Rio Grande do Sul

Reivindicação

‘Como vamos ficar isolados se muitas famílias têm um banheiro para 15 pessoas’

Protesto une movimentos em POA, lideranças de movimentos sociais cobram maior atenção às comunidades

Sul 21 | Porto Alegre |
Ato diante da Prefeitura denuncia o abandono das comunidades quilombolas, assentamentos urbanos e população de rua de Porto Alegre em meio à pandemia do novo coronavírus - Luiza Castro/ Sul21

Lideranças de movimentos sociais realizaram na tarde desta quinta-feira (4) um protesto diante do Paço Municipal para cobrar maior atenção do prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) às comunidades e populações vulneráveis de Porto Alegre durante o período de enfrentamento à epidemia do coronavírus. Em falas que se revezaram no ato, as lideranças dos movimentos, unificados na Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas- RS, criticaram a falta de políticas para a população de rua, o sucateamento da assistência social, a falta de atendimento de saúde adequado nas vilas da cidade e a superlotação dos ônibus, entre outros problemas vivenciados no período.

Para Alice de Oliveira, da ocupação Baronesa, o que está ocorrendo no Brasil durante a epidemia é um extermínio das populações mais vulneráveis, pois são elas que estão sendo mais afetadas pelo vírus e pelos impactos econômicos da crise sanitária. “A pandemia do covid-19 está mais uma vez sendo usada como uma arma biológica para matar as populações indígenas, tanto dentro das suas comunidades, como no contexto urbano. O que resta a nós, povos, é que a gente se una e lute. Lute contra o racismo e contra o fascismo, e não nos confundamos com oportunismo, com essas pessoas que estão dizendo que lutam contra o fascismo pegando a nossa luta e a nossa causa, porque são os nossos corpos que são diariamente violentados e violados”, disse.


Alice Martins frisou a importância da união e da luta / Luiza Castro/ Sul21

Mãe Pati de Oxum e de Ossanha, representante do Quilombo Tradicional de Matriz Africana de POA – Família de Ouro, questionou a falta de condições oferecidas para que os moradores das comunidades respeitem o distanciamento social e para que os contaminados evitem a propagação do coronavírus. Ela afirmou que as pessoas estão chegando aos postos de saúde com suspeitas de covid-19 recebem um atestado e uma ordem para ficarem 14 dias em casa, sem fazerem exames. “Será que, nesta casa, a pessoa tem um quarto único para ficar isolado da família? Tem um banheiro único para ficar isolado da sua família? Como vamos nos cuidar, de que maneira vamos ficar isolados, se nas comunidades a realidade é que muita gente tem um banheiro para uma família de 15, 20 pessoas. De que forma vamos lutar contra essa doença?”, questionou.

Ironizando o fato de que as estatísticas oficiais indicam que apenas 21 moradores da Lomba do Pinheiro teriam contraído coronavírus até o momento, o que considera uma grande contaminação, ela “convidou” o prefeito a visitar as comunidades da cidade. “Se as comunidades não estão contaminadas, a gente pode ser recebido pelo senhor Marchezan. A gente quer convidar o prefeito para dar uma volta nos ônibus das comunidades, para ver como é que estão as comunidades, para ver os ônibus lotados e o isolamento social dentro dos ônibus, todo mundo que nem lata de sardinha dentro dos ônibus. É assim que pedem isolamento social? É assim que querem que a gente fique dentro de casa?”


Sandro Lemos, do Quilombo Lemos, denunciou o abandono das comunidades / Luiza Castro/ Sul21

Sandro Lemos, representante do Quilombo Lemos, foi outro a reclamar da situação do transporte público da Capital. “Nós temos que sair de casa nessa pandemia, pegar ônibus lotado, caminhar, porque agora não tem ônibus na maioria das vilas e das comunidades. Mesmo nos bairros um pouquinho mais favorecidos pela mídia eles tiraram”, disse. Ele também destacou que é “utopia” da Prefeitura imaginar que as crianças das comunidades mais vulneráveis da cidade têm condições de voltar às aulas nesse momento usando a plataforma digital disponibilizada pela Prefeitura, que exigiria a necessidade de um celular, além de criticar a qualidade do atendimento de saúde. “A comunidade preta, a comunidade de favela, chega no Postão, chega nos hospitais, não tem o mesmo tratamento que tem os brancos filhinhos de papai. Eles que trouxeram o covid para cá e nós que estamos pagando a conta. Então, nós não vamos admitir mais que isso aconteça”, disse.

Edson Campos, do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), criticou a falta de atenção da gestão Marchezan com a população em situação de rua da Capital. Ele destacou que há mais de um ano e meio a Prefeitura não organiza reuniões do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua (Comitê PopRua), que deveria reunir movimentos para ouvir reivindicações e contribuições sobre o tema da moradia. Em sua fala, Edson pontuou que, passado todo esse período, a Prefeitura, em véspera de eleição, agora começa a adotar algumas medidas sugeridas pelos movimentos e que até então viriam sendo ignoradas.

“Todas as ideias que o movimento deu foram negadas. E, agora, vem a eleição, e aí todas as ideias que a gente deu eles estão usando. A gente teve a ideia, junto com o pessoal da saúde, de fazer um aluguel emergencial, como eles tão fazendo agora, de R$ 500, de levar marmita para a galera que saiu da rua para não ficar reciclando, de levar uma cesta básica. Tudo isso veio do comitê. E, agora, um ano e meio depois que acabou o comitê, ano de eleição, tão se utilizando e se apropriando da ideia que veio lá de trás, das reuniões. Eu falo isso porque a gente se sentiu incapaz quando a gente tava trabalhando e dando ideias. Então, a ideia dos incapazes não valia, mas agora, no ano de eleição, tá valendo”, questionou.


Veridiana Machado denunciou a terceirização do Abrigo Bom Jesus, que atende à população de rua, em plena pandemia / Luiza Castro/ Sul21

Também representante do MNPR e trabalhadora da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Veridiana Farias Machado denunciou ainda que a gestão Marchezan estaria aproveitando a pandemia para aprofundar a terceirização dos equipamentos de assistência social da cidade para Organizações da Sociedade Civil (OSCs). “Ele aproveitou a pandemia e, em vez de abrir vagas em abrigos como outros estados estão fazendo, entregou para essas organizações espaços municipais de referência, que tiraram muitas pessoas da ruas, muitos idosos, muitas pessoas com transtorno mental. Esse prefeito entregou para uma organização religiosa que vai vir tratar a população de rua com moralismo. Nós, que já tínhamos avançado na questão da redução de danos, de tratar as pessoas que fazem uso de álcool e drogas com muita dignidade, de incluir em vez de excluir, pois, em plena pandemia, esse prefeito aglomerou todo mundo que estava no abrigo Bom Jesus num despejo. Ele tá fazendo um balcão de negócios com a Fasc”, disse Veridiana em sua fala.

Ao final, lideranças dos movimentos entregaram uma reivindicação a representantes da Prefeitura que comparecem ao local do ato.

Confira as reivindicações:

-Ação conjunta entre governo do estado e prefeituras: a organização e o funcionamento de “gabinetes de crise” [estadual e municipais] é urgente e precisa funcionar de forma efetiva, permitindo o aprimoramento das diretrizes, logísticas e monitoramento de informações, processamento técnico e político de problemas prioritários, processos decisórios e comunicação [ traduzida em informações confiáveis e seguras, embasadas cientificamente e politicamente alicerçadas].

-Cumprimento da recomendação feita pelo CMS para a criação de um comitê na SMS, com a participação do CMS, universidades federais e entidades de representação dos profissionais de Saúde e de Saúde Coletiva, e a instalação de painéis públicos no site da SMS que organizem todas as informações relacionadas ao enfrentamento da pandemia, garantindo que os dados financeiros, clínicos e epidemiológicos sejam de conhecimento público e embasem as tomadas de decisão para os casos confirmados e seus contatos, com controle do isolamento. Endossamos aqui a importância do Controle Social, de representação ativa da sociedade civil e associações comunitárias, para a atualização das informações territoriais e discussões que embasarão as decisões da gestão pública.

-As negociações com provedores de serviços e equipamentos privados e suplementares, visando incluí-los em processos de regulação única e exclusiva pelo SUS em acordos que não comprometam de forma irresponsável os gastos públicos. Não apenas para caso de COVID-19 mas para qualquer caso que precisar da estrutura enquanto os leitos públicos estiverem lotados em função da pandemia. O CMS de POA orienta que as requisições de todos os serviços laboratoriais sejam feitas em plataforma única, incluindo kits de testes.


Representante da Prefeitura recebeu as reivindicações dos movimentos / Luiza Castro/ Sul21

-Plano de contingência nas Unidades de Atenção Primária, com protocolos e fluxos definidos para atendimento de usuários com Covid-19 e treinamento para todos(as) trabalhadores(as).

-A realização de testagens sorológicas deve ser ampliada, potencializa as tomadas de decisão, contudo, há que se ter cuidado na aquisição de material que possua maior sensibilidade, portanto, melhor confiabilidade para se estimar os casos negativos.

-As medidas para a interdição das atividades realmente não-essenciais devem ser retomadas com maior rigor. Regular saída das pessoas às ruas evitando aglomeração desnecessárias.

-Que a política de flexibilização e retorno programado somente sejam liberados programado com o declínio constante do número de novos casos diagnosticados, pacientes internados e óbitos atribuídos ao COVID-19 durante 14 dias consecutivos, seguindo orientações do CMS.

-As medidas de reconversão industrial para a produção de insumos de proteção e equipamentos de suporte vital devem ser intensificadas de modo que não fiquemos dependentes das compras internacionais. É preciso estimular a fabricação de EPIs para os profissionais da saúde em território nacional, para que seja possível garantir uma boa distribuição. E também para equipamentos especializados necessários como os respiradores e túneis de higienização para trabalhadores(as), de acordo com as normas de padrão de qualidade, certificadas pela ANVISA.

-Investimento em tecnologias e inovação: Vincular a equipe de Atenção Básica às famílias com casos suspeitos (como é o exemplo do app que avisa a equipe para que ela não precise levar seu familiar doente em emergências, onde pode contaminar mais gente).

-Concursos públicos na área de saúde e outros mecanismos para organização de uma equipe de apoio aos profissionais que estão na linha de frente. É preciso garantir treinamento para essas equipes, para utilizar os EPIs de maneira adequada, assim como é de responsabilidade do empregador a aquisição do EPI, ele também é responsável pela capacitação dessas equipes. Não tendo esse cuidado, o número dos afastamentos vai continuar crescendo a cada dia, enfatiza.

-Formação e capacitação para profissionais da saúde em todo território gaúcho com cursos de e 20h a 40h.

-Garantia de direitos trabalhistas essenciais, como alimentação digna, descanso, transporte público seguro, EPIs eficazes e equipamentos especializados seguros para o combate ao coronavírus.
-Como ação estratégica: reforçar a vigilância epidemiológica na Atenção Básica. E ativar todos os postos e unidades de saúde e equipá-las para tanto.

-Retorno programado só depois das exigências acima contempladas e com a criação de fundo emergencial com recursos de empresários acima de Microempreendedor Individual (MEI) e Taxação de Grandes Fortunas, para sustentar a área da saúde e todas as despesas necessárias para garantir equidade e redução de desigualdade social.

-Identificação de indivíduos, grupos e comunidades em condições de vulnerabilidade, pessoas com desgaste psíquico (estresse). Ex: vigilância em territórios quilombolas e famílias das micro áreas de vigilância (regiões pauperizadas: sem água, energia elétrica, saneamento, falta de alimentos). E optar por decisões políticas que combatam essas condicionantes que intensificam as vulnerabilidades diante da pandemia.

-Condições básicas de saúde garantidas às pessoas em seus territórios: alimentação, água, saneamento, energia elétrica, internet.

-Reconhecimento das especificidades das comunidades tradicionais, efetividade e celeridade no cumprimento das políticas públicas.

-Retorno imediato das linhas de ônibus suspensas em Porto Alegre, e que se respeito o Decreto nº 20.549/2020 que trata da circulação dos veículos com a lotação máxima de passageiros em pé limitados a 10 (dez) nos ônibus comuns e a 15 (quinze) nos ônibus articulados.

-Somos contra o retorno presencial e online das atividades escolares. A vida de nossas crianças, adolescentes e comunidades é colocada em risco com retorno das aulas escolares na rede municipal e estadual de ensino. O retorno, no contexto de crise do COVID-19, ainda não controlada, acarretará aumento da circulação de pessoas na cidade, em transportes coletivos que já identificamos problemas de superlotação.

-Não há estrutura física para manter o distanciamento social adequado e controlado dentro do ambiente das escolas públicas municipais e estaduais, possibilitando maior contágio. Além de que a circulação de crianças e adolescentes em ambiente externo coloca em risco a vida de toda a família, sobretudo os do grupo de risco.

-A imposição da educação EAD, sobretudo, nesse momento de crise econômica, aprofunda a segregação no ambiente escolar.

-Que haja um plano de recuperação econômica para o restabelecimento de pequenos e médios empreendedores, assim como estabelecimentos comerciais de pequeno capital. A crise pode ser canalizada para uma maior concentração e acumulação de capital por parte de alguns monopólios seja interna ou global.

Os manifestantes também divulgaram uma carta à gestão pública estadual e municipal. 

Edição: Sul 21