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Artigo | Necessitamos do nosso 26 de Julho

Exemplos de combatividade e de uma política revolucionária não faltam à esquerda brasileira

Porto Alegre | BdF RS |
Ditadura de Batista foi derrubada pela Revolução liderada por Fidel Castro - Rádio Surco

Era um dia de abril do ano de 2009, cinquentenário da Revolução Cubana. Eu havia recém chegado à cidade de Santiago de Cuba, onde daria início aos meus estudos semestrais na Universidad de Oriente, dentro da faculdade de História. Assim que larguei minhas bagagens na casa destinada pelo governo cubano para minha estadia, eu me pus em movimento para encontrar o famoso Cuartel Moncada, palco principal dos acontecimento de 26 de julho de 1953. Minha pressa era tamanha, que eu sequer comi algo. Saí caminhando pelas ruas de Santiago e pedindo informações de onde se localizava o Moncada. Não foi difícil encontrá-lo, afinal o Cuartel fica localizado nos arredores do centro da cidade.

A imagem da chegada ao lugar ficou registrada para sempre em minhas retinas: lá estava o monumental Cuartel Moncada, com suas cores amarela e branca, e suas paredes repletas de furos das balas de fuzil e outras armas, disparadas naquela manhã em que Fidel, Raul, Abel Santamaría, Haydé, entre outros revolucionários, tentaram assaltar a segunda principal fortaleza militar de Cuba, para derrubar o regime golpista instaurado por Fulgêncio Batista desde março de 1952. Uma visão inesquecível para qualquer militante de esquerda que tinha, e segue tendo, a Revolução Cubana como principal referência de resistência ao imperialismo norte-americano desde a metade do século passado.

Qual foi minha surpresa quando eu subi as escadas para acessar o local, hoje transformado em um instituto de educação, e me deparei com um jogo de futebol que ocorria no pátio do quartel, onde ocorreram os episódios mais sangrentos do assalto em 1953. Aquilo rapidamente tomou minha atenção, pois eu não imaginava encontrar naquele lugar um jogo do esporte mais popular do meu país. Fiquei por alguns minutos admirando os jovens cubanos (e confesso que me surpreendeu como jogavam bem), quando um senhor notou minha presença e veio conversar comigo, perguntando primeiramente de onde eu era. Quando eu disse que era brasileiro ele não esperou eu fechar a boca e me convidou para entrar no jogo, convite que eu aceitei de pronto. Quando entrei no pátio, o jogo parou, o treinador anunciou que eu era brasileiro, e rapidamente eu, que estava de tênis impróprio para o jogo, me vi com uma chuteira na mão, emprestada por um dos jogadores, que ficou então descalço. E foi assim que, nas minhas primeiras horas na cidade de Santiago de Cuba, eu me vi participando de uma partida de futebol, dentro do local mais emblemático para a Revolução Cubana. Esta cena, e a sensação experimentada por mim naqueles momentos, jamais serão esquecidas e não podem ser expressas em palavras.

Lá se vão 67 anos desde que o Assalto ao Cuartel Moncada ocorreu. Todos sabem que o ataque falhou. O plano concebido por Fidel e seus companheiros era muito bom, mas necessitava da conjunção de uma série de detalhes para lograr êxito. Não cabe aqui, neste pequeno texto comemorativo, analisar o plano em seus aspectos táticos e demonstrar como, por detalhes quase que insignificantes, os revolucionários cubanos perderam o efeito surpresa, imprescindível para que o ataque pudesse sair vitorioso. A historiografia cubana dedicou dezenas de livros sobre esse assunto, mas para os leitores brasileiros que desejam saber um pouco mais sobre esses detalhes, basta indicar a entrevista concedida por Fidel Castro a Ignácio Ramonet, imortalizada no livro *Cien Horas Con Fidel*, cuja tradução para o português está intitulada como *Fidel Castro: biografia a duas vozes.* Neste livro, Fidel Castro aborda, com a riqueza de detalhes que somente o comandante daqueles acontecimentos poderia ter fornecido, todos os episódios do ataque ao Moncada, desde o início das preparações, até os desfechos, incluindo as altas doses de perversidade, levadas a cabo pela ditadura de Batista.

As lições tomadas deste episódio são inúmeras. O próprio Fidel tratou destas lições em seu clássico *A História me Absolverá, *que na verdade foi a sua autodefesa realizada perante os juízes corruptos da ditadura batistiana (qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência) no dia de seu julgamento, em 16 de outubro de 1953, após Fidel ter sido capturado e mantido preso pela ditadura de Batista. O julgamento de Fidel contou com todas as irregularidades legais que um regime golpista, ilegítimo e ilegal poderia cometer, incluindo a negativa de um advogado de defesa e de acesso às provas do caso. Diante destas ilegalidades, Fidel decide ele mesmo se defender no tribunal. O texto que veio à tona desta defesa, já citado acima, constituiu uma verdadeira denúncia das crueldades da ditadura, além de também ter se convertido no próprio programa do Movimento 26 de Julho, tendo sido colocado em prática após a vitória da Revolução em 1959. Vale a pena citar as últimas palavras de Fidel perante aqueles juízes, pois são palavras que ficaram plasmadas na história do nosso continente: "Quanto a mim, sei que o cárcere será duro como não tem sido para mais ninguém, cheio de ameaças, de ruins e covardes lições, mas não o temo, como não temo a fúria do tirano miserável que arrancou a vida de setenta irmãos meus. Condenem-me, não importa, a história me absolverá."

A história não só absolveu Fidel, como o colocou no mais alto patamar entre os grandes líderes dos povos oprimidos de toda a história da humanidade. As lições que Fidel tirou do golpe de março de 1952 deveriam servir de alento para a esquerda, sobretudo latino-americana, que está acostumada a viver entre golpes de estado desde as primeiras décadas do século passado. Se é verdade que a república burguesa nunca foi verdadeiramente democrática, mesmo entre seus exemplos europeus de maiores liberdades civis e paridade econômica, é mais verdade ainda que no nosso continente nunca tivemos um exemplo sequer de uma república liberal minimamente democrática. Aqui sempre estivemos tutelados pelos interesses do imperialismo, primeiro europeu, e após ao imperialismo norte-americano, e quando algum governo propunha um conjunto de reformas, por mais moderadas que fossem, no sentido de tornar as nossas sociedades mais democráticas, este governo sofria uma intervenção do imperialismo, apoiada geralmente pelas elites nacionais de cada país.

No Brasil, exemplos de golpes não faltam desde que a República foi instaurada em 1889, também através de um golpe. Foi assim com Getúlio em 1954, com Jango em 1964 e, mais recentemente, com Dilma em 2016. E a esquerda brasileira, apesar de não faltarem exemplos tanto no nosso país como em outros, segue submetida, por vontade própria, ao sistema republicano altamente autoritário do nosso continente. Poucos sabem, mas Fidel Castro, antes do golpe de 1952, que instaurou a ditadura de Fulgêncio Batista, fazia parte de um partido da política tradicional em Cuba, o Partido Ortodoxo. Porém, com o advento do golpe, Fidel rapidamente tira uma lição importantíssima, que vai selar não só o seu destino, como o próprio destino da Revolução e do povo cubano: a de que, para alcançar qualquer transformação social profunda, seria preciso transgredir as regras do jogo burguês convencional, que tem nas eleições o seu espetáculo principal.

Ao nos aproximarmos de mais um processo eleitoral, a esquerda brasileira, hegemonicamente, se lança às eleições como se estivéssemos em um período de normalidade jurídica. Se já em um cenário considerado normal, as eleições por si só dificilmente conseguem alterar as estruturas de funcionamento da nossa sociedade, diante de um contexto de golpe como o que nós vivemos, a participação da esquerda de forma acrítica nesse processo beira à esquizofrenia. Sobretudo em um processo de eleições municipais, onde ao contrário de combater o golpe de 2016 e suas consequências, o que se busca justamente é legitimar este golpe, instaurando uma aparência de normalidade institucional no país. A esquerda que participa destas eleições, sem realizar uma denúncia contundente do golpe, atua no sentido de normalizar as suas consequências, e a maior delas é o próprio governo Bolsonaro.

O Brasil necessita, portanto, de um 26 de julho. Não como cópia da Revolução Cubana, mas para dar uma guinada revolucionária à estratégia da esquerda, que até agora se mantém dentro dos marcos impostos pelo próprio Golpe de 2016. Não se trata de copiar a estratégia traçada por Fidel e seus companheiros, mas sim de buscar uma alternativa que não esteja restrita às regras do jogo do regime golpista. As eleições municipais, situadas nesse cenário, nada ou pouco poderão alterar a relação de poderes em favor da classe trabalhadora, ainda mais quando a esquerda tem se colocado a reboque da direita tradicional em praticamente todas as suas ações. Participar das eleições, apresentando propostas insignificantes perante o cenário de caos completo em que vivemos, é legitimar o golpe.

Exemplos de combatividade e de uma política revolucionária não faltam à esquerda brasileira. Na própria história das lutas sociais do Brasil podemos colher valorosos ensinamentos. Porém, no dia de hoje, justamente um 26 de julho, nos cabe não só homenagear os cubanos e sua revolução, como também refletir como eles conseguiram, a partir de uma pequena ilha, se transformar em um farol de esperança para todos os povos oprimidos do mundo. Viva Cuba! Viva Fidel! Viva o Movimento 26 de Julho!

* Historiador e professor de história da rede estadual e municipal em Caxias do Sul.

Edição: Katia Marko