É de extrema importância que possamos estar sempre debatendo e colocando em análise o tema da violência contra as mulheres e do feminicídio, não somente nos meses de março, agosto e novembro, mas no ano inteiro. Afinal, a nossa sociedade tem sido todos os dias tomada por diversas notícias, seja aqui no Rio Grande do Sul, ou no âmbito nacional, sobre mulheres violentadas e assassinadas brutalmente, crimes cada vez mais cruéis e cotidianos, tanto em suas relações próximas e de afeto, quanto em outros contextos. Estes últimos, cada vez mais frequentes, na medida em que as mulheres se inserem em todos os campos da vida social.
Desde a criação da campanha nacional Levante Feminista contra os Feminicídios, Lesbocídios e Transfeminicídios, em 2021, decidimos, aqui no Rio Grande do Sul, pela criação de um observatório. Uma opção entre muitas formas de atuar, que de início soou estranha, pois significou monitorarmos os dados de feminicídios num dos únicos estados do Brasil que dispõe de um observatório oficial, criado por força de lei.
Essa foi uma decisão baseada numa visão de que o movimento de mulheres deve também produzir informações, construir conhecimento, realizar interpretações diversas da realidade de forma a ter argumentos que possam ser utilizados para mudar a vida das mulheres, para nos fortalecer. Principalmente, para incidir em políticas públicas para que tenham qualidade, que não sejam sucateadas e que não existam apenas para se dizer que elas existem. Sem dados corretos e estudos mostrando a magnitude do problema não há política pública. E sem dinheiro também não.
Por isso, um grupo de pesquisadoras da área da violência, com engajamento na luta política contra os assassinatos cruéis de mulheres por razão de gênero, raça e outras interseccionalidades, escolheu construir a Lupa Feminista Contra os Feminicídios (lupafeminista.org.br) que acabou se transformando no primeiro observatório nacional focado nos feminicídios a partir da sociedade civil. Hoje nos vinculamos a um movimento internacional cunhado de “feminismo de dados”, que desenvolve metodologias específicas para checagem de informações e difusão de achados, com análises, para fortalecer a luta das mulheres e da sociedade (e por que não do Estado?) contra as mortes de mulheres, já qualificadas em lei no Brasil. Isso tem nos propiciado fazer perguntas e confrontações.
Assim, quando paramos para nos fazer algumas perguntas sobre a situação das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres precisamos refletir, afinal, os serviços que temos hoje no estado são suficientes? Tem suas equipes completas de acordo com as normas nacionais? Seus recursos humanos e materiais condizem com a necessidade do local em que estão instaladas? As mulheres conhecem, sabem da sua existência? É fácil acessá-la? São acolhidas e tratadas com dignidade ao realizar uma denúncia em qualquer um dos serviços? As equipes que as atendem têm qualificação permanente? As reuniões de rede de atendimento são mensais e periódicas? Incorporam o movimento de mulheres e as universidades? A perspectiva de gênero e das interseccionalidades e da garantia de direitos se sobrepõe a julgamentos morais? As mulheres consideram que têm conseguido justiça ao buscar o Judiciário? As sobreviventes de violência e feminicídio e suas famílias têm sido consideradas? Onde elas estão? Conseguem atendimento? E as políticas de prevenção? As chamadas rotas críticas, identificadas como caminhos difíceis que levam à desistência das mulheres que as percorrem no nosso estado têm reduzido ou aumentado? Se têm mais dificuldades, onde está o problema?
Não há como negar que as políticas públicas para as mulheres foram sucateadas nos últimos anos, em especial quando prevaleceu no Brasil uma perspectiva conservadora sobre a sociedade, as mulheres, e, sabemos que a consequência do conservadorismo se reflete no número de violência contra as mulheres e feminicídio.
