Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | O que você pessoa branca pode fazer na luta antirracista

Ideias para garantir um diálogo entre pessoas brancas e negras para um engajamento inter-racial na luta da negritude

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Se você quer deixar de reproduzir racismo e ser um aliado de verdade, leia autores negros" - Giorgia Prates

É hora de se libertar
Redenção
Rainha de Sabá
Juntou Rei Salomão
Para exaltar, para louvar a cor em questão
E acalmar o seu coração
Minha dor é de cativeiro
E a sua é de cotovelo (...)
(Trecho da música Raízes interpretada por Negra Li e Rael)

 

Desde que o assassinato de George Floyd incendiou a luta antirracista no mundo, permitindo também uma maior visibilidade para as lutas dos movimentos negros e periféricos no Brasil contra o sistemático assassinato de pessoas negras, demonstração mais cruel do racismo que estrutura a sociedade brasileira, muitas pessoas brancas têm perguntado como podem contribuir na luta antirracista. É sobre o papel da branquitude na luta contra o racismo que escrevo hoje, desejo partilhar algumas ideias e proposições colocadas em alguns conteúdos que objetivam garantir um diálogo entre pessoas brancas e negras de maneira a garantir um engajamento inter-racial na luta da negritude.

A primeira partilha que apresento é o olhar da jornalista Eliane Brum, colunista do jornal El País Brasil, que no artigo “Os manifestos estão brancos demais”, do dia 10/06/2020, afirma “A classe média progressista precisa compreender que, sem enfrentar o racismo estrutural do Brasil, não há ‘pacto civilizatório’ possível nem há democracia. Há um apagão nos dois principais manifestos que moveram o Brasil nas últimas semanas. Uma ausência que revela: 1) a qualidade da democracia que conseguimos ter após o fim da ditadura militar; 2) a dificuldade das elites (majoritariamente brancas) reconhecerem o racismo estrutural como o principal problema do país; 3) a impossibilidade de enfrentar o autoritarismo representado pelo Governo de Jair Bolsonaro sem colocar no topo da lista o enfrentamento ao racismo. Sem exterminar o racismo não há democracia. Nem há projeto civilizatório possível. Essa não é uma questão para decidir depois. Este é justamente o agora” i.

A segunda partilha é a partir da participação do professor, jurista e filósofo, Silvio Almeida no programa Roda Viva, da TV Cultura (22/06/2020)ii, o qual levantou debates para pensar, de forma articulada, o racismo no Brasil. Pós-doutor em teoria geral do direito, Almeida é considerado um dos maiores pensadores brasileiros contemporâneos da questão racial e responsável por atualizar o conceito de racismo estrutural à realidade Brasileira. Ele é autor de obras sobre economia política, sociedade, racismo e consciência de classe, sendo seu livro “Racismo Estrutural”, um dos títulos mais lidos nas Ciências Sociais. Entrevistado por uma bancada formada majoritariamente por jornalistas e especialistas negros, Almeida chamou a atenção para a complexidade do racismo e a relação do tema como outros elementos da vida social como a economia, as instituições democráticas, mídia e a educação. “É fundamental que os brancos se engajem na luta antirracista”. “O racismo não é uma questão pontual, não é comportamental. O racismo é algo que se não tratar compromete justamente tudo aquilo que nós quisermos lutar. Por exemplo, a democracia, o desenvolvimento econômico, possibilidade de a gente expurgar a violência de nosso cotidiano, ou seja, o racismo é algo que se infiltra na vida social e se não tratar leva ao aprofundamento das crises e compromete o futuro da humanidade”, diz Silvio Almeida no programa.

A terceira partilha é de um artigo publicado no site Agência Senado sob o título “Negro continuará sendo oprimido enquanto o Brasil não se assumir racista, dizem especialistas”iii. Publicado em 22/06/2020, nele estudiosos da desigualdade racial afirmam que, para que a luta contra a discriminação da população negra produza resultados consistentes, há um passo decisivo que nós, brasileiros e brasileiras, ainda não demos: assumir que somos, sim, racistas, seja como indivíduos, seja como sociedade. Como exemplo da negação, o advogado e sociólogo José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares e diretor da Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sociocultural (Afrobrás), cita um comportamento contraditório à primeira vista: a inflamada indignação demonstrada pelos brasileiros nas redes sociais e até em protestos de rua, seguindo uma onda antirracista mundial, em reação ao assassinato do segurança americano negro George Floyd, asfixiado por um policial branco em Minneapolis em maio. A indignação parece contraditória porque os brasileiros quase diariamente veem na televisão e no jornal crimes praticados no seu próprio entorno tão racistas e cruéis quanto o ocorrido nos Estados Unidos, mas nem de longe reagem com a mesma comoção, se é que chegam a reagir. Os brasileiros entendem que é lá fora que existe ódio racial, não aqui. Acreditam que no Brasil vivemos numa democracia racial, miscigenados, felizes e sem conflito. Essa é a perversidade do nosso racismo. Ele foi construído de uma forma tão habilidosa que os brasileiros chegam ao ponto de não quererem ou não conseguirem enxergar a realidade gritante que está bem diante dos seus olhos.

A quarta partilha é a partir do artigo “O Lugar dos Sujeitos Brancos na Luta Antirracista”iv de Denise Carreira, publicado na Revista Sur, em 2018. O artigo propõe a necessidade de maior engajamento de pessoas brancas e das instituições comprometidas com a promoção, defesa e garantia dos direitos humanos na luta antirracista. Aborda alguns dos obstáculos, desafios e possibilidades envolvidos nessa conflitiva construção, em especial, no que se refere à reflexão crítica e ao processo de desconstrução da branquitude como lugar de manutenção de privilégios materiais, subjetivos e simbólicos na sociedade e base de sustentação do racismo. Denise integra o colegiado de organização da Ação Educativa e da Plataforma DHESCA, integrou o Grupo Interministerial que elaborou documento preliminar do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação das Relações Étnico-Raciais e é coautora das publicações Indicadores da Qualidade na Educação: Relações Raciais na Escola, o Ministério Público e a Igualdade Étnico-Racial na Educação.

A quinta e última partilha é o livro “Pequeno Manual Antirracista”, da filósofa Djamila Ribeiro (Companhia das Letras), o qual tem por objetivo propor ações concretas para que a luta antirracista seja mais que o compartilhamento de hashtag. Djamila aborda de maneira acessível e didática vários dos temas caros à militância negra e ao feminismo negro. Embora todos possam se beneficiar da leitura, é um livro voltado justamente para pessoas que ainda não refletiram sobre sua própria racialização (o que inclui, principalmente, pessoas brancas). No capítulo “Enxergue a negritude”, ela escreve: “É importante ter em mente que para pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade. Portanto, frases como ‘eu não vejo cor’ não ajudam. O problema não é a cor, mas seu uso como justificativa para segregar e oprimir. Vejam cores, somos diversos e não há nada de errado nisso — se vivemos relações raciais, é preciso falar sobre negritude e também sobre branquitude” v.

Embora curto e sucinto, é o tipo de livro introdutório que deveria ser discutido em escolas e rodas de conversa. E fica a dica: se você quer deixar de reproduzir racismo e ser um aliado de verdade, leia autores negros, ouça o que estão dizendo e se disponha a aprender com eles. O livro é uma excelente porta de entrada para quem quer começar a se esclarecer sobre opressão racial e antirracismo e não sabe por onde começar. Em cada capítulo, Djamila destrincha uma faceta do racismo, trazendo dados e referências de obras de intelectuais negros. Ela ainda faz questão de incluir uma lista apresentando cada um dos autores citados, para que o leitor possa buscar e aprofundar seus conhecimentos por si só.

* Michele Corrêa é feminista negra, graduanda em Filosofia na UFPel, assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA

 

Edição: Marcelo Ferreira