Rio Grande do Sul

ATAQUES VIRTUAIS

Crimes de ódio aumentam durante a pandemia em invasões de videoconferências

Para especialistas, práticas são criminosas e estão ligadas ao crescente conservadorismo no país

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em ataques racistas e misóginos, invasores chegam a utilizar imagens pornográficas e até de estupro - Thinkstock

Ataques e crimes de ódio e preconceito não são uma novidade, ainda mais quando se observa o ambiente da internet e as redes sociais. Porém, acompanhando o crescimento das reuniões e atividades realizadas por videoconferência, como reflexo da necessidade de isolamento social na pandemia do novo coronavírus, uma prática tem se tornado sistemática: a invasão de reuniões e atividades virtuais por grupos de extrema-direita. Chamado pela expressão em inglês “zoombombing”, o fenômeno cresceu no mundo inteiro. Brasil, em sua maioria, são ataques racistas e misóginos, com os invasores chegando a utilizar imagens pornográficas e até de estupro.

As redes sociais também registram um aumento de crimes de ódio, pornografia infantil e neonazismo. Um levantamento da Safernet, ONG que monitora violações de direitos humanos na internet, realizado a pedido do The Intercept Brasil, mostra um crescimento de 5.000% durante a pandemia. Os dados apontam quase três vezes mais denúncias de racismo em 2020 do que em 2019, a maior parte no Facebook. Casos de violência contra a mulher dobraram, a maioria no Twitter. Já em relação ao compartilhamento de pornografia infantil, foi registrado cinco vezes mais denúncias, com maior aumento no Instagram.

No caso dos ataques a atividades virtuais, diversos casos foram noticiados somente no Rio Grande do Sul nos últimos meses. Um deles foi durante reunião da chapa UFPel Raiz, que concorre à Reitoria da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). No dia 20 de agosto, hackers tentaram constranger os participantes com gritos, xingamentos motivados por violência de gênero e racismo.

“Em um primeiro momento não estávamos entendendo exatamente o que estava acontecendo. Estávamos em uma reunião ampliada da chapa UFPel Raiz, na qual eu estou candidata a reitora da universidade. Era uma reunião ampliada e aberta para a comunidade acadêmica e a comunidade externa, onde apresentamos alguns pontos do nosso programa de gestão e do nosso projeto político de universidade. Outros professores já haviam feito suas falas. Quando eu estava finalizando a minha, invadiram a sala virtual, que tinha 100 pessoas e outras 60 esperando para entrar”, relata a professora e psicóloga Miriam Alves.

Miriam, assim como grande parte dos professores presentes na reunião são negros. “Começaram, além de ameaças às pessoas que estavam ali, também a fazer manifestações racistas direcionadas a mim e a todas as pessoas negras que ali estavam. Foi algo muito difícil para todo mundo. Foi a primeira vez que eu vivenciei, não sabíamos muito bem como lidar com a situação”, explica.

Passado o susto inicial, a equipe responsável pelo suporte da reunião conseguiu fazer a gravação para tentar identificar de onde eram as pessoas e excluí-las. “Identificamos que eram, mais ou menos, umas seis pessoas que invadiram. Haviam ali pessoas do Rio de Janeiro, por exemplo. Então é uma organização sim, que deve ter suas vertentes na nossa localidade, no nosso território, mas que se espalha”, pontua Miriam.

A socióloga, especialista em Segurança Pública e integrante da Associação Mães e Pais pela Democracia, Aline Kerber, também passou por essa desagradável experiência no dia 15 de agosto. “Aconteceu em um sábado, em uma reunião chamada pela Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), de Porto Alegre, o GT ensino. A ideia era apresentar a pesquisa Educação na Pandemia, feita em conjunto com o Comitê e a Associação Mães e Pais pela Democracia. Eu sou responsável por essa pesquisa e, portanto, eu estava lá para apresentar. Logo nos primeiros minutos da apresentação a gente sofreu o ataque. Era para silenciar, eles começaram a gritar para parar, soltaram funk, botaram pornografia, também tinha expressão de racismo, de gordofobia, foram essas imagens e esses ataques”, relata Aline.

Ela conta que posteriormente ficou sabendo que o link da reunião estava no Facebook da AGB. “As pessoas entraram no link, foram autorizadas pelo moderador da reunião e fizeram esse ataque dessa forma. Eu não sabia que era uma reunião aberta, não fui avisada que era pelo Meet, que era uma reunião divulgada nas redes sociais. Se soubesse eu teria pensado antes para não me expor”, comenta. “O lado positivo é que depois desse ataque saímos dessa sala, desse link e logo a AGB criou outro. Nós voltamos e eu consegui concluir a minha fala”, complementa.

De onde vem o “zoombombing”


Prática está ligada a ações da extrema direita ao redor do mundo / Reuters

Ao procurar pelo termo na internet, várias matérias surgem, apresentando invasão a eventos virtuais e insultos. O "zoombombing" cresceu tanto nos Estados Unidos, por exemplo, que em abril o FBI (o Departamento Federal de Investigação dos EUA) divulgou um comunicado à imprensa para alertar as pessoas sobre a ameaça. De acordo com o que foi divulgado pela imprensa, o departamento recebeu "vários relatos" de videoconferências sendo interrompidas por "imagens pornográficas e/ou de ódio e linguagem ameaçadora".

Conforme explica o pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD) e doutor em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, João Guilherme Bastos dos Santos, os grupos que protagonizam os recentes ataques virtuais possuem como elemento propulsor o episódio chamado gamergate e fóruns como o 4Chan, Reddit e Discord. Há uma influência do vaporwave, estética criada na música eletrônica e que foi apropriada por grupos especialmente da extrema-direita.

“O vaporwave influencia grupos alternativos e alcança canais como 4Chan, conhecido por ser um local em que pessoas – particularmente gamers, hackers, geeks, etc. – podem falar anonimamente sobre diversos temas. Com o avanço de temas como representação das mulheres em jogos, grupos de apoio a mulheres desenvolvedoras e jogos que abordam temas como depressão, alguns grupos neste e em outros fóruns iniciam uma militância contra o ‘politicamente correto’, culminando no fenômeno conhecido como gamergate e na hostilização, ataques hackers e vazamento de informações pessoais de programadoras de jogos nos Estados Unidos”, expõe João Guilherme.

Neste cenário, conforme o pesquisador, o crescimento dos grupos de extrema-direita como a Alt Right no 4Chan, Reddit e outros ambientes online trazem grupos familiarizados com o vaporwave para a base de apoio de Donald Trump nos Estados Unidos. “É neste quadro que a Trumpwave faz uma ponte entre contracultura de direita e vaporwave em termos estéticos, se apropriando de um gênero inicialmente mais próximo da esquerda. A aproximação faz com que ideias misóginas e falas de líderes populistas pareçam mais palatáveis aos públicos destes canais online.” No Brasil, ela foi apropriada por vários apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.

Conforme explica João Guilherme, as pessoas que estão inseridas nesses fóruns compartilham o que alguns robôs coletam na internet em termos de link para videoconferências. “Toda vez, por exemplo, que alguém posta um convite para uma reunião no Zoom no twitter, você pode ter um bot (robô) que registra aquilo e repassa para esses grupos. Aí eles têm como compilar as várias reuniões que estão acontecendo e em qual reunião eles vão invadir para fazer o que eles chamam de ‘zoombombing’”, define.

O pesquisador ressalva que é importante fazer uma diferença entre os chamados trolls, por exemplo, que filmam e compartilham a própria tela, fazem desenhos obscenos e filmam a reação das pessoas, do que vem acontecendo. No “zoombombing” é usado um conteúdo mais pesado, direcionado e associado a um discurso de ódio contra algumas minorias, como se vê nesses recorrentes ataques que estão acontecendo.

“Um ponto muito importante é que esses ataques não estão envolvidos com um ataque hacker, em que há uma quebra de segurança e onde a pessoa usa códigos para quebrar a segurança de um determinado aplicativo. Na verdade, eles estão baseados em falhas na proteção das senhas das pessoas que compartilham e da própria estrutura do Zoom, onde muitas vezes o link carrega a senha da sala”, destaca.

De acordo com ele, existe uma série de mecanismos para evitar esse tipo de situação que muitas vezes não são observados. “A solução passa por bloquear o compartilhamento de tela e, se possível, ter uma sala de espera onde você vê todo mundo que entra. A sala de espera pode ser um mecanismo falho porque alguém pode entrar se passando por outra pessoa, mas se você não deixa mais ninguém compartilhar a tela, ao escolher bem quem pode fazer isso, você mina o principal mecanismo que eles usam”, finaliza.

“Práticas devem ser enfrentadas e reprimidas”

Para o procurador regional dos Direitos do Cidadão no Ministério Público Federal no RS e integrante do Fórum de Combate à Intolerância e ao Discurso de Ódio, Enrico Rodrigues de Freitas, ataques como vêm acontecendo, em especial nos âmbitos educacionais, são absolutamente ilegais. ”A depender do fato, podem configurar diversos crimes. Racismo, injúria racial, e a depender do contexto até crime de ameaça, entre outros crimes. E se houver a reunião de pessoas para essa prática de forma mais estável, até mesmo o crime de quadrilha”, aponta.

O procurador ressalta que a Constituição Federal, a mesma que garante a liberdade de expressão, veda o anonimato de forma a permitir e garantir eventual direito de resposta e de reparação. “Também é de se reafirmar que práticas de racismo, por exemplo, justamente por se constituírem em crime não estão albergadas pelo direito à livre manifestação”, salienta. Frisa que o crime de racismo é imprescritível e que o Supremo Tribunal Federal equiparou a esse a prática de crimes que tenham conotação de ódio em razão de orientação sexual e de identidade de gênero.

No Brasil, a Lei nº 7.716/1989 estabelece crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. De acordo com a Lei, praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional por intermédio dos meios de comunicação pode acarretar uma pena de dois a cinco anos de reclusão, acrescida de multa.

“O posicionamento do Ministério Público Federal e do Fórum de Combate à Intolerância e ao Discurso de Ódio é de que essas práticas devem ser enfrentadas e reprimidas nos termos legais, com a identificação e punição daqueles que cometerem esses crimes”, assegura. Segundo Enrico, a Procuradoria dos Direitos do Cidadão instaurou um procedimento de acompanhamento da situação, bem como para atuação com enfoque de prevenção. O objetivo é buscar que Universidades e Institutos Federais implementem mecanismos de prevenção e de registro desses ataques, bem como de mecanismos que auxiliem na documentação do ilícito e facilitem a identificação daqueles que estão praticando.

Em sua opinião, o agravamento desse tipo de violação pode decorrer de ineficiente atuação estatal no seu enfrentamento e apuração. “Mecanismos de prevenção, de educação, são alternativas importantes ao lado daquelas repressivas. Também vejo que dada a característica dos meios virtuais, que possibilitam uma maior desidentificação das pessoas que praticam esses ilícitos, bem como uma eventual ideia absurdamente equivocada de que o virtual é diverso do presencial, se faz necessário o estabelecimento de mecanismos de registro e identificação das pessoas em acessos a plataformas de aulas e eventos digitais. Há que reafirmar a necessária atuação do Estado brasileiro no enfrentamento de práticas racistas”, conclui.

Discurso de ódio e avanço do conservadorismo

Nelson Mandela certa vez escreveu: “Ninguém nasce odiando outro pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.”

Para a psicóloga Roberta da Silva Gomes, conselheira do Conselho Regional de Psicologia do RS (CRPRS) que preside as comissões de comunicação e de relações étnico-raciais, a citação do Mandela é problemática e romantizada. “Como se fosse só uma questão moral, como se fosse só uma questão de percepção de um indivíduo. Algo como ‘ah tu pode amar ou pode odiar, então tu escolhe amar ou tu escolhe odiar’, e não é isso. Tem toda uma influência grupal, todo um contexto social, todo um meio onde essas pessoas estão inseridas e que tem influência sobre esses comportamentos. A gente precisa olhar para esse discurso de ódio dessa forma e não como uma simples questão moral”, afirma.

Ao invés de olhar o surgimento do ódio como se fosse um sentimento do indivíduo, a psicóloga sugere uma perspectiva mais ampla. “É importante problematizar, talvez, onde nasce o ódio ao diferente, das opressões, da dificuldade das pessoas lidarem com o diferente. A dificuldade de lidar com pessoas não brancas, que são alvo desse discurso de ódio”, afirma, citando negros, indígenas, quem foge da heteronormatividade como os LGBTIs, as mulheres em relação a misoginia e pessoas com deficiência.

Segundo Roberta, é preciso pensar socialmente e politicamente o que está posto nesse momento da conjuntura no país e nas relações como um todo. “A gente vive um momento de avanço do conservadorismo, um conservadorismo com um discurso de ódio muito intenso contra as minorias. Essas pessoas que historicamente sofrem com a discriminação nessa sociedade, nesse momento se encontram ainda mais vulneráveis.”

Ainda, de acordo com ela, é preciso analisar quem está no poder nesse momento. “A gente tem um presidente machista, racista, homofóbico e misógino. O comportamento da nossa autoridade máxima reflete no comportamento de outras pessoas, dos ‘cidadãos comuns’. Essas pessoas, que já tinham uma propensão a disseminar esses comportamentos, que já se enxergavam como uma raça superior, quando têm um presidente que age como este vem agindo, sentem-se legitimadas para essas ações”, exemplifica.

A própria reação e resistência do campo progressista instiga essas ações. “Quanto mais esse campo progressista resiste e toma atitudes, ações que vão contra esse discurso de ódio, mais essas pessoas que reproduzem esse discurso ficam enfurecidas, com mais ‘sangue nos olhos’. Elas ficam com uma ânsia de reagir a essas demarcações de resistência. É isso o que a gente tem vivido”, destaca.

Conforme afirma a psicóloga, a existência desses grupos não é novidade. “Esses grupos já se encontravam virtualmente e fortaleciam esse sentimento de superioridade, de ódio, de demonstrar o seu ódio e reconhecer uma inferioridade nesses outros grupos. Mas a partir do momento que nosso mundo passa a ser praticamente, na sua totalidade virtual, 100% virtual, com certeza isso aumenta a legitimidade para essas ações. Muito possivelmente essas pessoas não se viam contempladas por outros movimentos e acabaram por se encontrar nesses grupos, se agregaram a eles e os potencializaram”, finaliza.

Ataques à democracia


Campanha tomou as redes sociais denunciando que racismo é crime após ataque à chapa UFPel Raiz / Reprodução Facebook

Após o ataque à reunião da AGB, conforme conta Aline Kerber, se formou uma rede de solidariedade. Além de fazer o Boletim de Ocorrência, a socióloga também dialogou com o Ministério Público Federal e a Procuradoria dos Direitos do Cidadão. Para Miriam Alves, é “fundamental denunciar, publicizar esses crimes para que esses criminosos sejam encontrados e punidos com rigor da lei”. Ela entende que situações como a sofrida pela UFPel Raiz e outros tantos grupos e instituições são verdadeiros ataques à democracia.

Edição: Katia Marko