Uma das reflexões também necessárias, é de que a Segurança Pública é fundamental no combate à violência, o registro do BO, a Medida Protetiva de Urgência, o acompanhamento da Patrulha Maria da Penha. Mas esse não pode ser o foco da política de enfrentamento, como demonstra a Lei Maria da Penha, que preconiza intervir em diversas dimensões e fases do problema, até porque quando chega na polícia a violência já aconteceu diversas vezes, na maioria dos casos. E às vezes, na véspera da morte.
Nesses três anos e meio de trabalho na Lupa Feminista, com o apoio de pesquisadoras inseridas em universidades e do movimento de mulheres, temos aprendido muito e aperfeiçoado nossa compreensão a respeito do feminicídio. Hoje, partimos de um entendimento sociopolítico e não restrito à visão jurídico-legal, que com frequência não enxerga que as mortes violentas de mulheres podem ser consideradas feminicídio em diversas situações. O documento Diretrizes Nacionais para investigar e julgar os feminicídios com a perspectiva de gênero (ONU Mulheres e SPM, 2016) adotado logo após a Lei do Feminicídio (2015), prevê pelo menos 13 circunstâncias em que esses crimes podem ocorrer.
No entanto, no que tange especificamente aos assassinatos de mulheres, objeto do nosso monitoramento, para além da situação de violência doméstica, que é a maioria dos casos, o feminicídio também ocorre em situações de menosprezo ou discriminação do gênero feminino, sendo manifestado pelo ódio, aversão ou objetificação da mulher.
A fonte principal da Lupa Feminista é a imprensa, na qual se buscam diariamente, em diversas reportagens publicadas na internet, montar a história de cada mulher assassinada e entender os desdobramentos dos casos, o que nem sempre é possível. Isso porque a maioria das reportagens, seja por desconhecimento de quem a escreveu - linguagem empregada, uso da voz passiva ou por absorção de estigmas e estereótipos presentes na própria cultura policial – passa a mensagem culpabilizadora da mulher, que protege o assassino e assim justifica o crime. Além do mais, indicadores importantes como raça/cor, orientação sexual, identidade de gênero, se tem deficiência ou não, por exemplo, não constam nos materiais de imprensa.
A partir desses dados coletados na mídia, há um cotejamento com dados oficiais contidos no observatório da Secretaria de Segurança do Estado, que invariavelmente trazem números menores, o que nos leva a buscar explicações e tentar entender critérios e indicadores, os quais não tem sido discutidos com todas as partes interessadas em enfrentar o problema da violência e do feminicídio.
Essa discrepância de dados, não raro estimula a troca de informações com outros observatórios similares, ativistas e pesquisadoras da área em salas de situação, tanto em nível nacional quanto internacional. A compreensão tem sido muito similar em relação à subnotificação e o tratamento dado ao assunto, o que ao contrário de nos confortar, demonstra que os desafios são enormes em toda a América Latina.
Em geral, os casos que se enquadram nitidamente como “menosprezo à condição de mulher” previstos na lei, não são considerados como tal, e acabam entrando na estatística de “homicídio de mulheres”. Dessa forma, as estatísticas oficiais ficam mais positivas, mas não nos enganemos. Foi feminicídio! É uma nova forma de negacionismo que se identifica, pois na medida em que se enquadram feminicídios como “homicídios” ou “lesões corporais graves seguidas de morte”, o problema do assassinato de mulheres por razão de gênero ou desprezo se reduz nas estatísticas e se oblitera a necessidade de políticas públicas ou medidas sérias para o cessar a matança das mulheres.
Não há novidades em relação a isso, os estudos têm mostrado constantemente essa tendência, o que torna o problema maior. Há um engessamento no entendimento de feminicídio pelos agentes de segurança pública no país que precisa ser quebrado. Tanto o Anuário de Segurança Pública, que é construído a partir dos dados oficiais das Secretarias de Segurança Pública, ou o Atlas da Violência que utiliza dados da saúde, já fazem essa discussão há algumas edições: há grande subnotificação, inclusive nas tentativas de feminicídio que acabam sendo consideradas na maioria das vezes como “lesão corporal”.
