ENTENDA O CASO

Ocupação Nelson Mandela, em Campinas, sofre ameaça de despejo em meio à pandemia

Reintegração de posse está marcada para a próxima segunda-feira (31); sem-teto pedem adiamento da decisão

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Mais de cem famílias serão diretamente afetadas caso o despejo não seja suspenso; Crianças e pessoas do grupo de risco da covid-19 vivem na comunidade - Foto: Divulgação/Ocupação Mandela

Dezenas de famílias correm o risco de serem despejadas durante a pandemia do novo coronavírus em Campinas, interior do estado de São Paulo. A reintegração de posse da área da Ocupação Nelson Mandela, onde vivem cerca de 300 pessoas, está prevista para a próxima segunda-feira (31) - quando se esgota o prazo para que os sem-teto deixem o terreno voluntariamente. 

As 108 famílias chegaram ao local em abril de 2017 após serem despejadas de forma violenta de uma outra área da cidade, no bairro Jardim Capivari. Na ocasião, mais de 2 mil pessoas foram retiradas de suas casas pela Polícia Militar. 

O novo pedido de despejo em favor de uma família que reivindica a posse da área da segunda ocupação veio poucos meses depois das famílias reconstruírem seus barracos.

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Segundo o advogado popular Alexandre Mandl, diante do novo processo, o proprietário e os sem-teto entraram em um acordo com participação da Prefeitura de Campinas, em janeiro de 2018. À época, a municipalidade se comprometeu, em juízo, a construir 200 unidades habitacionais que garantiriam a moradia das famílias do Nelson Mandela, postergando a reintegração no período de um ano.

No entanto, com o vencimento do prazo em janeiro deste ano e com o não início das obras, a Companhia de Habitação Popular de Campinas pleiteou mais 6 meses de prorrogação - período que chegará ao fim no começo da próxima semana. 

Mesmo com a ampliação do prazo, as moradias não saíram do papel e a gestão ofereceu o pagamento do auxílio-aluguel apenas para 45 famílias. 

Com o aproximar da data da reintegração, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a Comissão dos Direitos Humanos da Câmara de Campinas e o Ministério Público (MP-SP) se manifestaram em defesa do adiamento da reintegração em meio à pandemia.

Já a Prefeitura só se manifestou pedindo a extensão do prazo em 18 de agosto após pressão das famílias sem-teto, que realizaram três atos na cidade em defesa da suspensão do despejo. Um deles, inclusive, foi em frente à casa do prefeito Jonas Donizzetti (PBS).

“Se a Prefeitura tardou, se houve problemas ou mudanças nas políticas públicas, não são as famílias que devem pagar essa conta. Existem uma série de instrumentos de regularização fundiária que a Prefeitura pode e deve usar porque ela é corresponsável pela negligência de uma propriedade que está há 25 anos sem cumprir sua função social”, afirma Alexandre Mandl, integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap).

Ele diz que até o proprietário do terreno se posicionou de forma favorável para a venda da área onde as famílias já estão, mas as tratativas não foram finalizadas no prazo.

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O processo está sob responsabilidade do juiz Cássio Modenes Barbosa, da 3ª Vara do Foro da Vila Mimosa, que afirmou que só irá se manifestar sobre a suspensão ou não do despejo no dia 31 de agosto.

“É quase uma prática sádica. Uma tortura psicológica das famílias, uma pressão gigantesca até dia 31. As famílias não podem ser punidas pela morosidade, justificada ou não, da Prefeitura”, reitera Mandl.  

O advogado acrescenta ainda que caso a reintegração não seja suspensa ou adiada, as famílias podem ser penalizadas com multas a cada dia de permanência no local.

Risco eminente

Os moradores da Ocupação Mandela alertam que entre as famílias existem 89 crianças menores de 10 anos, oito adolescentes menores de 17 anos, dois bebês prematuros, sete grávidas e dez idosos. Todos irão para a rua caso a reintegração seja executada.

O movimento também mapeou 62 pessoas que pertencem ao grupo de risco na ocupação, com problemas cardiológicos e respiratórios.

Célia dos Santos, uma das lideranças da comunidade, relata que o clima é de muita agonia entre os sem-teto.

“Estamos sem saída, muita gente entrando em depressão. Gente que não dorme. Faz três dias que eu não sei como consigo me manter em pé. As pessoas querem uma resposta e eu não tenho o que falar além de que a reintegração está marcada pro dia 31. Imagina o nosso desespero”, desabafa.

Ela relata que todos os moradores respeitaram o acordado em juízo em janeiro de 2018, que previa a não expansão pra outras áreas do terreno e o limite das 108 famílias vivendo no local. O Poder Público, por outro lado, não cumpriu com sua parte do combinado.

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A sem-teto critica a concessão do auxílio-aluguel, que começaria a ser pago 5 dias após o despejo, apenas para 45 famílias. “As outras 60 famílias que também estão vivendo a pandemia vão pra onde?”, questiona.

Os moradores da Ocupação Mandela, que temem reviver o violento despejo da reintegração de 2017, ressaltam a urgência do adiamento da reintegração para não estarem ainda mais expostos ao coronavírus, mas, de acordo com Célia, a principal demanda é a da moradia permanente. 

“Precisamos de uma decisão na qual a Prefeitura de Campinas dê uma solução pra essas famílias. Acabando ou não a pandemia. Não adianta suspender e, quando a pandemia acabar, continuar o desespero das famílias do mesmo jeito”, critica. 

O advogado Alexandre Mandl também endossa que seja por meio do loteamento urbanizado, da compra da área ocupada ou de outro terreno na região, é preciso uma resposta efetiva.

“A Prefeitura tem que manter o compromisso dela de entrega de unidades habitacionais para essas famílias. Existem várias alternativas. O que não tem cabimento é despejá-las, ainda mais em meio à pandemia, e mesmo daqui seis meses se não tivermos as unidades habitacionais. É contra isso que estamos brigando”.

Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Cohab alega que a Prefeitura sempre manteve contato com as lideranças da Ocupação Mandela e que a reintegração foi solicitada pelo proprietário da área. O órgão também afirma que a promessa de construção habitacional não procede.

"O que há é uma área ao lado, que é da Prefeitura, onde está sendo feito um projeto habitacional de lotes, que primeiro será oferecido para famílias que estão na lista do auxílio-moradia há mais de cinco anos, para não cortar a fila, conforme regras vigentes', diz o texto.

A Companhia também afirmou que o auxílio-moradia está sendo oferecido em razão da pandemia por um período determinado, de seis meses, apenas para as famílias que estão no local desde o início da ocupação.

Edição: Rodrigo Durão Coelho