Entrevista

Covid: 62% da população acredita que houve conduta criminosa do governo Bolsonaro na pandemia

Cobrança por apuração, justiça e saúde pública está presente em espectros políticos diversos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Mais de 60% das pessoas ouvidas na pesquisa consideram que o governo Bolsonaro tem responsabilidade nas mortes pelo coronavírus - Mauro Pimentel/ AFP

Para a maior parte da população brasileira, o poder público precisa ser responsabilizado pelas mais de 700 mil mortes causadas pela covid-19 no Brasil e o país deve investir mais em saúde pública, ciência e pesquisa para evitar novas tragédias. A percepção foi exposta em uma pesquisa do Centro de Estudos SoU Ciência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que mostra que os brasileiros defendem investigação sobre o excesso de óbitos e punição dos responsáveis. 

Ainda de acordo com o estudo, apesar da politização que envolveu as políticas de combate ao coronavírus, pessoas de diversos alinhamentos políticos concordam em assuntos como a importância das campanhas de comunicação, apoio à inovação e até mesmo ações de reparação às famílias de vítimas e pacientes com sequelas. 

"Não é questão de narrativa, identitarismo ou religião, é uma questão de sobrevivência. Em ambos os lados começa a cair a ficha de que não topam a necropolítica e de que não querem mais ir para a beira do precipício, como fomos levados", afirma o professor Pedro Arantes, um dos coordenadores da Pesquisa de Opinião Covid-19, Vacina e Justiça - Percepção pública brasileira sobre vacinação, tratamentos e reparação de crimes na gestão da pandemia.   

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O trabalho aponta que o impacto do luto imposto pela pandemia teve proporções de guerra. Mais de 50% da população brasileira perdeu alguém em decorrência do coronavírus.  Para 62% das pessoas ouvidas, a conduta do governo federal foi responsável pelo aumento das mortes. A pesquisa também mostra que 52% consideram que eventuais crimes relacionados aos óbitos devem ser julgados e condenados.    

Entre as formas de reparação consideradas apropriadas, 44,7% indicam a criação de uma Comissão da Verdade, 39% a indenização de crianças que ficaram órfãs e 38,3% a criação de um tribunal especial para acelerar os julgamentos.   

O estudo perguntou ainda qual seria o melhor caminho para evitar que a tragédia se repita em caso de uma eventual nova emergência sanitária. O aumento de investimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) é considerado essencial por 52,4% das pessoas; 46,5% apontam a garantia de mais recursos para ciência e pesquisa e mais de 38% defendem o aumento da produção de vacinas com tecnologia nacional.    

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A pesquisa apurou que, em relação à preferência eleitoral, os eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro tomaram 58 milhões de doses a menos de vacinas contra a covid-19 do que os do atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva. Considerando o sistema vacinal completo, os que votaram em Lula receberam 38% a mais de doses dos imunizantes contra a covid-19 do que os eleitores de Bolsonaro.    

Leia os principais pontos da conversa a seguir e ouça a entrevista no tocador de áudio abaixo do título desta matéria. 

Responsabilidades do governo  

"Situações como uma pandemia envolvem decisões de saúde pública, que devem ser coletivas e devem ser muito coordenadas. É um momento decisivo dos mais críticos da atuação da política pública na área de saúde, porque não são escolhas individuais. É preciso coordenar uma série de campanhas de abastecimento, de mobilização em todos os níveis federativos, ninguém pode ficar para trás, ninguém pode furar fila.  

É um momento em que vemos mais plenamente a importância da saúde universal e, felizmente, nós temos o SUS. Os Estados Unidos (que não têm saúde pública) tiveram uma situação ainda mais trágica, apesar de ser um país muito mais rico que o Brasil e mesmo quando nós estávamos governados por um governo criminoso. Eu prefiro não chamar de negacionista, porque eles tinham intenções claras. Estavam amparados por uma série de médicos que se dispuseram a dar supostos argumentos para as decisões que foram tomadas pelo governo.   

Acho que estamos em um momento favorável agora, com a reabertura dos inquéritos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O procurador-geral da República – que espero que vá embora logo – foi, em grande parte, responsável por dar a permanente sensação de impunidade e sinal verde ao governo Bolsonaro, ao sentar em cima de todos os processos, não só os que a gente conhece de corrupção e golpismo, mas também os processos que mostram a conduta errática e criminosa do governo na pandemia.  

Esses processos tinham sido encerrados, anulados, não tinham sido oferecidas as denúncias. É obrigação do procurador defender a sociedade diante dos crimes de estado. No Brasil parece que está virando recorrente que o procurador defenda o estado contra a sociedade, o que é uma inversão completa de papéis.  

Em julho, foi reaberto o inquérito por ordem do STF e fizemos a pesquisa nesse mesmo momento. Percebemos que havia uma opinião pública muito favorável ao processo de julgamento, responsabilização dos responsáveis e indenização dos familiares das vítimas ou das vítimas que estão com fortes sequelas.   

Também indenização aos que, heroicamente, atuaram profissionalmente na linha de frente no combate à pandemia, que se expuseram e não contaram com os equipamentos devidos nos momentos corretos e que tiveram ainda uma exposição adicional ao risco.  

Os dados que temos para trazer é de que 62% da população considera que houve uma conduta criminosa do governo Bolsonaro e que ela implicou em um aumento das chamadas mortes evitáveis, calculadas em valores entre 120 mil e 300 mil.   

São dados não atualizados para 2023, e que precisam ser atualizados. Provavelmente vão expressar números muito gritantes devido ao atraso na compra de vacinas, falta de financiamento do SUS, falta de campanhas de comunicação, falta de apoio ao uso da máscara, incentivo à aglomeração e a própria conduta, que era uma espécie de propaganda da morte.   

Era uma necro propaganda que Bolsonaro e seus apoiadores faziam permanentemente, de exposição ao risco. Enquanto nos quartéis estavam todos seguindo fielmente os protocolos, se protegendo usando álcool gel, usando máscara, fazendo distanciamento, fazendo rodízio de ações e tomando as vacinas na hora certa, a população civil foi exposta, inclusive por militares, a uma série de riscos, que precisam ser julgados agora.  

Quando falo que 62% acham que o governo Bolsonaro ampliou o número de mortes, não quer dizer que os outros 38% acham que não. Há uma porcentagem grande de indecisos e só 26% acham que a conduta do governo é indiferente e que as mortes iriam acontecer de qualquer jeito." 

Trauma de guerra  

"Nós tivemos mortes em todas as famílias, posições políticas e classes sociais. Certamente temos populações que foram mais expostas e mais vulneráveis, mas é um impacto de guerra, um trauma de guerra. São quase 800 mil mortos, o que implica em cerca de 13 milhões em luto direto. Nossa pesquisa indicou que 50% da população brasileira teve um familiar ou amigo falecido por covid-19.

É importante ver que essa é a adesão da população para que os julgamentos aconteçam logo e que a verdade seja esclarecida. Existem diversos crimes imputados ao governo Bolsonaro – ele, pessoalmente, cometeu alguns de grande gravidade com as tentativas de golpes de Estado – mas o crime mais hediondo é o crime contra a humanidade na condução da pandemia. É um crime que não podemos varrer para debaixo do tapete. É a maior tragédia da saúde pública da história brasileira, conduzida por um governo completamente delirante e criminoso.  

Começaram com o discurso da imunização ou imunidade de rebanho por alto contágio, deixar o vírus contaminar todo mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) fez uma reunião específica para responder ao governo brasileiro e dizer que isso é um crime contra a humanidade. A imunização tem que acontecer de forma controlada por vacinas, dada a gravidade do vírus.   

Com hospitais lotados, UTIs lotadas, classe médica esgotada, todas as tragédias que não precisam ser enumeradas novamente, vários grupos de pesquisa mostram que havia uma decisão deliberada de condução do direito de quem vive e de quem morre. Foi uma condução deliberada de um vírus que, diferentemente de outros vírus, matava idosos, pessoas vulneráveis com comorbidades, pessoas que não tinham condições de se resguardar, que tinham que trabalhar de qualquer jeito, que não tinham condições sanitárias nas suas casas.   

Estamos falando de pessoas pobres, doentes, as populações mais vulneráveis ao vírus. A suposta imunização de rebanho é um crime comparável cientificamente ao da eugenia. Não é à toa que Bolsonaro e seus apoiadores várias vezes bateram no peito, dizendo que eram fortes, jovens, que iam resistir ao vírus, que o vírus era brincadeirinha, que era mimimi, que era gripezinha. Sabendo que uma série de pessoas, em condições de vulnerabilidade, estavam altamente expostas e foram as vítimas preferenciais." 

Vacina e negacionismo  

"O Brasil sempre foi exemplo mundial de sucesso em vacinação, com taxas em geral acima de 80% da população. A população brasileira sempre aceitou as vacinas e o SUS foi muito eficiente nesse ponto. Para algumas vacinas o Brasil tem autonomia.  Mas estamos perdendo progressivamente a autonomia. A corrida da vacina que aconteceu com a pandemia mostrou que o Brasil está muito atrás. 

Tivemos uma destruição do parque científico Brasil após o golpe contra Dilma Rousseff (PT) e a emenda do teto dos gastos. Nossos laboratórios estão em petição de miséria. Nossas fábricas de vacina públicas, como Butantã e a Fiocruz, não estavam preparadas, não tinham recebido o financiamento suficiente para fazer a parte de pesquisa de princípio ativo.  

Mas conseguimos atuar em colaborações internacionais nas redes de pesquisa clínica, montamos linhas de produção aqui, recebendo o princípio ativo importado. Conseguimos atuar, mas poderíamos ter muito mais autonomia e soberania.   

Viemos de um patamar muito favorável de vacinação. Não temos histórico de movimentos negacionistas  e antivacinas no Brasil A taxa de ingresso na vacinação  da covid-19 na primeira dose e mesmo na dose de reforço foi muito bem sucedida. Tivemos 90% de adesão na primeira dose e um pouco mais de 80% de adesão na segunda dose, mas depois disso foi caindo.  

As pessoas achavam que já estavam protegidas suficientemente com duas vacinas, quando o recomendado era continuar. Começamos a estudar quais eram os perfis que estavam deixando de se vacinar e por quais motivos. Percebemos que, do ponto de vista de renda, escolaridade e idade era mais ou menos uma curva similar. Havia um pouco de descompasso em que a instrução fundamental tinha menos adesão do que quem tinha nível superior, mas em renda estava mais ou menos igual.  

Quando começamos a olhar outros marcadores sociais, ficou muito claro que havia uma politização da vacina. Na comparação entre eleitores de Lula e de Bolsonaro os números eram gritantes. Havia na esquerda e nos eleitores de Lula uma continuidade de alta taxa de vacinação. Nesses casos, as justificativas por, eventualmente, não ter tomado a quarta ou a quinta dose eram esquecimento, falta de programação, filas no posto e falta de informação. Era realmente um problema de se auto-organizar ou alguma falha do sistema de prover vacina em determinados lugares.  

Em compensação, eleitores de Bolsonaro, autodeclarados de direita e evangélicos, tiveram uma queda vertiginosa na vacinação a partir da terceira dose. Foi um momento de aumento da polarização política, em que havia narrativas entre os bolsonaristas de que a vacina era perigosa, a ciência era uma coisa ligada à indústria farmacêutica e que o bolsonarista deveria parar de se vacinar e parar de acreditar no que estava vindo da OMS.   

Todas aquelas fabulações amalucadas e criminosas foram surgindo e pegaram muita gente. Em ano eleitoral, as pessoas estavam mais atentas ao discurso que conduzia o seu voto. A queda na vacinação foi realmente notável, então, o corte político é decisivo para entender a conduta sobre vacina. Os eleitores de Bolsonaro diziam que não tomaram vacina porque a vacina não era confiável, porque a vacina era experimental, porque virariam jacaré ou teriam um chip.   

Temos hoje um problema grave para a vacinação pública brasileira. As taxas de adesão caíram e caíram por esse efeito rebote do ataque à vacina da covid-19 junto com a consideração de que vacina é uma escolha pessoal. Hoje, o Brasil, infelizmente, não é um exemplo de sucesso de vacinação, como foi no passado. Nossa situação não é a mais trágica, mas temos que recuperar de novo a adesão de parte da população."  

Janela de Oportunidade  

"Apesar desse comportamento especificamente em relação à vacina contra a covid-19, seguimos com grande apoio da população às campanhas de vacinação, ao SUS, à ciência, às universidades e a produção de vacinas públicas no Brasil. É interessante notar que, por exemplo, a principal ação colocada pelos entrevistados é ampliar o investimento no SUS. Isso é apoiado por 60% dos eleitores de Lula e por 50% dos eleitores de Bolsonaro. Não está tão atrás assim. No caso, por exemplo, do investimento em ciência, 53% dos eleitores de Lula colocam como prioridade e de Bolsonaro são 45%.

Podemos ver que, no que diz respeito a como atuar daqui para frente, estamos muito próximos de ter posições conversáveis entre espectros políticos diferentes. Temos as condições para que o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência e da Tecnologia façam grandes ações e investimentos nesse momento, porque há apoio social para isso.   

Outro consenso que percebemos é ampliar as campanhas de comunicação, trazendo informação confiável, que foi o que faltou durante o governo Bolsonaro. Aí também temos apoio dos bolsonaristas, querem também informação confiável. Porque não é questão de narrativa, identitarismo ou religião, é uma questão de sobrevivência. Em ambos os lados começa a cair a ficha de que não topam a necropolítica e de que não querem mais ir para a beira do precipício, como fomos levados.  

Nos surpreendemos porque, ao comparar religiões, os evangélicos defendem mais a Comissão da Verdade do que os católicos. Esse desejo de saber a verdade move muita gente de espectros políticos diversos. Essa verdade tem que ser construída baseada em evidências, e demonstrações claras do que de fato aconteceu.  

Um último consenso que eu quero destacar é melhorar a formação dos profissionais de saúde. Uma parte dos profissionais de saúde não estava preparada. Outra parte atuou de forma criminosa por ideologia política. O nosso Conselho Federal de Medicina atuou de forma omissa, confusa e até apoiando a autoridade médica para prescrever o que bem entender, mesmo que não haja consenso científico.   

A nossa pesquisa mostra que 52% das pessoas que foram ao médico procurando auxílio médico para covid-19 a receita com cloroquina e outros medicamentos ineficazes. E isso foi amparado pelo Conselho. Entrar em um processo de justiça, memória e reparação vai ajudar também a melhorar os profissionais da saúde. Temos que ajudar a humanizar a medicina." 

Edição: Thalita Pires