Rio Grande do Sul

Memória

O homem e o sopapo: Giba Giba, expoente da cultura afro-gaúcha

Compositor, percussionista e agitador cultural, o pelotense nascido em 1940 foi o guardião do sopapo

Nonada | Porto Alegre |
Nas décadas de 1960 e 1970, enquanto mantinha um emprego no Hospital Pronto Socorro, Giba passou a ser reconhecido no meio artístico, fazendo shows nos bares da capital. - Diego Coiro/Divulgação

Gilberto Amaro do Nascimento era um menino de 12 anos quando Boto, um babalorixá pelotense, colocou sua mão sobre um tambor de 1 metro de altura, de timbre grave e intensa vibração, encontrado apenas no sul do Brasil: “Você vai ser o cara deste instrumento aqui”, disse. Era início da década de 1950, e o tambor de dimensão imponente, chamado sopapo, se destacava no efervescente Carnaval de Pelotas, àquela altura reconhecido nacionalmente também pelo conjunto de sopros e pela qualidade. Cinquenta anos mais tarde, Giba Giba, como prenunciou Boto, seria o músico responsável por manter acesa a chama do único tambor genuinamente gaúcho.

Compositor, percussionista e agitador cultural, o pelotense nascido em 1940 foi o guardião do sopapo e apresentou o instrumento criado pelos negros escravizados à música popular contemporânea feita no Rio Grande do Sul. Fundador da primeira escola de samba de Porto Alegre, a Praiana, Giba tinha a brasilidade na alma, e foi um dos músicos precursores no estado a integrar a cultura afro-brasileira ao cancioneiro gaúcho. O músico pelotense construiu sua carreira em Porto Alegre, sempre com o sopapo como elemento central de suas composições.

“O Giba hoje é mais reconhecido que na época em que era vivo, porque o legado dele vem passando por muita gente, o sopapo hoje está mais popularizado. Na época do Giba, só ele tocava sopapo, um instrumento que é o símbolo dele e é o símbolo da negritude afro-gaúcha”, explica o jornalista e crítico musical Juarez Fonseca.

Com o álbum Outro Um, venceu o Prêmio Açorianos de Música nas categorias Melhor Disco e Melhor Compositor em 1993. O músico ainda colecionou honrarias como a Medalha da Cidade de Porto Alegre e o Prêmio Quilombo dos Palmares (2003) e teve composições regravadas por músicos como Vitor Ramil e Kleiton e Kledir. Entre suas canções mais conhecidas, estão Lugarejo, Feitoria e Tassy, música em tupi-guarani.

“Giba conquistava gentilmente e com enorme simpatia a todos que cruzassem seu caminho. Não teve o reconhecimento merecido no país, mas certamente deixou marcas profundas na cultura do sul. Chamava atenção, pelo carisma de verdadeira majestade, representante de sua cultura, de ilustres percussionistas e da crítica especializada”, relembra com carinho o amigo Kleiton Ramil.

Seu caráter agregador e proativo o fez idealizar e executar no ano 2000 um projeto grandioso: o festival Cabobu, que reuniu grupos de música e dança populares da região e alguns dos principais nomes da percussão nacional, como Naná Vasconcelos e Djalma Correa. O Cabobu mostrou para a sociedade gaúcha que existe uma cultura negra rica e plural no estado, e o sopapo foi o centro dessa iniciativa.

As composições de Giba e sua atuação no meio artístico do estado, sempre destacando o protagonismo do negro na arte em seus projetos culturais, espetáculos e entrevistas, fizeram também com que o pelotense se tornasse uma referência para muitos artistas contemporâneos. “Ele é um dos pilares da cultura no Rio Grande do Sul. Teve uma vida dedicada à música, atuou como militante do movimento negro, à sua maneira, e foi incansável na luta para o reconhecimento da contribuição afro para a cultura rio-grandense”, diz Vladimir Rodrigues, um dos idealizadores do sarau de poesia Sopapo Poético, nomeado em homenagem ao grande tambor.

O grande tambor reverbera em Porto Alegre


Band tropicalista Uma Mordida na Flor / Renato Rosa/arquivo pessoa

Filho de Ogum, o orixá que abre caminhos, Giba construiu pontes e desbravou trilhas para a cultura popular gaúcha durante toda a sua carreira. Em meados da década de 1950, se mudou com a família para a Porto Alegre. Levou consigo um tambor de sopapo, que o acompanhou quando o músico fundou, em 1960, a Academia de Samba Praiana, primeira escola de samba de Porto Alegre, que trouxe para a grandiosidade dos desfiles de Pelotas.

Nas décadas de 1960 e 1970, enquanto mantinha um emprego no Hospital Pronto Socorro, Giba passou a ser reconhecido no meio artístico, fazendo shows nos bares da capital. “O Giba tocava num bar chamado Varanda e começou a se destacar, porque era um sujeito super articulado, simpático, uma figura que se impunha. Eu fiquei mais próximo dele quando fez parte de um grupo chamado Canta Povo, por volta de 1968”, relembra Juarez Fonseca. Após a dissolução do grupo, o percussionista integrou a banda tropicalista Uma Mordida na Flor, sempre com seu sopapo.

Foi com a parceria da antropóloga Maria Betania Ferreira, com quem era casado, que Giba passou a compor e deu início a sua carreira solo. “Comecei a registrar por escrito coisas que ele dizia em momentos de inspiração e a mostrar o registro para ele. Foi como dar uma chave-mestra. Ele não parou mais de abrir caminhos para textos e melodias. Todos os assuntos abriam portas”, observa. O casal compunha em dupla ou então em parceria com outros músicos como o Wanderlei Falkenberg, Toneco e Pery Souza, com o sopapo como pedra das composições.

Desse fluir criativo, surgiram dezenas de músicas que abordavam temas como os bairros de Porto Alegre (“Teresópolis”), a história e a cultura negra (“Feitoria”, “Areal da Baronesa”) e até a cultura indígena no estado, em uma canção gravada em tupi-guarani (“Tassy”), e regravada pela dupla Kleiton e Kledir. “[Quando Giba mostrou a música], fiquei deslumbrado e totalmente hipnotizado, alheio tudo que se passava ao redor, diante de uma obra prima, do ritmo magnético, da letra em tupi-guarani em busca de uma cultura perdida. Conviver e trabalhar com o Giba era sempre uma fonte incomensurável de emoção e alegria musical”, descreve Kleiton.

Giba foi desde sempre um agitador cultural. Sua casa em Teresópolis era ponto de encontro de quem vinha a Porto Alegre fazer shows, como Beth Carvalho, Ney Lopes, Paulinho da Viola, e Fagner. Betania destaca um episódio especial que ilustra a excelência do músico no que fazia: “Quando Piazzola esteve em Porto Alegre com seu espetáculo no Leopoldina, todas as noites ele ia ao Bar Giba Giba, na Protásio, e se sentava na primeira mesa diante do palco onde o Giba tocava com a banda. Por quê? Porque, segundo ele, nunca ele tinha visto fazer percussão assim”.

De percussionista a referência cultural


Filho de Ogum, o orixá que abre caminhos, Giba construiu pontes e desbravou trilhas para a cultura popular gaúcha durante toda a sua carreira. / Diego Coiro /Divulgação/JC

Em 1990, o candombe “Beirando o Rio” rendeu a Giba o primeiro lugar no Festival Musicanto de Nativismo em 1990. Seria o primeiro dos prêmios que consagrariam o músico. Dois anos mais tarde, ele lançou Outro Um, álbum que continha uma seleção de 12 de suas composições, com o próprio músico assumindo o vocais e, é claro, a percussão.

O álbum foi vencedor do Prêmio Açorianos de Música de 1993 nas categorias Disco e Compositor e, apesar da importância da obra, atualmente só é em encontrado em lojas de discos raros, nos formatos LP e CD. Produtora de Giba nos últimos anos da carreira, Sandra Narcizo conta que há planos para disponibilizar o álbum em breve no Spotify (hoje, as músicas estão informalmente no Youtube).

Para a amiga e produtora, “falar sobre Giba Giba é falar de importância de um músico que estava olhando sempre para o passado, para o presente, para o futuro. Giba tinha a visão sobre os acontecimentos do dia a dia, do estado das coisas e com a consciência muito nítida de que ‘alguma coisa muito séria está acontecendo”, nas relações das pessoas e sobre os fatos do cotidiano, social e político”.

Artista de múltiplos talentos, ele transpôs esse pensamento também para obras nas artes cênicas, como “Ópera dos Tambores”, espetáculo que conta a trajetória dos africanos no Brasil a partir de uma fusão entre o poema “Navio Negreiro”, de Castro Alves e o show “Outro Um”.

O músico também soma ao currículo composições para a trilha sonora de “Netto Perde Sua Alma”, participações em filmes, parcerias com músicos eruditos como o pianista Geraldo Flach e sua atuação no Conselho Estadual de Cultura. Homenageado como cidadão emérito de Porto Alegre, Giba planejava as comemorações do cinquentenário de sua carreira quando morreu após uma cirurgia para a retirada de um tumor, aos 74 anos, em 2014.

Sopapo, o atabaque-rei


Obra do artista alemão Wendroth (1857) / Reprodução

Quando os africanos foram forçados à diáspora e escravizados pelos portugueses no século 18, trouxeram na memória uma gama de fundamentos e elementos culturais que acabaram compondo o mosaico de expressões que formam a cultura brasileira hoje. A percussão, essencialmente ligada à religião, faz parte deste complexo e acabou originando diferentes instrumentos musicais no país americano.

No sul do Brasil, na região de Pelotas, o tambor diaspórico tinha dimensões impressionantes. Feito a partir de tronco de árvore de mais de um metro de altura e revestido com couro em uma das extremidades, o sopapo era tocado nas charqueadas, integrando o ritual religioso dos escravizados antes da matança do gado. “O sopapo atuou também em outras situações festivas, como casamentos e outras celebrações, inclusive em momentos os quais foram reconhecidos posteriormente como “sincretismo”, ou seja, em celebrações festivas relativas a santos católicos”, conta o doutor em Música pela Ufrgs Mario de Souza, autor da tese “O Sopapo e o Cabobu: etnografia de uma prática percussiva no extremo sul do Brasil”.

Indícios da presença deste grande tambor no estado são a aquarela de 1857 do artista alemão Wendroth, na qual o sopapo aparece sendo tocado por escravizados sul-riograndenses, e o relato do viajante suíço-alemão Carl Seidler, publicado na obra “Dez anos no Brasil”, no qual descreve a Festa de Reis em Pelotas em 1834: “Dois homens fortes carregavam um grosso pedaço de tronco oco, revestido de couro, no qual logo um deles entrou a bater com os pés como num tambor.”

Após o fim da escravidão, o sopapo voltou a aparecer nos blocos de Carnaval de Pelotas, a partir dos anos 1940. Com o timbre grave do tambor e o conjunto de sopros conferindo um molho especial ao samba, a festa pelotense acabou sendo reconhecida como uma das maiores do Brasil nas décadas de 1960 e 1970. É dessa época que se tem as medidas do sopapo como o conhecemos hoje: formato cônico, pele de cavalo, altura de 1 metro e boca com 50 cm, feito em compensado.

Ainda que guarde similaridades com outros tambores brasileiros, como o atabaque e o curimbó, sua altura e imponência fez percussionistas o apelidarem de “atabaque-rei”. “É um tambor muito versátil, com uma assinatura muito forte, um grave absoluto. O sopapo tem um som aveludado e muito bonito e que chega nas pessoas através da vibração”, explica Richard Serraria, um dos músicos que inclui o sopapo como tambor central nas apresentações do grupo Alabe Ôni, de Porto Alegre. 

Serraria observa que o sopapo é ele próprio um tambor griô. “Ele conta histórias, ele permite que a gente fale dessas coisas, tem uma riqueza muito grande. O sopapo é um instrumento de comunicação dos homens com os orixás, mas também uma comunicação do homem com ele mesmo. É um instrumento de descoberta”, diz o percussionista.

Dentro do contexto da música produzida no estado há entre griôs (mestres ancestrais da cultura e da história afro-brasileira) como Giba Giba a certeza de que o sopapo é o único instrumento musical de fato criado em terras gaúchas. Para Maia, “como parte do processo de afirmação de uma identidade negra sul-riograndense, dizer que o sopapo é o único instrumento musical genuinamente gaúcho representa uma estratégia importante. Cabe lembrar que qualquer outro instrumento que seja lembrado como parte integrante da cultura gaúcha, muito comum nos regulamentos de festivais nativistas, é, antes de tudo, europeu.”

Cabobu, a celebração da cultura afro-gaúcha


Tambores de Porto Alegre / Reprodução

Giba não sabia, mas no final do século XX era praticamente o único percussionista do estado a tocar o sopapo. Foi em 1999, quando voltou à cidade natal para se apresentar com sua banda, que ele descobriu que o tambor rio-grandense havia silenciado por lá. Ninguém mais tocava o sopapo nem mesmo nas escolas de samba, que haviam sofrido um processo de “carioquização” nos anos 1970, com os sopapos sendo substituídos pelos surdos, mais leves de carregar. “Alguma coisa muito séria está acontecendo aqui”, disse Giba aos seus companheiros de banda quando chegou a Pelotas e não encontrou o tambor, uma frase hoje repetida por muitos amigos e colegas.

Do descontentamento, surgiu um projeto que movimentaria a cultura afro-gaúcha: o Festival Cabobu, nomeado a partir dos nomes de Cacaio, Boto e Bucha, três tocadores de sopapo do antigo Carnaval da região. “Pelotas para ele era a grande referência musical do Rio grande do Sul, a cidade mais parecida com o Brasil no estado. Ele fez esse projeto pensando em viabilizar de novo o sopapo para todos, trazendo os tambores do sul e os tambores do mundo. Mas o sopapo foi o veículo para a valorização da cena cultural de toda a região”, conta Edu do Nascimento.

Com financiamento do governo do estado, o Cabobu teve duas edições no ano 2000, reunindo centenas de pessoas em um festival ao ar livre que encheu de cores e sons o coração de Pelotas, entre o Mercado Público, a biblioteca e a praça central. Além de grupos artísticos de canto e dança africanos, o festival trouxe para o estado alguns dos maiores percussionistas do país, como Naná Vasconcelos, Djalma Correa e Chico César.

Richard Serraria participou do Cabobu com a banda Bataclã FC. “Foi um trabalho importantíssimo de mostrar para a comunidade cultural gaúcha que esse estado que se identifica como a Europa do Brasil também tem a presença negra. Esse foi o grande legado do Cabobu”, avalia. Edu também destaca a grandiosidade do evento. “O que mais me marcou foi a confraternização das pessoas em torno de uma coisa nossa. Ver a praça cheia de gente, aquele povo, uma caminhada gigantesca. Foi uma das coisas mais lindas que eu vi”, diz.


Alabê Ôni / Leandro Anton

Outro legado do festival foi a salvaguarda voluntária do tambor de sopapo. A ideia de Giba era construir 40 sopapos para serem usados no festival que, depois, seriam doados a escolas de samba e blocos pelotenses, uma vez que o cantor esperava que o Carnaval voltasse a contar com a presença do tambor. O griô e luthier Mestre Batista e seu filho, Zé Batista, foram os responsáveis pelo resgate da técnica e pela construção dos sopapos.

Ainda que o sopapo não tenha voltado a tomar as escolas de samba de Pelotas, com a realização de oficinas, a técnica foi expandida a músicos populares, que também difundiram o instrumento. “A dimensão que o sopapo tomou na música popular foi muito acima do esperado. Hoje, o sopapo é tocado por diversos músicos e grupos pelo estado, ganhou um espaço que ele muito pouco frequentava”, destaca Maia. Como todo tambor, o sopapo é em sua essência impregnado de religiosidade, ao mesmo tempo em que, quando levado aos palcos da música popular, se torna um tambor versátil e acessível a quem queira aprender a tocá-lo, respeitando suas origens.

Em Porto Alegre, grupos como o Serrote Preto, Bataclã FC, Alabe Oni, AfroEntes e Três Marias passaram a usar o instrumento, além de centros culturais como o Quilombo do Sopapo e o Afrosul Odomode. Em Pelotas, também artistas e até universidades têm trabalhado com o tambor. “A cidade tem vivido intensamente esta herança, em diferentes contextos, do centro a periferia, das escolas aos bares”, completa Maia. O Projeto Tamborada, idealizado pelo artista Kako Xavier, realiza oficinas em escolas estaduais e municipais da região, levando a construção e história do tambor. Em novembro de 2018, o Decreto municipal nº 6.130 declarou Pelotas “a cidade do Tambor de Sopapo”.

O legado para a música contemporânea

Giba costumava dizer que tinha 150 anos de idade, fazendo referência ao tempo que os negros passaram a ser escravizados no Brasil. O legado de Giba passa pela difusão do sopapo, que hoje é ensinado em projetos sociais como o Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo e o Areal do Futuro, até a reivindicação do protagonismo negro na arte.

Seja em espetáculos, músicas ou entrevistas, o artista sempre levantou a bandeira da cultura afro-gaúcha e seu pioneirismo o fez ser considerado referência entre os artistas contemporâneos, como, por exemplo, a cantora Glau Barros.  “Giba Giba é referência total da música gaúcha negra, por toda a história e trajetória. Tive a oportunidade de encenar uma música dele com o grupo de teatro Caixa Preta”, destaca.

Uma das fundadoras do sarau de poesia negra Sopapo Poético, que reúne dezenas de artistas todos os meses, a atriz Vera Lopes conta que a primeira edição do sarau, em 2012, teve Giba como homenageado. “Conheci Giba ainda muito jovem, sempre fui profunda admiradora de sua arte e de sua atuação incansável na divulgação e preservação das raízes africanas em seu fazer artístico”, lembra a atriz, que trabalhou com ele no espetáculo “Negro negrada negrice”. Também idealizador da iniciativa, Vladimir Rodrigues descreve Giba como “um grande mestre, uma pessoa com imenso carisma e uma mensagem positiva, direta e profunda, sempre disposto a ensinar”. O cantor é frequentemente homenageado também em shows, por músicos como Zé do Pandeiro, Loma Pereira, Pamela Amaro, Marcelo Delacroix e Demetrio Xavier.

Para o músico Richard Serraria, que escreveu a música “Giba Gigante Negão”, o pelotense integra a tríade de referência da maturidade da expressão negra no estado, ao lado do poeta Oliveira Silveira, idealizador do Dia da Consciência Negra (20 de novembro) e de Mestre Borel, que atuou no Batuque de Nação Ijexá e é representante da cultura ligada às religiões de matriz africana. “São três figuras que mostram a grandeza dessa cultura negra no Rio Grande do Sul”, afirma.

Filho de Giba, Edu do Nascimento também carrega o legado do pai.  O percussionista conta que gostava de ficar dentro do sopapo quando criança e ganhou seu próprio tambor gaúcho aos 15 anos. Décadas mais tarde, após construir carreira com outras bandas, Edu passou a integrar a banda do pai. “Ele me ensinou tudo, como se comportar perante a vida, qual é realmente a importância do sopapo. Ele me ensinou na realidade a observar o ser humano, a olhar direto nos olhos. E tocar foi uma consequência de tudo isso, saber tocar e respeitar o sopapo, sentir o respeito quando a gente tocar percussão”, diz o músico, que hoje guarda o sopapo de Giba em casa. Educador social, Edu é um dos intérpretes contemporâneos das composições de Giba, e se apresenta todos os anos na Feira do Livro de Porto Alegre com o grupo Lugarejo. Atualmente, ele prepara o lançamento de  álbum com músicas de Giba e novos arranjos.

O sopapo e cabobu: entrevista com Mario Maia, Doutor em Música pela UFRGS

Apesar dos poucos registros sobre os primórdios do sopapo, a teoria mais provável é que tenha sido criado no RS?

Especificamente em relação ao Sopapo, pode-se dizer que, junto com uma infinidade de outros tambores, foram transportados para as Américas, através da diáspora forçada dos negros do continente africano. Estes tambores foram carregados na memória dos africanos escravizados, junto com todo o complexo cultural relativo a cada indivíduo. Nas Américas, um processo de recriação cultural foi acionado, e inúmeros aspectos foram então retomados. No meio disso tudo, estavam os tambores, entre outras coisas, até mesmo pela necessidade deles, para a realização e eficácia de rituais.

Embora muito aspectos permaneçam na impossibilidade de se fazer afirmativas, ao mesmo tempo pode-se afirmar que sim, aqui surgiu um tambor de grandes dimensões que fez parte do complexo cultural reconstruído. Na verdade, a grande presença de africanos e descendentes destes em Pelotas, atuando nestes processos de reconstrução são uma afirmativa concreta da força das culturas de matriz africana sendo vivida desde os tempos da escravidão até os dias atuais, sem interrupção, intensa e que, por incrível que pareça, mesmo com toda a opressão, não só sobreviveu, mas imprimiu uma identidade local, apesar de todas as tentativas de negação e invisibilidade na qual foi mantida e que ainda hoje segue sofrendo o preconceito e negação.

Qual foi o papel do giba nesse processo e seu legado para a música gaúcha hoje? Na tua tese, tu falas em uma invenção da tradição…

De certa forma, Hobsbawm, o criador deste conceito, afirma que praticamente todas as tradições foram/são inventadas. A cultura gaúcha, o CTG etc, são exemplos disso. As culturas percussivas diaspóricas, também (é preciso um parêntese para deixar claro que esta afirmação, de invenção, está longe de ser pejorativa). Em todos estes processos, sempre tiveram personagens que foram fundamentais. Paixão Cortes e Barbosa Lessa foram fundamentais para tudo o que se vive hoje, em relação a gauchismos. Giba Giba também foi um personagem da maior importância para o legado de parte da cultura afro sul-riograndense, especialmente no que se relaciona ao Sopapo. Ele carregou na memória, toda uma cultura familiar e local, relacionada aos negros em Pelotas e ligada ao Sopapo. Durante toda sua trajetória artística, o Sopapo foi protagonista junto com ele. E assim foi até sua morte.

Outra questão é relativa ao gentílico gaúcho. Na construção deste tipo, o negro foi simplesmente ignorado. Desta forma, tudo que diz respeito a cultura gaúcha, não fala da cultura dos negros que aqui estavam. Daí minha opção em chamar de cultura sul-riograndense.

O sopapo conseguiu alcançar alguma entrada no meio tradicionalista hoje?

Conheço apenas uma situação, de um CTG em Pelotas, que criou uma coreografia para levar para o ENART (é preciso checar se foi ENART), na qual apresentaram a história do Sopapo e Giba-Giba, tudo de forma estilizada. Além deste exemplo, é preciso citar o artista Kako Xavier. Neste ano, no Festival da Tafona, Kako apresentou uma composição na qual todo o arranjo era para tambores, voz e violão, sendo o Sopapo o elemento central em um vaneirão que fala sobre a exclusão do negro na cultura gauchesca. A música ganhou o prêmio de melhor música, escolhida pelo público.

*Reportagem originalmente publicada no Jornal do Comércio

Edição: Nonada Jornalismo Cultural