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Zumbilândia, quando a vida imita a arte

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Bandos errantes das ruas e estradas são a nossa tragédia – tragicomédia, às vezes – e o nosso desastre
Bandos errantes das ruas e estradas são a nossa tragédia – tragicomédia, às vezes – e o nosso desastre - Anderson Coelho / AFP
Escapa à razão e flerta com o desatino: cenas de multidões pedem intervenção federal após eleições

A vida está nos ensinando que alguns fatos que presenciamos desde o dia 31/10 correm o risco de não serem bem assimilados à luz do jornalismo ou do realismo literário. São eventos que dialogam com o surrealismo ou, mais propriamente, com uma interpretação que somente o romance fantástico pode proporcionar. Talvez a chave esteja em um gênero que é uma fusão de outros dois. No caso, a ficção científica de terror ou sci-fi horror.

Multidões, grupos ou grupelhos paramentados de verde-amarelo nas portas dos quartéis, estradas e ruas do país invocam a democracia para pedir o fim da democracia. É algo que escapa à razão e flerta com o desatino. A condição robótica torna-os imunes a qualquer questionamento sobre suas certezas definitivas.

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Ouvindo todos a mesma voz martelando bordões dentro de suas cabeças acreditam no inacreditável. Esguicham ódio e convicção não importando a realidade que lhes esbofeteia diariamente.

O cinema nos adiantou quadro patológico similar algumas vezes. Em 1956, o diretor Don Siegel filmou Invasores de Corpos, novela de Jack Finney. Nele, pessoas são eliminadas e substituídas por réplicas geradas em vagens gigantescas. Obedecendo a um comando alienígena, seguindo um comportamento de rebanho, o duplo muda de personalidade, não possui sentimentos e sua tarefa é apontar aos gritos os que ainda não foram replicados.

Além dos humanos robotizados, existem os zumbis que, de modo ainda mais trágico, retratam o quadro de uma humanidade perdida. Nos livros, no cinema e na televisão, vagam pelo mundo devorando gente, seu único objetivo. Movimentam-se em hordas. Atacam seus semelhantes, mesmo sendo o próprio filho. Não pensam, não possuem empatia.

São duas metáforas que espelham o quadro que nos espanta e aflige. Nas duas situações, a massa perdeu a condição de refletir sobre o seu entorno e de interpretá-lo com as ferramentas da razão. Sua arma não é o raciocínio mas o delírio. O filtro para seu entendimento da realidade circundante não é a sabedoria e a ciência mas a subjetividade moldada por aquela opinião definitiva sobre tudo customizada e entregue no grupo de Whatsapp, Telegram ou outro aplicativo.

Perseguir e espancar alguém de camiseta vermelha, alvejar, ferir e matar pessoas que festejavam uma vitória eleitoral, estrangular uma criança que falou Lulalá, invadir um aniversário para assassinar o aniversariante, marchar estupidamente na chuva imitando recrutas, erguer o braço na saudação nazista ou cantar o Hino Nacional para um pneu não são gestos afinados com a sensatez mas com a perversidade ou com a mais completa ausência noção do ridículo.

Como acontece com os filmes de zumbis e de pessoas tornadas autômatos por extraterrestes, há aqui também um processo de desumanização. Com a diferença que o processo é alimentado por notícias falsas, recusa da verdade factual, teorias da conspiração, paranóia e construção do divergente como bode expiatório.

Nos filmes e na vida, as pessoas – parentes, amigos, colegas e vizinhos que o digam – deixam de ser aquelas que um dia foram. Não existem mais. Morreram, embora não saibam.

Em seu lugar ou em seu corpo há algo ou alguém que não reconhecemos. É este outro Alguém que está ali na chuva enrolado em uma bandeira, batendo continência e balbuciando slogans idiotas.

A negação do Outro pode se restringir à recusa de aceitar a palavra alheia. Ou pode ir ao extremo de revogar o direito de existir do adversário ou, aqui, inimigo.

A ensaísta Susan Sontag, que escreveu sobre o assunto, dizia que filmes de ficção científica não são sobre ciência mas sobre desastre, que é um dos temas mais antigos da arte. É mais um ponto em comum entre as duas narrativas. Os bandos errantes das ruas e estradas são a nossa tragédia – tragicomédia, às vezes – e o nosso desastre.

*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017). Leia outras colunas.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo