LUTA

Quilombo urbano em Porto Alegre é alvo de nova reintegração de posse

TRF4 concedeu liminar ao Asilo Padre Cacique, dois anos após uma reintegração ser suspensa, dessa vez em meio à pandemia

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Quilombolas reunidos durante luta contra reintegração em 2018 - Reprodução/Facebook

Dois anos após resistir a uma tentativa de reintegração de posse, o Quilombo Lemos, em Porto Alegre, está mais uma vez ameaçado de despejo. A 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) concedeu uma liminar de reintegração de posse com o prazo de 45 dias para desocupação voluntária, a pedido da direção do Asilo Padre Cacique, colocando em risco o final de ano das seis famílias que vivem no local e lutam pela titulação de território quilombola.

A informação foi divulgada nas redes sociais do Quilombo Lemos, no domingo (22). O texto afirma que as famílias foram surpreendidas com a “decisão monocrática”. Destaca que a liminar veio após a realização de uma audiência pública envolvendo um projeto de construção de duas torres em frente ao território “e uma visita não muito bem explicada à Superintendência Regional do Incra em outubro por parte da direção do Asilo Padre Cacique. A nota critica a direção da entidade, que “grila a área reivindicada pelos Quilombolas que desde o início da década de 1960 reconstroem suas vidas no local”.

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“Dois anos depois, no meio de uma pandemia, fomos pegos de surpresa”, afirma Sandro Gonçalves de Lemos, morador do Quilombo desde que nasceu, há 45 anos.

Segundo ele, as famílias estão em alerta: “O sentimento da família é de apreensão, principalmente por parte das mulheres e crianças que ficaram bem abaladas e com trauma de dois anos atrás. A gente ficou surpreso, no meio de uma pandemia, várias questões que foram levadas em consideração, que no nosso entendimento não deveriam ser assim, mas estamos unidos e esperançosos para passar por mais essa dificuldade.”

Segunda reintegração de posse

O Quilombo Lemos sofreu um processo de reintegração de posse, em 2018, também por parte do Asilo Padre Cacique. Após intensa mobilização da família e apoio de entidades e movimentos sociais, a reintegração foi suspensa pela Defensoria Pública do Estado, por não cumprir protocolos.

O asilo luta na justiça pela terra desde a morte do patriarca da família, Jorge Alberto Rocha de Lemos, em 2008. Ele e sua companheira, Delzia Gonçalves de Lemos, fundaram esse que é o sétimo quilombo urbano de Porto Alegre, na década de 1960. Os dois eram trabalhadores do asilo e teriam ganhado o direito de permanecer no local, mas sem ter documentação de posse.

“Estamos aqui há 60 anos e o que me espanta é que, depois de 50 anos, o Asilo Padre Cacique reivindica um terreno que por 50 anos nunca reivindicaram. Mas a gente está fazendo a nossa parte, reunidos, aquilombados, e vamos resistir e fazer tudo o que tiver que ser feito por justiça e pelos nossos direitos. A gente tem várias crianças no Quilombo, que serão o futuro do nosso quilombo e da nossa nação, a gente tem que resistir assim como nossos ancestrais resistiram e nós estamos aqui, o nosso dever mínimo é também lutar pelo que é de direito nosso”, afirma Sandro.

Conforme explica o advogado do Quilombo Lemos e da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, Onir Araújo, a relação entre a reintegração de posse de 2018 com a atual envolve uma matéria processual complexa. Havia uma decisão desfavorável à família na Justiça Comum, mas a competência foi “declinada para a Justiça Federal em decorrência da autoidentificação e Certificação da Fundação Cultural Palmares e existir atuação de Autarquia Federal, no caso, o Incra que possui a incumbência de realizar os estudos referentes ao território”.

Através de um recurso de agravo de instrumento, o Asilo Padre Cacique reverteu a decisão, com a expedição do mandato. O processo de titulação de território quilombola encontra-se aberto no Incra, aponta Onir, “com passos lentos com a recorrente alegação de falta de recursos agravada com a crise sanitária”.

STF desaconselha despejos na pandemia

O advogado destaca ainda que existe uma recomendação do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação a territórios indígenas, desaconselhando remoções e despejos no período de pandemia. Segundo ele, a decisão “se aplica analogicamente para Comunidades Quilombolas, inclusive existem decisões recentes na Quarta Turma do TRF4 que remetem a esse entendimento.” Porém, mesmo com a recomendação, Onir alerta que estão ocorrendo muitas tentativas de despejo em todo o país.

Na avaliação de Sandro, a nova investida contra o território não é uma surpresa. Ele cita a audiência pública que tratou das torres que o Sport Club Internacional pretende construir, bem como a reunião no Incra com o Asilo Padre Cacique: “São coisas que se ligam uma na outra e não são casos isolados. A gente sempre estava esperando uma movimentação jurídica, mas não em meio a uma pandemia onde tem um comunicado do [Ministro Edson] Fachin que o prudente é não dar nenhum tipo de desocupação em terras quilombolas e indígenas.”

Mais uma investida contra o povo negro

Sandro lamenta a decisão, que ocorre na sequência do Dia da Consciência Negra e do caso de João Alberto, homem negro assassinado por seguranças em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre: “No mês da consciência negra, isso só é um reflexo dos nossos comandantes de hoje, a gente sabe qual a posição deles quanto à indígenas e quilombolas, é o que infelizmente a gente lamenta”.

::Porto Alegre: novo protesto pede justiça por João Alberto em frente ao Carrefour::

No que se refere ao contexto da luta antirracista e o “triste, mas, recorrente episódio envolvendo João Alberto”, Onir destaca que as comunidades quilombolas enfrentam esse quadro cotidianamente. “

Viver e fazer coisas banais e corriqueiras como ir ao supermercado, levar e buscar filhos e filhas na escola, pegar ônibus, ir para o trabalho, voltar, ir comprar pão, soltar pandorga, jogar bolita para o homem e, em especial, para o jovem negro são atividades de extremo risco como as estatísticas não negam”, lamenta.

Para o advogado, na medida em que a cidade vai ficando mais cinza, com territórios ameaçados e destruídos, a cidade vai ficando cada vez mais segregada e hostil para negros e negras.

“A morte de João Alberto e de muitos outros e outras se relacionam diretamente com a destruição dos territórios e das referências de matriz Africana, se relacionam diretamente como expressão de uma incessante guerra racial de alta intensidade que vulnerabiliza corpos e territórios negros. Mas possuímos esperança, digamos, uma esperança combatente de que a Justiça será feita, tanto para a família de João Alberto como para o Quilombo Lemos”, acrescenta.

Ainda segundo Onir, foi realizada uma reunião nesta terça-feira (24) com a desembargadora Vânia Hack de Almeida, que expediu a liminar. “Estamos trabalhando no pedido de reconsideração de despacho em relação a decisão dela, a gente espera que o bom senso prevaleça considerando o quadro difícil da pandemia”, conclui.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko