Coluna

Hitler, Israel e os sub-humanos

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População procura por sobreviventes e corpos de vítimas nos escombros de um bombardeio israelense em Rafah, no sul da Faixa de Gaza - Mohammed Abed / AFP
Os sub-humanos têm o direito inviolável à aniquilação

Negar a condição humana ao outro é o primeiro passo para o assassinato.

Se o próximo não goza da mesma condição do que eu, habitando o lado externo da humanidade comum, humano não é e, portanto, matá-lo não me faz mau

Negar a condição humana permite que o martírio alheio não seja um crime.

Matar o sub-humano não fere meu coração nem suja as minhas mãos.

Mas como nasce o sub-humano?

Nasce sempre da mesma forma: pela palavra. Não qualquer palavra de qualquer um mas a palavra de quem detém o poder.

Nasceu assim em Israel.

Nasceu assim nos Estados Unidos da América.

Nasceu assim na Alemanha.

Nasce e renasce todo o tempo em muitos lugares.

Nasceu quando o ministro israelense da Defesa, Yoav Gallant, declarou estar "lutando contra animais". Não lutava contra o Hamas mas contra os dois milhões de animais cercados em Gaza sem energia elétrica, sem comida, sem água, sem remédios, sem abrigo, sem piedade.

Nasceu de novo quando outro parceiro de Bibi Netanyahu, seu ministro Amichai Eliyahu, sugeriu largar uma bomba atômica nos palestinos.

Nascera antes pela palavra da ex-ministra Galit Distel-Atbaryan, que propôs eliminar "os monstros" também com a bomba para "varrer a Faixa de Gaza da face da Terra".

Nasceu, mais uma vez, pelo verbo da deputada Talli Gotliv. Ela suplicou por um ataque nuclear em nome do dever sagrado de Israel "pisotear e eliminar Gaza" e dar-lhe "o beijo do dia final".

Os sub-humanos têm, assim, o direito inviolável à aniquilação. Pela sede, pela fome, pela doença, pelo abandono, pelas balas e pelas bombas. E pelo holocausto nuclear.

Mas de onde vem o termo "sub-humanos"? 

Como foi forjada essa tese que nos acalma, redime e até exalta ao chacinar aquele que, por tudo que cremos, frequenta um estágio pré-humano? 

É uma longa e difícil jornada. Mas existe um momento devidamente documentado do século que passou em que o sub-humano virou premissa, verbo e livro.

Não aconteceu na Europa dos anos 1930, como se pensa, mas na América de 1920.

Naquele ano, Theodore Lothrop Stoddard (1883-1950) lançou The Rising Tide of Color Against White World-Supremacy nos Estados Unidos. Nele, advertia para a onda crescente de forasteiros mais escuros contra a supremacia branca. Pensador, historiador, jornalista, era integrante da Ku Klux Klan, bem como membro da Sociedade Americana de Eugenia.

Dois anos depois, Stoddard surgiu com outro outro best-seller: The Revolt Against Civilization: The Menace of the Underman. É o advento, com certidão de batismo, do sub-homem.

Alfred Rosenberg, teórico da superioridade da raça ariana, encantou-se com Stoddard e seu Underman. De pronto, o termo Untermensch encaixou-se à perfeição na concepção nazista de raça. 

Chefe de Rosenberg, Adolf Hitler, já admirava a nação norte-americana, considerando-a um modelo de estado racial através da solução dada aos negros. 

O Führer ainda confessava seu fascínio com o tratamento dispensado às tribos indígenas pela cavalaria no século 19.

Achava que seu faroeste seria o Leste Europeu e os eslavos os seus índios como, de fato, acabariam sendo a partir de 1939.

Rosenberg providenciou a tradução de Stoddard para o alemão que apareceu nas livrarias em 1925 como Der Kulturumsturz: Die Drohung des Untermenschen, algo como A Convulsão Cultural: a Ameaça do Sub-humano.

Stoddard, que viajou a Berlim e se encontrou com Heinrich Himmler, ministro do interior, e Hitler, abominava a imigração  de muçulmanos, judeus, italianos, gregos e asiáticos para os EUA, clamando ante as "ignorantes e brutais massas orientais". Quanto aos negros, seriam eternamente "selvagens". Todos sub-humanos.

Hitler sabia o que fazer com a sub-humanidade na qual enclausurou judeus, eslavos, ciganos, portadores de deficiência, doentes mentais, negros, homossexuais, alcoolistas, epilépticos, testemunhas de Jeová. 

Porém, antes de trucidá-los era preciso identificá-los corretamente. Embutí-los em um degrau abaixo da pessoa. Afirmar seu não-pertencimento, sua exclusão da irmandade dos homens. 

Aconteceu assim com os judeus. Nos filmes de propaganda do 3º Reich, revelou-se que eram similares a "vermes" e "ratos". 

Então, foram exterminados. 

Mas somente após serem definidos como "animais".

*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e "O Pais da Suruba" (Libretos, 2017). Leia outras colunas.

** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires