Ainda Estou Aqui é um relicário tão merecido ao solidário e telúrico Brasil
Que gentileza esse filme que anda de boca em boca.
A composição abraçadora e maternal de Walter Salles nos levou ao encontro da memória que achávamos que não nos pertencia, tão na pele, tão no íntimo. Entramos, enfim, todos juntos, com Eunice, com Fernanda, nesses porões, sujos e frios, onde, impunemente, mãos frias torturavam homens e mulheres. Parece que a Vida juntou forças para contar com beleza e classe tudo isso um dia. A vida tem memória de fogo, e fogo é arte.
Com Fernanda Torres e Selton Melo e dirigido por Walter Salles, “Ainda Estou Aqui” foi escolhido para representar o Brasil no Oscar 2025 / Divulgação
A casa aberta, a areia entrando, a margem do mar e a margem da família que se deixa permear, vem o cachorro e fica, porosa casa brasileira, outras famílias vêm e compartem o trago, a risada, o olhar de cumplicidade para que ninguém seja levado, as crianças que brincam juntas e que mais tarde contarão essa história. E a paisagem, que nunca foi pouca coisa no Brasil, sempre foi mãe. Deixaram o mar, o verde entrar, deixaram as esquinas com essas árvores antigas atravessarem anônimas os que achavam que só assistiam a um filme. As árvores dos Paiva também foram testemunhas.
Místico… tropical… escolha o que preferir. As palavras andam soltas. Queremos falar disso. Algo se liberou da garganta de Eunice e de todos nós. Vimos o recorte de tempo, essa família, e além da didática, da dialética, estamos perto, bem perto, brasileiros tocando o que sempre quisemos tocar.
Receita do suflê de queijo, de Eunice Paiva, citado no filme Ainda estou aqui / Reprodução
Os dias que passam com sorvete, suflê e canções que se encaixam uma na outra não por acaso, as noites com terror, a morte que tem mãos organizadas, e então o enlevo da casa vazia, a dor na garganta de Eunice. Junto e misturado, o rock que abria suas asas, a Tropicália, a barba e o vento na cara, os passeios pelas ruas ao lado do seu amor. Um quintal – como dizia Manoel de Barros – “maior que o mundo”, e em Walter Salles esse quintal atinge a dimensão do transgressor, porque albergava a resistência.
Talvez o mundo sinta saudade de algo depois que ver esse filme. A palavra “saudade” nos Paiva ficou embrenhada de maresia. A saudade que muitos brasileiros dizem ter da ditadura pode ser mentira. E era só saudade da paz da porta aberta com areia entrando e da abertura ao outro. O ar que exalava a juventude com pouco algoritmo ainda, o vento e areia entrando nas casas e essa insolência do ar para todos, coisa das Utopias, quando andam soltas demais.
O filme mostra de maneira bela que ali se ousava pelos companheiros, conhecidos ou desconhecidos.
A memória tem poder de guardar a dor, mas também os valores, para hoje nos perguntarmos: Faríamos hoje isso por alguém?
Ainda Estou Aqui é um relicário tão merecido ao solidário e telúrico Brasil.
Eunice com os cinco filhos na vida real e na reprodução para o filme / Reprodução
A cena que a família inteira dança parece bobinha, e é. É “o direito de ser bobo” da Clarice e mais. É erotismo nosso.
“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.” (Manifesto da Poesia Pau-Brasil de 1922)
O filme mostra a abertura erótica natural, a velha celebração que vai ser perseguida, a desnudez política, o erotismo que é gostar de gostar da vida. Esse que a ditadura persegue porque isso é coisa que enfraquece a máquina de destruição.
Nesse mesmo sentido, pelas redes saltam vídeos de Fernanda Torres em suas dancinhas, e budas ditosos, falas provocativas contra a amargura pudorosa, mostrando sua fragilidade, sua humanidade. Aí vemos como essa essência fecunda o filme, assim como o carisma simples de Selton Melo.
A trama é justa, não sei de arte cinematográfica, planos sequências, paletas e as atuações, mas os adolescentes têm frescor no olhar, e parecem ter recebido a chispa dos mais vividos nos sets. Há por tudo uma transmissão, uma linhagem digna que segue. Nada de pirotecnia de inteligência artificial. Trabalho manual. A casa é sua, "mi casa es su casa". Latinoamérica se expressa nas frestas. Os que ovacionam torturadores não imaginariam que a arte os venceria assim.
Por detrás das máscaras secas do fascismo está toda essa trama imensa e apaixonada pela vida… sempre esteve.
Walter Salles guarda segredos para além da cinematografia nessa obra / Divulgação/Ainda Estou Aqui
Uma cozinheira não conta seus segredos, e acho que Walter guarda segredos para além da cinematografia nessa obra. Cria um memorial disfarçado de beleza, um ritual sensorial, perpassa nossos olhos, abranda, acalma o peito, para então, apresentar o escuro porão que atordoou impunemente a nação. Um porão que até hoje não foi visitado como devia e nos falta justiça. Faz falta o coração ir ali, VER e tomar um choque do que realmente foram os militares.
Todos amadurecemos com esse ritual moderno de estar ao redor da fogueira/cena, escutando, imaginando o que passava nas salas de tortura enquanto Eunice/Fernanda se contorcia no chão da cela.
Recortes de jornais da época / Reprodução
A morte é dignificada e a vida resgatada da falta de sentido, do esquecimento. Do outro lado do amor popular está o esquecimento e a morbidez do cinismo.
Gioconda Belli, escritora nicaraguense, que também enfrentou e enfrenta ditaduras, disse uma vez “he optado por no ser cínica" e falava de como está na moda o cinismo e que o romantismo de crer em utopias não é nada cool hoje em dia. Depois desse filme, voltamos a ser um pouco mais crentes, inclusive pela possibilidade de vencer o Oscar e mostrar muita coisa ao mundo.
O jeito é sempre o alvo das tiranias... e esse jeito segue sendo ameaçado pelos mesmos matadores de sonhos.
Mas, estamos aqui, e parafraseando Mario Benedetti… “Ainda é uma palavra enorme”.
* Esmeralda Molina, ativista da Nación Pachamama.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko