Coluna

Frei Betto, a Serra Gaúcha e o fascismo

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Frei Betto não recuou e a palestra acabou acontecendo ontem (13) na Universidade de Caxias do Sul (UCS)
Frei Betto não recuou e a palestra acabou acontecendo ontem (13) na Universidade de Caxias do Sul (UCS) - Concita Alves
Para procurar entender a gênese desse episódio talvez seja necessário viajar no tempo

A mais recente novidade constrangedora sobre a Serra Gaúcha - como as agências turísticas chamam o Nordeste do Rio Grande do Sul - foi o boicote promovido por “pais e familiares” de alunos do colégio São José, de Caxias do Sul, à realização de uma palestra de Frei Betto no local. Em abaixo assinado que obteve a adesão de 2.754 jamegões, o grupo alega ser o palestrante contrário “aos valores que acreditamos ser importantes e essenciais na educação de nossas crianças".

Betto é autor de 73 livros, alguns deles traduzidos para o inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, holandês entre outros idiomas. Parte de sua produção é destinada a crianças e adolescentes e há muito circula no país sem que se saiba de qualquer lesão a “valores essenciais” na educação da nossa infância.

Mas Betto não recuou e a palestra acabou acontecendo ontem (13) na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Com o alarido em torno do episódio, o público lotou o teatro da UCS. Foi bom para ele, mas ruim para a Serra que, nos últimos tempos, vem desferindo sucessivos tiros nos próprios pés.

Em maio de 2022, outra palestra, esta do então presidente do STF, Luiz Fux, foi cancelada em Bento Gonçalves, cidade vizinha. Aconteceria no Centro da Indústria, Comércio e Serviços (CICS). Atrás do cancelamento, o dedo do empresariado local, furiosamente bolsonarista. Não haveria condições de garantir a segurança de Fux, apesar de sua profissão de fé lavajatista. Ele falaria sobre “Risco Brasil e Segurança Jurídica”. Percebendo certo risco e pouca segurança, desistiu da empreitada.  

“Ficou muito mal para Bento Gonçalves rejeitar a presença do presidente de um dos poderes na cidade”, lamentou então o presidente da subseção local da OAB.

Ficou pior em fevereiro deste ano. Foi quando uma força-tarefa envolvendo o Ministério do Trabalho e Emprego, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal flagrou 207 pessoas submetidas a trabalho similar à escravidão no município. Comiam comida estragada e eram torturadas com choques. Contratadas por uma empresa terceirizada, colhiam uvas para três potências industriais da região, as vinícolas Salton, Garibaldi e Aurora. Foi uma bofetada na imagem pública das três.

Se já estava ruim, o mesmo CICS ajudou a piorar. Soltou nota culpando a falta de mão-de-obra e o benefício do Bolsa-Família pela escravidão...

Como cereja do bolo, entrou em cena o vereador bolsonarista Sandro Fantinel, de Caxias do Sul. Subiu à tribuna para pedir que as empresas “não contratem mais aquela gente lá de cima”, referindo-se aos trabalhadores recrutados na Bahia. Na sua visão, o problema não era propriamente o quadro de humilhação e violência na colheita. “A única cultura que os baianos têm é viver na praia tocando tambor", po(ntuou.  

Bolsonaro recebeu 66,4% dos votos de Caxias do Sul no 2º. turno. Em Bento Gonçalves, foram 75,8 % do total da cidade. Em Glicério (SP), onde nasceu, o candidato do PL teve menos votos (58%). A cidade mais bolsonarista do Brasil é  Nova Pádua que destinou 89% de sua votação ao ex-presidente. Das dez cidades do país que despejaram mais votos em Bolsonaro três estão na Serra Gaúcha. A que se deve isso? 

Para procurar entender a gênese dessa escolha talvez seja necessário viajar no tempo. Nas décadas de 1920/1930, a região colonial italiana foi percebida pelo regime fascista de Benito Mussolini como uma aposta interessante.

Encravada nos vales, ainda era um núcleo de imigração não absorvido pelo país que o acolhera. O dialeto vêneto ou a língua italiana eram mais usados do que o português. Agentes consulares da Itália passaram a visitar a Serra com frequência e propagar a grandeza da pátria de origem, como nota um pequeno clássico sobre o tema, As Sombras do Littorio – O Fascismo no Rio Grande do Sul, da historiadora Loraine Slomp Giron, ela própria natural de Caxias do Sul. As escolas e a igreja católica tornaram-se permeáveis ao discurso das glórias imperiais de Mussolini. E também os jornais.

“O fascismo recebeu total apoio da imprensa regional”, escreveu Loraine, citando dois jornais, o Staffetta Riograndense e Il Giornale Dell` Agricoltore. O primeiro exalta o ditador italiano e luta contra a maçonaria e o comunismo. Explora o que seriam as afinidades entre fascismo e catolicismo, enquanto descreve Karl Marx como “o hebreu que inventou o socialismo”.

Editado em italiano, o Giornale Dell`Agricoltore procurava exaltar os laços entre a colônia nos confins da América do Sul e a antiga pátria. Sustentava, inclusive, que Il Duce até elogiara a Festa da Uva caxiense.

O fascismo seduziu sobretudo comerciantes, industriais e profissionais liberais. Brotaram núcleos fascistas organizando manifestações, reuniões, festas e jantares. Aquelas paragens seriam também terreno fértil para o integralismo, a versão nativa do “fascio” italiano.  

Após a deflagração da 2ª. Guerra em 1939 e, principalmente, depois do ingresso do Brasil no conflito em 1942, tudo mudou. Parte da colônia reagiu à fascistização e ao culto à Itália, então aliada da Alemanha nazista. Eram nacionalistas ou liberais inconformados com a situação.  O governo Getúlio Vargas desfechou forte repressão nas áreas de colonização e os fascistas sumiram ou aderiram ao regime do Estado Novo. Mas é lícito admitir que algo talvez tenha permanecido, desenhando o arraigado conservadorismo ou mesmo reacionarismo hoje persistente.

A conjuntura internacional e o alinhamento do Brasil com as potências aliadas travaram o processo nos anos 1930 mas, observa Loraine, “a árvore fascista foi cortada, as raízes não foram tocadas”.

Edição: Glauco Faria