Existem alguns tipos e cenários em que ocorrem os feminicídios, inclusive características. Nos casos que se relacionam ao desprezo e ao ódio, podemos observar: violência sexual e/ou estupro, mutilação e tortura, rituais de grupos, gangues ou religiosos, humilhação com o descarte do corpo de mulher nua, queimada ou descarnada em vias públicas, valas ou matagais.
Também é preciso aprofundar os feminicídios no contexto do crime organizado e tráfico de drogas, em especial nos territórios, pois são situações complexas, que descartam a hipótese de feminicídio pelo possível envolvimento da mulher ou sua história de antecedentes criminais. E quando se descobre que a companheira do traficante foi morta a mando dele? E por que deve levar mais tiros do que um homem? Os feminicídios íntimos são predominantes, mas não se pode perder de vista que podem ocorrer em outros contextos, um é o reflexo do outro, como consequência das desigualdades de poder, econômicas, sociais e políticas determinadas pelas hierarquias de gênero, incluindo a heteronormatividade.
É fundamental não banalizar o feminicídio, nem todas as mortes violentas de mulheres são feminicídio, porém, grande parte é, pois não podemos esquecer que estamos no Brasil, um dos países que mais mata mulheres no mundo, o país que mais mata pessoas trans, especialmente mulheres trans e travestis. Que pune as mulheres lésbicas até mesmo com a morte para “corrigi-las”. Um país em que as armas de fogo foram disseminadas e caíram nas mãos dos homens, contra as mulheres.
Noutro dia, uma jornalista escreveu em sua coluna sobre o tema do feminicídio, e se perguntava como não há um levante social diante de tantos feminicídios nos últimos tempos. Na nossa leitura não há comoção porque a vida das mulheres é descartável e negociável dentro do sistema patriarcal, que explora e negocia a vida das mulheres em seus diversos aspectos, principalmente no campo dos afetos e da força de trabalho. “Aquilo que eles chamam de amor a gente chama de trabalho não pago”, como diz a pesquisadora italiana Silvia Federici, que relaciona a perseguição às mulheres, tratadas como bruxas, ao complexo sistema de expropriação de bens, vidas e corpos. Os corpos das mulheres continuam sendo vistos como os que reproduzem novos humanos numa sociedade em que se entregou aos homens o poder de decidir sobre a vida delas.
Este é um sistema que mantém o status quo a partir do medo, do terror e da violência, e nele não há comoção porque “mulheres são corpos matáveis”, como diz Márcia Tiburi, uns ainda mais que os outros, como as mulheres negras, indígenas, pobres, periféricas, que são o perfil das mulheres que sofrem feminicídio no Brasil, como as mulheres lésbicas, as mulheres trans e as mulheres com deficiência.
É muito importante reafirmar que a nossa luta não se resume aos números, embora muitas vezes tenhamos a sensação de estarmos contando corpos, até porque estamos falando da vida das meninas e mulheres. Reafirmamos que dados corretos são imprescindíveis para a construção de políticas públicas de prevenção e proteção eficazes capazes de dar conta da complexidade do problema. São um imperativo ético, pois é preciso garantir que as vidas perdidas serão honradas e justiçadas.
Por isso defendemos que além da adoção de política para prevenir e proteger as mulheres da violência, as Diretrizes Nacionais do Feminicídio devem ser seguidas seriamente, com a capacitação permanente de agentes de Estado, entendendo que as mortes violentas de mulheres devem ser investigadas sempre como um possível feminicídio, para, somente, com a investigação, se descartar essa hipótese. Por conseguinte, os números oficiais mudarão, poderão produzir frustrações a expectativas que não levam em conta a realidade vivida pelas mulheres, mas o Estado cumprirá com o seu dever de defender as suas vidas e honrar suas memórias.
* Thaís Pereira Siqueira, psicóloga, coordenadora da Lupa Feminista; Telia Negrão, jornalista e cientista política, integra o coletivo Querela Jornalistas Feministas.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko