Coluna

O dia em que o Brasil deu a descarga

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O candidato derrotado Jair Bolsonaro (PL) - Foto: Evaristo Sá/AFP
Desta vez, quem pressionou a válvula foram 60.345.737 dedos indicadores

Começo estas mal traçadas com uma homenagem a dois ingleses, Alexandre Cumming e Joseph Bramah. Em 1775, o primeiro patenteou a ideia de privada como a conhecemos. Em 1778, o segundo aprimorou a ideia com uma descarga de água, o que permitiu a eliminação dos dejetos através de um sistema de sucção. Devo a seu engenho e arte, a metáfora que sustenta esta coluna, que pretende lidar com um tema desagradável mas de alguma graça.

Domingo, 30 de outubro, o Brasil deu a descarga. Dito assim, parece um gesto banal de apertar um botão. Mas o botão estava travado havia quatro anos. Várias tentativas para desemperrá-lo deram em nada. Aquele volume no interior da bacia sanitária só fez crescer. Ao cabo de quatro anos, transbordava do vaso e maculava a alvura da cerâmica com laivos marrons.

A descarga sacudiu a imundície em ondas antes de vencê-la e esgotá-la, remetendo-a à profundeza das cloacas de onde, quatro anos passados, emergira para nosso espanto e asco.

:: Derrotado, Bolsonaro se isola, cancela entrevista e não responde nem a assessores próximos ::

Desta vez, quem pressionou a válvula foram 60.345.737 dedos indicadores. Fizeram o que o Legislativo, sobretudo a Câmara dos Deputados, teve 150 razões para fazer e não fez: jogar pelo esgoto o governo mais cruel, mesquinho, danoso e boçal em dois séculos de história do Brasil enquanto nação independente.

Com ele parte um presidente obtuso, de personalidade perversa e empatia zero que empurrou para a morte centenas de milhares, enquanto gargalhava fazendo troça de quem morria por falta do oxigênio que seu governo deveria propiciar a tempo, no que falhou miseravelmente.

Partem os ministros mais ineptos da República, auxiliares imprescíndiveis do elenco de desgraças no meio-ambiente, na saúde, na educação, no trabalho, nos direitos humanos, nas relações internacionais.

Partem os militares que se enquistaram no corpo do governo federal com resultados agradáveis para si próprios mas desastrosos para o país. Premiados com bateladas de viagra e de mimos de próteses penianas, partem após demolirem a imagem das forças armadas.

Partem, por último mas não menos importante, as hostes nazifascistas e os gabinetes do ódio.

Mas resta muito por fazer.

Pegando outra metáfora como muleta, a estaca atravessou o coração do vampiro e nos livramos dele. Porém, o vampirismo continua entre nós. Nos modos da canalha fascista, na ação das milícias que destroçaram o Rio e infectaram sua política e seus políticos, na coação de patrões que não se pejam de cometer crime eleitoral, nos produtores de notícias falsas nos subterrâneos da internet, no gatilho fácil das polícias que matam, no programa regressista e na picaretagem dos fariseus e moralistas de ocasião.

Não será fácil. Será um governo com todo um país para reconstruir. Um governo que carregará uma agenda pesada que terá que destrinchar e fazer andar lidando com um Legislativo onde a ultradireita sentou praça e aspira pelo pior. Não teremos tédio nos próximos quatro anos.

Há muitas descargas por dar.

Edição: Nicolau Soares