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Mais do que os olhos podem contar

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'Um dia, parte da cúpula do exército brasileiro resolveu que tinha o direito de permanecer no poder, não importa quem ou quantos fosse preciso matar' - Joédson Alves/Agência Brasil
Mas alguma coisa aconteceu, alguma coisa que implodiu a democracia e tudo que a representa

Taiasmin Ohnmacht*

Muito se fala sobre narrativas, mas na maior parte dos casos não passa de falação, barulho alto, ensurdecedor, sem a intenção de falar alguma coisa que valha, a maior aposta parece ser impedir o pensamento.

Quanto a mim, sinto falta de narrativas. Sinto falta mesmo de narrar o que acontece no agora-agora. O mundo caindo aos pedaços, os melhores sonhos compartilhados em xeque, e tudo o que parece restar são os meus olhos esbugalhados e pouca história para contar.

Nas últimas semanas a fake news do pix, na anterior a especulação do mercado financeiro, antes as criminosas mentiras sobre vacinas, e antes ainda – e sempre – o fantasma útil da ameaça comunista.

É preciso contar aquilo que os olhos veem, e que, mesmo visto por todes, carece de narrativa. Quero ler jornalistas e cronistas, aqueles que sempre foram os contadores do cotidiano. Por vezes jornalistas-cronistas, algo muito comum. Mas alguma coisa aconteceu, alguma coisa que implodiu a democracia e tudo que a representa. Vivemos o confuso momento em que os veículos oficiais de informação foram desacreditados para dificultar qualquer ambiente de unificação popular, e, por outro lado, há algo de insidioso nas escolhas editoriais e em como as notícias são divulgadas por esses mesmos veículos. Sendo assim, acho que me restam as cronistas, sejam jornalistas ou não.

Portanto, insisto na necessidade da narrativa em outra perspectiva. Uma que não se dissocie da experiência. Uma que seja decorrente da experiência. Se Benjamim dizia lá no início do século 20 que a arte de narrar estava em vias de extinção, que palavras temos para falar desse presente em que estamos e desse excesso de agora?

Nesse território da Améfrica Ladina temos, me parece, outros dispositivos de resgate da possibilidade narrativa, modos de tecer o vínculo entre os tempos, de encontrar palavras para compartilhar a experiência, assim penso em uma narrativa Evaristoniana, característica da obra de Conceição Evaristo, que conjuga memória, escrita, ancestralidade, experiência e singularidade.

Estes tempos de agora-agora nos roubaram várias palavras, narrativa foi apenas uma delas, a outra foi transformar compartilhar em um clique, colocando o que seria da ordem da experiência na esfera do dar(-se) a ver.

A seguir uma pequena narrativa de minha experiência e de meu terror.

Pego um táxi, no rádio do carro um locutor vocifera a favor dos atos do 8 de janeiro de 2022 e faz afirmações falsas que podem ser facilmente refutadas. O taxista escuta em atenta concordância. É a semana em que vem à público detalhes das tentativas de golpe sucessivas que ocorreram pós eleição de 2022, e os planos de assassinato do presidente eleito e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), à época presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O assassinato de um presidente eleito por voto popular e do presidente do TSE foram tramados e colocados parcialmente em andamento.

Um dia, parte da cúpula do exército brasileiro resolveu que tinha o direito de permanecer no poder, não importa quem ou quantos fosse preciso matar.

Um dia o exército brasileiro (a maior parte? Toda corporação?) decidiu que tomar o Estado para si, da forma que fosse, seria algo justo e desejável.

Mas antes disso tudo, e o que tornou tudo isso possível: os militares se sentiram superiores aos civis. Antes disso tudo e mesmo agora, os militares se percebem avalistas e donos dos destinos da Nação. E superiores aos civis, superiores a ti, a mim e ao motorista do táxi.

No Brasil, o cálculo que as elites econômicas fazem (elites sócias dos militares, elites integradas também por militares), admite a morte de qualquer um de nós. Nossas vidas não importam, nem a minha, nem a tua, nem a do motorista.

E o radialista continua vociferando.

Por fim, nesse terreno de crônicas, destaco o livro: Pela hora da morte (Jandaíra, 2022), em que Nathallia Protazio narra a experiência que todes compartilhamos na pandemia. Não o indico como modelo do que quer que seja, mas por tecer alguma possibilidade narrativa para este agora.

* Taiasmin Ohnmacht – psicanalista e escritora. Autora dos romances Uma Chance de Continuarmos Assim (Diadorim, 2023), Vozes de Retratos Íntimos (Taverna, 2021), livro vencedor dos prêmios AGES e Açorianos de literatura; finalista do prêmio São Paulo de Literatura e semifinalista do prêmio Jabuti.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo