro Atlas Ambiental das Américas e foi pioneira em regularização fundiária. Por isso o Fórum Social Mundial ocorreu aqui: as práticas urbanas de Porto Alegre sugeriam que “Um Outro Mundo é Possível”. 

A memória política demonstra que há alternativas ao modelo de cidade para poucos, e, no momento em que se discutem as alternativas para 10 mil pessoas que perderam suas casas, é importante lembrar que o paradigma do direito à cidade é diametralmente oposto ao da inflexão ultraliberal que o prefeito Sebastião Melo implanta na cidade. 

O direito à cidade é um direito coletivo que vai muito além da garantia do acesso individual aos serviços urbanos. É também intergeracional, porque trata do direito da nossa geração a usufruir dos frutos do trabalho socialmente produzido pelas gerações anteriores e nos compromete com o que deixaremos para as gerações futuras. As cheias deixaram ainda mais evidente que habitar é dispor de uma casa provida de energia, água potável, esgoto, ruas, calçadas, transporte, equipamento de saúde e de educação, oferta de emprego e outros recursos urbanos. O direito à moradia não se realiza plenamente sem o direito à cidade. 

Que mudanças substanciais nossa geração fará para proteger a cidade de outras tragédias como esta de 2024? O momento exige dos agentes políticos, dos conselhos de controle social, dos movimentos e da cidadania o exercício de um papel político e pedagógico. 

Político porque trata de formular e articular as forças sociais progressistas para disputar um projeto de cidade que priorize a qualidade de vida da população, com real democracia na tomada de decisões. 

Pedagógico porque é preciso disputar a narrativa, as mentes e corações para a possibilidade de reivindicar mais do que acesso individual à serviços parcos. O contexto de crise facilita a imposição de soluções precarizadas e segregadoras, como a construção de condomínios enormes, afastados da cidade e dos equipamentos públicos de saúde, de educação, além das redes de vínculos territoriais. Por isso o direito à cidade requer de nós um processo de educação para que sejamos capazes de exercer o poder popular de conceber, formular e disputar a cidade que precisamos e queremos. 

O direito à cidade tem respaldo jurídico no Estatuto da Cidade e visa assegurar condições para o pleno exercício da cidadania aos habitantes das cidades, que devem ter acesso aos bens materiais e simbólicos que traduzem a ideia de cidade. Não será com uma operação de transporte de pessoas a abrigos improvisados que tal direito será efetivado. É inaceitável propor alternativas como “cidades provisórias” em locais afastados do centro histórico e do 4º Distrito, bairros de onde a maior parte da população atingida pela enchente provém.

Tais propostas caricaturais se alinham ao projeto ultraliberal de cidade que Melo vem implementando e, ao invés de resolverem o problema de falta de moradia, pode agravá-lo, devido ao descaso com os direitos de cidadania dos flagelados. Seria mais econômico e respeitoso aos direitos destas populações realizar o mapeamento, cadastramento e utilização de imóveis públicos localizados na região central de Porto Alegre e que poderiam ser reformados para atender a população de baixa renda desalojada. Outra alternativa seria o aluguel social, que poderia ser utilizado em relação aos milhares de imóveis privados vazios existentes no centro histórico e no 4º Distrito, como já foi amplamente divulgado pelo Observatório das Metrópoles.

Debater estas alternativas com a sociedade civil, a inteligência científica da cidade, a Universidade e os atingidos pelos impactos da enchente é urgente. Impor soluções importadas e com objetivos que desviam do direito à cidade é aprofundar a barbárie instaurada em Porto Alegre desde que o Guaíba transbordou pela inépcia de um governo comprometido com o mercado imobiliário e negacionista das mudanças climáticas. 

* Betânia Alfonsin é pesquisadora do Observatório das Metrópoles e do Mestrado em Direito da FMP e diretora de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU).

** Márcia Falcão é pesquisadora do Observatório das Metrópoles, militante do Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos e conselheira do Conselho Nacional de Cidades.  

*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
 

Edição: Katia Marko