Rio Grande do Sul

MEIO AMBIENTE

Audiência sobre alterações no Código Ambiental do RS pede fim do regime de urgência

Entidades criticam a proposta do governador Eduardo Leite que altera 480 pontos do Código Estadual do Meio Ambiente

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Teatro Dante Barone sediou audiência pública nesta segunda-feira (21)
Teatro Dante Barone sediou audiência pública nesta segunda-feira (21) - Foto: Leandro Molina

Entidades na defesa do meio ambiente, simpatizantes da causa, representantes do judiciário e Ministério Público do RS, e até mesmo alguns parlamentares, em audiência realizada nessa segunda-feira (21) para debater o Projeto de Lei 431/2019, pediram a retirada do regime de urgência do projeto que prevê 480 alterações no atual código ambiental gaúcho. Houve criticas à falta de diálogo do governo estadual com a sociedade durante sua elaboração, apontando que a celeridade da tramitação não dá tempo hábil para uma discussão mais aprimorada.

Alegando modernização e desburocratização, o poder Executivo do Estado do RS encaminhou, no último dia 27 de setembro, em caráter de urgência, o pedido de reformulação da legislação ambiental vigente, a Lei nº 11.520, de 3 de agosto de 2000. Caso não seja retirado o pedido de urgência, a expectativa é que o projeto seja votado até o dia 29 de outubro. A partir de 5 de novembro, ele passa a trancar a pauta de votações da Assembleia Legislativa.

Proposta pelos deputados estaduais Frederico Antunes (PP) - líder do governo Leite na Assembleia - , Elton Weber (PSB) e Gabriel Souza (MDB), a audiência foi realizada no Teatro Dante Barone, em conjunto com as comissões de Constituição e Justiça; Agricultura, Pecuária e Cooperativismo; e de Saúde e Meio Ambiente. Além de parlamentares e ambientalista, o encontro reuniu empresários e teve a participação do secretário do Meio Ambiente e Infraestrutura (SEMA), Artur Lemos.

Secretário Lemos, líder do governo na ALRS, apresentou o projeto | Foto: Celso Bender | Agência ALRS

Com 20 minutos para apresentação do projeto, o secretário afirmou que o projeto visa o equilibro e que, no texto base, foram agregadas contribuições. De acordo com Lemos, o novo código é mais construtivo e orientativo do que punitivo, e tem como proposta ter regras claras, ser sustentável em si mesmo e seguro, mas não burocrático, trazendo instrumentos não previstos no passado. Alegou que o projeto não prejudica o meio ambiente, mas tem efeitos imediatos em algumas frentes, como novas formas de licenciamento. “Saímos do eixo do estado fiscalizador, que multa, para fomentar o desenvolvimento. A lei não é perfeita. Precisa estar sempre aberta para ser aperfeiçoada”.

Representado o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e a AJURIS - Escola Superior de Magistratura, a juíza Patricia Laydner mostrou preocupação com o regime de urgência. “Estamos tratando aqui de direito ambiental. Não estamos tratando aqui de uma lei de bens disponíveis, e sim de um bem indisponível e coletivo, e por isso temos que pensar na participação”, ressaltou ao complementar que essa participação não se dará em uma audiência pública com uma presença limitada de participantes.

Laydner: "a gente não entende porque este projeto tramita em regime de urgência" | Foto: Celso Bender | Agência ALRS  

Lembrou ainda que o direito ambiental proíbe retrocessos e que o atual código foi fruto de uma construção coletiva. De acordo com ela, se apresenta problemas e precisa ser revisado, precisa ser suficientemente debatido. “A lei federal não está tramitando em regime de urgência, então a gente não entende porque este projeto tramita em regime de urgência aqui no Estado. As sugestões estão vindo. O problema é que isso feito na pressa. Depois seremos nós, juízes, que teremos que julgar com base em uma colcha de retalhos”, assinalou.

Por sua vez, o representante do Ministério Público do RS (MP-RS), promotor Daniel Martini, disse que o MP não se coloca contra o desenvolvimento econômico do Estado ou contra uma nova legislação. No entanto, ela tem que ser ambientalmente segura pela amplitude das mudanças que são propostas. Lembrou que o Ministério requereu, desde que teve ciência do projeto, a retirada do pedido de urgência para oportunizar um debate aprofundado. Assim como fez Patricia, recordou o debate em âmbito nacional. “Uma normativa nova tramitando em regime de urgência pode conflitar com a legislação federal, que não tramita em regime de urgência”.

Para Martini, regime de urgência pode conflitar com a legislação federal | Foto: Celso Bender | Agência ALRS  

Martini informou que o MP-RS reuniu 13 promotores com atuação na área ambiental, mais o corpo técnico, e produziu documento com sugestões em 112 artigos do projeto. “Quando o estado desempenha o seu papel, o licenciamento é facilitado. Sugerimos incorporar o plano de emergência para episódios críticos para poluição do ar”. Em relação ao licenciamento, sugere que, quando necessitar de anuência de alguma unidade de conservação, que se mantenha a redação atual para que não haja aprovação tácita. Já sobre o autolicenciamento, MP pede que seja restringido apenas às atividades que não geram risco.

Posições de parlamentares e da sociedade civil

Manifestantes protestaram em defesa do meio ambiente | Foto: Leandro Molina 

Para o deputado Jeferson Fernandes (PT), incomoda a “grenalização” dos prós e contras, sem pensar muito no que o outro está falando. Ele ressaltou que não participou da subcomissão que tratou do tema e que o argumento do secretário Artur Lemos não pode ser utilizado para passar a ideia de que a Assembleia já discutiu e aprovou por antecipação. “Sou gaúcho, me orgulho do Estado e quero ver ele crescer. Votamos a favor do ICMS para que o Estado desenvolvesse, mas não veio um projeto para atrair investimentos. Então, com base em que diz que o código do meio ambiente está atravancando o desenvolvimento?”, questionou.

De acordo com ele, é preciso que se tenha uma proposta embasada em dados técnicos e não em um discurso ideológico. Frisou que um dos problemas gravíssimos no Estado é a quantidade enorme de câncer por excesso de veneno. “Eu quero ter a tranquilidade de votar um texto que efetivamente impulsione o desenvolvimento, mas que também projeta à vida”. Disse também que a demora no licenciamento muitas vezes é por falta de investimento em recursos humanos. Por fim, lembrou que a assembleia está por receber o “pacotão” nos próximos dias, com a proposta de reestruturação administrativa do Estado, e que provavelmente também será encaminhada com pedido de urgência.

Tiago Simon (MDB), presidente da Comissão de Economia, disse ao Brasil de Fato que a proposta de reformulação atende a alguns princípios importantes, visto que a maioria dos parlamentares defende o desenvolvimento econômico sustentável, que, na sua opinião, conjuga desenvolvimento empresarial com sustentabilidade ambiental. “Temos uma sensação muito forte de que o nosso Estado tem uma cultura preservacionista muito sólida, o que por um lado é muito bom, mas também reflete em procedimentos burocráticos que entravam muito o desenvolvimento, fazendo com que o RS tenha perdido muitos investimentos”, pontuou.

Contudo, diante da complexidade do tema, visto que são de mais de quatrocentos artigos, também defendeu a retirada do regime de urgência. “Temos a questão da Amazônia, do aquecimento global, como também o baixo impacto, a desburocratização do licenciamento, o autolicenciamento, a questão do bioma pampa e uma série de outras questões que têm que ser articuladas com uma inteligência ambiental. Essa conjugação requer uma harmonia, uma sintonia, muito fina, e não é em 30 dias que a gente vai fazer isso”, finalizou.

Já o deputado Elton Weber (PSB), ao ser questionado pelo Brasil de Fato sobre sua avaliação, disse ser favorável que haja uma adequação, uma revisão das regras, e que se tenha outras reuniões com oportunidade de debater. Sobre a urgência, disse que a audiência pública pode ter essa indicativa de retirada, assim como o próprio executivo, que colocou o regime de urgência e pode retirá-lo.

Indagado sobre possíveis impactos no meio ambiente, afirmou que a questão da preservação de águas e matas nativas têm que ser mantidas no código. Contudo, a seu ver, o que está exagerado hoje é burocracia. “Muitas vezes a pessoa com uma coisa simples torna-se um problema grande por questões de burocracia, de custos, de taxas que às vezes não são necessárias. A preservação ambiental é importante, agora a burocracia é desnecessária”, salientou.

Nilo Barbosa, representante dos empregados da Fundação Estadual de Proteção Ambiental - RS (FEPAM), que recentemente lançou uma nota técnica referendada pelos empregados da entidade, comentou ao Brasil de Fato que não há uma modernização ou alteração, e sim uma mutilação do atual Código Estadual. “Uma lei que tinha toda uma estrutura, uma essência de precaução e prevenção, que tinha uma continuidade, perde tudo isso com o atual projeto. Ele troca posições de modo que torna extremamente confusa toda a lei. O PL 431 veio para retirar toda precaução, restrições, procedimentos. Retira toda a proteção do meio ambiente, torna frágil qualquer tipo de ação, os licenciamentos feitos hoje vão ser prejudicados e os licenciamentos que serão feitos não serão de acordo com a necessidade ambiental”, apontou.

Alterações podem prejudicar inclusive gerações futuras, alerta bióloga | Foto: Leandro Molina  

O consultor e professor de Direito Ambiental, Beto Moesch, que coordenou os debates na Assembleia Legislativa durante os anos 1990 que deram origem ao Código Estadual do Meio Ambiente, disse que não houve um trabalho minucioso na atual proposta como o que feito na elaboração do código vigente. “Precisamos manter o caráter democrático da elaboração do código ambiental aqui RS, em que houve ampla participação da sociedade. Além disso fomos pegos de surpresa com relação ao projeto, ainda por cima enviado em regime de urgência, isso é um deboche para com a democracia e a sociedade gaúcha, e isso é inaceitável”, frisou. Ainda de acordo com ele, aquilo que se está reclamando, que é menos licenciamento e mais planejamento, estímulo e incentivo, é justamente o que já está no atual código, que não foi aplicado e que agora se quer alterar.

Conforme apontou a bióloga Lisiane Becker, do instituto Mira-Serra, e integrante do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA), quando se entra com uma resolução de alteração, é necessária uma justificativa técnica, o que não é observado em nenhum artigo que o governo propõe mudar. “Sem saber os argumentos, as justificativas técnico-legais, usando esse tipo de contorcionismo da técnica legislativa, e ainda em regime de urgência, perdemos toda a salvaguarda de proteção à nossa biodiversidade. Depois vamos ter esse problema com o clima, que já está se agravando, problemas com água, a própria modificação climática, que vão afetar a agricultura, investimento (questão do turismo) e perder polinizadores”, exemplificou ao Brasil de Fato.

De acordo com ela, é uma perda para o RS e interfere inclusive na proteção intergeracional. “Estamos tomando uma atitude que vai ser prejudicial às futuras gerações, não só à qualidade humana como à biodiversidade. Isso está acontecendo em todas as unidades federativas, uma redução das proteções legais sob argumentos ‘de melhoria’ para o crescimento e desenvolvimento, enquanto vamos ter justamente o contrário”, concluiu.

Veja aqui a audiência completa:

Edição: Marcelo Ferreira