Rio Grande do Sul

Santo

Comissão pró-canonização de Sepé Tiarajú inicia ações públicas

No aniversário de 264 anos da morte do líder guarani, comissão visitou locais de seu martírio

Brasil de Fato | São Gabriel (RS) |
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"A causa de Sepé ser aceita pelo Papa representa mais um momento de reencontro da igreja com suas matrizes populares", diz um dos membros da comissão - Marcos Corbari

Depois de um ano de ações de estudo e planejamento, em que as atividades ficaram mais restritas a seus membros, a comissão pró-canonização de Sepé Tiarajú inaugurou uma nova fase no processo que pretende fundamentar o reconhecimento do líder indígena assassinado quando defendia os Sete Povos das Missões, em 1756, como Santo pela Igreja Católica. 

A nova fase compreende atos abertos que buscam tanto publicizar o personagem histórico, quanto fundamentar sua profunda relação com a fé cristã. E as primeiras atividades tiveram caráter simbólico relevante, pois aconteceram no município de São Gabriel, onde estão localizados os locais onde Sepé foi martirizado e 1.500 de seus companheiros seriam massacrados três dias depois.

“Esse processo na verdade tem início desde o momento da morte de Sepé”, conta o padre Alex Kloppenburg, relembrando o caráter de “santo popular” que é evocado desde o momento do martírio do líder guarani. “O que estamos conduzindo hoje é um novo ciclo, muito anunciado e muito esperado, onde queremos alcançar o reconhecimento por parte da Igreja Católica”, explica o padre, que considera Sepé um modelo de líder, “alguém que lutou contra a opressão, a tirania e a demagogia de governantes que escolheram massacrar um povo em nome de seus interesses”. 

Aludindo ao território que hoje compreende o município de São Gabriel, padre Alex reflete a importância simbólica de realizar ali, “na terra onde Sepé derramou seu sangue, celebrar sua memória, relembrar a sua luta assim também relembrar a luta de todo o povo que segue acontecendo ainda hoje nas igrejas, nas comunidades, nas pastorais e nos movimentos sociais, sobretudo a partir da fé, acreditando na paz, no amor e na justiça”.

Para os integrantes da comissão pró-canonização de Sepé Tiarajú, a causa não se resume a edificar a imagem de um santo provável, mas também de reafirmar a certeza de uma utopia possível: “Acreditamos que é possível um mundo diferente, não podemos aceitar viver tanto ódio, com tanta intolerância, com tanta demagogia, com tanto desprezo à vida do ser humano”, afirma Padre Alex. 

Na sua opinião, “Sepé nos ensina que devemos dar a nossa vida pela paz, mesmo quando isso parece impossível, ensina que toda luta, toda causa, toda doação sempre traz resultados”. Conforme o religioso, a interpretação do grupo parte do princípio que há 264 anos o personagem histórico “foi morto, assassinado, martirizado”, mas que “a sua causa está muito viva em nossos dias”.

Durante a palestra realizada nas dependências do salão paroquial da igreja matriz de São Gabriel, a comissão apresentou o “santinho”, um pequeno prospecto impresso onde se apresenta uma imagem produzida por um artista popular em um dos lados e, no verso, a oração composta pelo bispo de Bagé, Dom Frei Leonir Dal Bosco. “Já temos uma imagem, uma oração para rezar pela causa, quem sabe ainda este ano vamos instalar na diocese o início da causa da beatificação”, acrescentou Padre Alex, demarcando o momento como “passo inicial de uma caminhada na qual todos e todas têm agora o dever de ajudar”.

Dom Frei Cleonir explicou que a autorização dada pela Congregação da Causa dos Santos para que se inicie o processo já coloca Sepé Tiarajú na condição de Servo de Deus, o que afirma sua fé cristã e seu exemplo como fato, sinaliza as virtudes de santidade, bem como a heroicidade da fé professada desde o batismo até o momento do martírio (quando levava consigo uma carta escrita pelos padres e uma oração a Nossa Senhora de Loreto e São José, santos de quem era devoto, bem como a São Miguel Arcanjo, padroeiro da Missão onde vivia e servia como alferes).

“No momento em que o bispo dá aprovação eclesiástica para que se produza a imagem e a oração, significa que o Servo de Deus pode ser evocado por todos os cristãos, que se pode anunciar sua oração, mesmo que ainda não seja reconhecido oficialmente como Santo”, justifica Padre Alex.

 “A nossa tarefa agora é atender a todas as exigências do processo e convencer a sagrada Congregação para a Causa dos Santos de que é justo que Sepé Tiarajú seja assim reconhecido pela igreja, como Santo, do modo como já é reconhecido pelo povo”, emenda Dom Frei Cleonir. Se o processo for efetivado com êxito, os passos seguintes – que serão dados “sem pressa”, conforme os membros da comissão – compreendem fases em que ele poderá ser reconhecido primeiro como venerável, depois como beato e finalmente como santo.

 


Marco construido na Coxilha de Caiboaté, em memória de Sepé e dos 1.500 guaranis chacinados pelo exército Luso-Espanhol / Corbari

História e contemporaneidade

O desfecho sangrento dessa etapa das chamadas Guerras Guaraníticas – onde os exércitos de Portugal e Espanha reuniram-se para expulsar os guaranis e os padres jesuítas do território que hoje compreende parte do Rio Grande do Sul (e ainda é conhecido pela alcunha de “Missões”) -, se deu depois do Tratado de Madrid, assinado pelos reis João V de Portugal e Fernando VI de Espanha, em 1750. Depois de mais de 6 anos de resistência da parte dos índios em deixar seus territórios – onde haviam desenvolvido em conjunto com os religiosos um modelo de sociedade fraterno e igualitário que chegou a ser chamado pelo filósofo iluminista Voltaire de “Triunfo da Humanidade” – se deu o desfecho trágico.

“Uma das matrizes do cristianismo na América latina é a matriz indígena, que antes mesmo da evangelização já praticava valores que entendemos como cristãos até hoje e, que podemos apontar mesmo superiores aos que se podiam notar na Europa”, afirma Frei Sérgio Görgen, frade franciscano que participa da comissão. Ele cita como exemplos a opção pela não-violência, os cuidados praticados com as crianças, viúvas e idosos, a partilha comum de tudo o que se produzia, o respeito com a natureza e a utilização racional dos recursos disponíveis, entre outros aspectos. “Para nós hoje está claro que a causa de Sepé ser aceita pelo Papa representa mais um momento de reencontro da igreja com suas matrizes populares, ecoando muitos outros exemplos de dedicação à causa dos mais simples que foram desenvolvidos por homens e mulheres ao longo da história”.

Görgen faz uma relação entre as virtudes do modelo de sociedade praticado nas Missões e os desafios contemporâneos a que estamos expostos em nosso cotidiano: “Não havia fome nas Missões, não haviam famintos assim como não haviam ricos, um não tinha o direito de explorar o outro”, explica o franciscano. “A fraternidade que fundamentou a sociedade dos guaranis perdurou por mais de 150 anos, servindo de exemplo para as gerações que vem depois e principalmente para nós em nossos dias”, acrescenta. E ressalta que justamente neste período o Papa, inspirado pelo exemplo de São Francisco, “nos desafia a reencontrar esse caminho, nos chama a criar condições para que o aspecto econômico esteja a serviço da coletividade e não apenas dos interesses de alguns, fundamentando uma economia para todas as pessoas e não uma economia para o lucro de uma minoria”.

“Fraternidade, esse é o grande sentido que aprendemos com os guaranis, sentido que norteou um modelo de sociedade que sobreviveu por mais de 150 anos e só foi desconstituído pela violência dos imperialistas á base de canhonaços”, finaliza frei Sérgio.

 


Celebração da Via Sacra Missioneira, no espaço onde ficava a Sanga da Bica, local da morte de Sepé / Corbari

Sepé, a igreja e o povo

Em seu pronunciamento público, Dom Frei Cleonir relembrou que “há 264 anos muitas vidas foram tiradas, vidas que pertencem a Deus, vidas cuja história nós devemos resgatar”. Para o bispo de Bagé, a causa de Sepé é uma causa justa, oportuniza resgatar o sentido e o valor da vida que em tantos momentos e em tantas situações atuais e históricas foram desprezadas. “A vida é um valor, é um dom, uma graça de Deus que não podemos comprar nem vender, resgatar a vida e a missão de Sepé é um dom precioso para nós cristãos, é a afirmação de que Deus está nos chamando neste tempo para valorizar a vida daqueles que são mais ameaçados”, refletiu o bispo, citando como exemplo dessa situação os povos originários, que em pleno ano 2020 seguem sendo desprezados, ameaçados e exterminados. “Estamos sendo chamados em mais um momento da história a nos posicionarmos como filhos amados de Deus, que amam, defendem e promovem a vida”, pontuou.

Também mereceu citação na fala de Dom Frei Cleonir o bispo emérito de Bagé, Dom Gílio, responsável pela primeira comunicação entre a diocese e o Vaticano, o qual recebeu incentivo pessoal do Papa Francisco e depois a comunicação oficial da Congregação da Causa dos Santos autorizando o início das atividades da comissão pró-canonização de Sepé. “Cheguei na diocese há pouco mais de um ano, o processo já havia sido encaminhado pelo Dom Gílio, já tínhamos então a autorização para dar continuidade neste projeto que representa um momento muito especial para todos nós, direcionando um olhar voltado para a história ao mesmo tempo em que afirmamos a posição no momento presente”.

A evocação de Sepé como Santo Popular vem desde o momento de sua morte, quando foi golpeado pelas costas por um soldado-mercenário português e depois alvejado no peito por um tiro à queima-roupa desferido pelo comandante espanhol Joaquim Viana. O saudoso bispo Dom Tomás Balduíno, no texto Via Sacra Missioneira, elaborado para a primeira edição da Romaria da Terra, realizada em 1978, assim narrou os momentos que se seguiram à morte do líder guarani:

“Os soldados invasores atiraram o corpo de Sepé no mato que margeia o rio. Retiraram antes, de cima dele, duas cartas amarelecidas pelo uso. Eram cartas de estímulo à luta, que seus irmãos índios lhe haviam mandado. Falavam-lhe das orações que todos faziam por ele e por todos, principalmente as crianças inocentes. À noite do dia 7 de fevereiro (dia em que Sepé foi assassinado), voltaram os índios que o haviam acompanhado para dar sepultura ao cadáver. Cavaram junto ao rio uma sepultura e o enterraram com a dor correspondente ao amor que lhe devotavam, celebrando suas exéquias com hinos e cânticos da igreja, embora sem assistência de sacerdotes. Invocaram-no imediatamente como santo protetor que está junto de Deus. Ao rio próximo deram o nome de Rio São Sepé. Desde aquela cerimônia, os guaranis ficaram convencidos que Sepé ressuscita sempre de novo nas lutas do povo.

 


Dom Frei Cleonir com a cruz missioneira, durante atividade pública da comissão, em são Gabriel (RS) / Corbari

Memória dos massacrados

Dom Tomás Balduíno relata também na Via Sacra Missioneira o que se procedeu imediatamente após o massacre de Caiboaté: Depois do dia 10, os índios que chegam, vendo o campo semeado de seus parentes mortos, prorromperam em choro e gemidos. Dom Miguel Maira, substituto de Sepé na chefia do povo de São Miguel, faz erguer sobre o campo, a 4 de março, uma grande cruz que os índios haviam feito. Nela se lia esta inscrição: “Ano de 1756. A 7 de fevereiro morreu o corregedor José Tiaraju em uma batalha que houve em dia de sábado. A 10 do mesmo, em uma terça, houve uma grande batalha em que morreram, neste lugar, 1500 índios, pertencentes aos nove povos do Uruguai. A 4 de março mandou D.Mayra fazer essa cruz pelos soldados índios”.

Atualmente há, em São Gabriel, um monumento em madeira e uma velha estátua demarcando o local do martírio de Sepé, dentro da cidade, onde cruzaria a Sanga da Bica. Já no interior, cerca de 20 km estrada a fora, repousam dois monumentos em pedra e concreto, erigidos em memória de Sepé e dos 1.500 guaranis chacinados pelos imperiais luso-espanhóis, onde se preservam as placas com as inscrições de Dom Mayra e dos que vieram depois e servem de fonte de informação para quem passa pelos locais.

Edição: Katia Marko