60 ANOS DO GOLPE

Marcelo Rubens Paiva conta a morte do pai nas mãos dos torturadores do Regime Militar

'Morreu repetindo o seu nome. Meu nome é Rubens Paiva', imagina o escritor em obra que também narra morte da mãe senil

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
O ex-deputado Rubens Paiva entre sua mulher, Eunice (à esq.), a sua mãe e os cinco filhos - Reprodução/Memorial da Democracia

‘Eu vou morrer, sinto
que vou, espero
que me perdoem’

Rubens Paiva lia os jornais do dia 20 de janeiro de 1971 em um dos cômodos da sua casa na Rua Delfim Moreira, de frente para o mar, no Leblon, Rio de Janeiro. Estava acompanhado da sua mulher, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, mais conhecida por Eunice Paiva. Os dois tinham 41 anos e cinco filhos — quatro meninas e um menino. Já tinham passeado pela praia com alguns amigos, aproveitando o calor e o sol daquela manhã, feriado de São Sebastião. As crianças brincavam ou dormiam. Era cedo.

De repente, seis agentes batem na porta, pedem identificação. Depois de algumas palavras levam Rubens para prestar esclarecimentos sobre esquerdistas, comunistas, endereços de esconderijos, aparelhos, estas coisas que assustam militares fascistas. Ele era deputado pelo PTB, cassado pelos militares. A revolução chegava na família pela segunda vez depois do golpe de quase sete anos antes, em 31 de março de 1964. Os tempos eram de escuridão absoluta. Perseguição, tortura, horror.

No dia seguinte, de 21 para 22 de janeiro, os esclarecimentos pedidos pelos militares foram retribuídos com a mais estúpida violência e todos os tipos conhecidos e inimagináveis de torturas. Rubens Paiva estava morto. A família não ficou sabendo de nada. Tinha sumido, resgatado por um comando de comunistas.

O seu corpo foi enterrado e desenterrado diversas vezes por agentes da repressão até ter seus restos jogados ao mar, na costa da cidade do Rio de Janeiro, em 1973, dois anos após sua morte. A família, porém, continuava na esperança de revê-lo, mesmo vivendo o pavor da ditadura. Pura ilusão. Sua morte só foi confirmada 25 anos depois com o atestado de óbito recebido da Justiça. Tudo foi possível com os depoimentos de ex-militares envolvidos no caso.

Engenheiro de boa situação financeira, o seu desaparecimento deixou a família na rua da amargura. Emocionalmente. Economicamente. Aí emergiu Eunice Paiva, a mulher, a mãe, a guerreira. Chorava escondida, longe dos filhos. De dona de casa passou para o campo de batalha. Em nenhum momento abandonou a filharada. Encaminhou todos para a vida, ao mesmo tempo em que lutava para reconstruir aquilo que estava arrasado pelo regime impiedoso.


“Ainda estou aqui”, do filho escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva / Foto: Divulgação

A história de Rubens Paiva, o pai amoroso, carinhoso, é contada em todos os momentos dos seus 41 anos no livro Ainda estou aqui, do filho escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva. É uma obra insuperável em emoções, linguagem, paixão. Um retrato fiel, pesquisado, cheio de detalhes de momentos cruciais da família Paiva e do Brasil, que está lembrando este mês os 60 anos do golpe militar de 64, o golpe que tirou o país do prumo e do rumo da justiça social. No texto do livro, o filho reflete sobre o que deve ter passado pela cabeça do pai nos momentos de tortura e morte.

‘Agora não dá para fugir da morte’

Quem tem um filho faz de tudo para preservar, para dar suporte e acompanhar o crescimento daquele que mais ama. O que eu fiz? Por quê? Onde você estava com a cabeça? Agora não dá para voltar atrás. Agora não dá para fazer nada. Agora não dá para evitar a dor. Agora não dá para salvar a minha família. Agora não dá para fugir da morte. Eu vou morrer, sinto que vou, espero que me perdoem. O que fiz prova minha vulnerabilidade, falhas do meu caráter, que pôs tudo a perder e causa muito sofrimento. Não tenho palavras. Eunice, Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacareco, Babiu... Perdão. Não verei mais vocês crescerem, não estarei mais ao lado de vocês, não consigo mais proteger vocês, não consigo mais proteger vocês, não vou mais brincar com vocês, escutar suas risadas, correr atrás, nadar, não acompanharei vocês na escola, nossa casa maluca não sairá do papel, não saberei que faculdade farão, que diploma pegarão, não acompanharei vocês na vida profissional, não conhecerei seus filhos, meus netos, não verei meus netos crescerem, não estarei ao lado deles, não os protegerei, não vou brincar com eles, escutar as suas risadinhas, correr atrás, nadar, não acompanharei eles na escola, e como é triste saber que tudo isso acaba, que meu momento com vocês foi tão curto, que não pude aproveitar mais, e me arrependo, me arrependo de não ter passado mais tempo com vocês, que pena que estou indo embora, que triste que não posso ficar, não me deixam ficar, é inevitável que eu vá, eu não queria, eu não queria, estou tão triste. Tenho que morrer agora.

Morreu repetindo o seu nome. Meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva...

Dizem que foi torturado ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos, música que minha irmã Eliana se lembra de ter escutado enquanto estava lá:

Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo, eu estou aqui

Toda esta multidão

Tem no peito amor e procura a paz

E apesar de tudo

A esperança não se desfaz.

Meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva...

Jesus Cristo! Jesus Cristo!

Jesus Cristo, eu estou aqui

Olho no céu e vejo

Uma nuvem branca que vai passando

Olho na terra e vejo

Uma multidão que vai caminhando

Eunice Paiva, a morte nos 50 anos do AI-5

A mãe Eunice Paiva também foi presa pelos agentes militares que levaram Rubens Paiva no dia 20 de janeiro de 1971. Foi conduzida para um destes centros de interrogatórios do regime militar algumas horas depois, junto com a filha mais velha. Não sofreu torturas. Ficou quase duas semanas detida. Não sabia de nada. Nem as razões da sua prisão. Saiu dali, manteve com valentia, coragem e amor o papel de mãe. Lutou como uma leoa pela sua prole, fez de tudo para manter a harmonia, acompanhou os estudos. Dinheiro? Sim, era um grande problema. Ninguém liberava os bens da família já que desaparecimento não é morte. Marido morto, mas considerado sumido. Se virou como pôde, trocou de cidade, correu atrás da vida. Até estudou. Formou-se em Direito e virou advogada de grupos indígenas, presos políticos, fazia, enfim, na advocacia, tudo que podia para garantir a barra da família.

Expansiva, era querida por onde andava. Ganhou admiração e apreço. Guerreira incontrolável da memória, verdade e justiça até que a demência e o Alzheimer começaram a vencê-la. No livro Ainda estou aqui, do seu filho Marcelo, a narrativa sobre a doença e os efeitos dela sobre a vida da sua mãe é impressionante, dolorida. Passo a passo, um festival de dores, preocupações, sofrimentos.

A Constituição de 1988 foi uma homenagem a ela, segundo o discurso de promulgação do presidente da Câmara, Ulysses Guimarães. Marcelo, hoje com 65 anos e tetraplégico desde os 20 quando bateu com a cabeça depois de saltar de uma pedra numa lagoa em Campinas, foi curador de sua mãe até o fim de 2005 a 2018. Ela morreu em 2018 aos 86 anos, no mesmo dia dos 50 anos do Ato Institucional número 5, aquele mesmo que destroçou e tirou as liberdades de todos os brasileiros e que levou o seu marido à morte. Marcelo, entre tantos textos chocantes sobre a doença da mãe, escreveu assim sobre a doença que atingiu a família toda:

Não é possível, minha mãe tem uma demência? Depois de tudo que passou? Justamente agora, quando ia curtir a velhice com dignidade, independência, conforto, situação financeira estável, na cidade (Rio) mais linda do mundo? Como Deus pode ser tão imprudente e imputar tanto sofrimento a uma pessoa só? Essa doença não era para acontecer, não tinha que acontecer, não nela! Por que provação mais a minha família devia passar? Por que nos testaram até o limite? Chega! Queríamos um descanso.

Não teríamos.


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko