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Artigo | Arte e cultura na pandemia

Cancelamento das atividades expôs a vulnerabilidade dos envolvidos na produção cultural e artística

Belo Horizonte | Brasil de Fato MG |
criança, arte
"A arte e a cultura têm uma dimensão de produção de conhecimento intelectual e desenvolvimento da subjetividade formando nossos sentidos e nossa consciência" - Créditos da foto: Midia NINJA

"Pressupondo o ser humano enquanto ser humano e seu comportamento com o mundo enquanto um (comportamento) humano, tu só podes trocar amor por amor, confiança por confiança, etc. Se tu quiseres fruir da arte, tens de ser uma pessoa artisticamente cultivada; se queres exercer influência sobre outros seres humanos, tu tens de ser um ser humano que atue efetivamente sobre os outros de modo estimulante e encorajador”, afirmou Karl Marx em seus Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844.

A arte e a cultura têm uma dimensão de produção de conhecimento intelectual e desenvolvimento da subjetividade formando nossos sentidos e nossa consciência. Numa perspectiva emancipadora, permite que percebamos a realidade de forma sensível e, portanto, que tenhamos um olhar profundo sobre a mesma, percebendo-a não apenas para representá-la, mas para refletir sobre ela e intervir de forma criativa para transformá-la.

No Brasil, após o golpe de 2016, a cultura foi um dos primeiros alvos do governo de Michel Temer e nunca mais saiu da mira dos conservadores e do atual governo Bolsonaro.

5,2 milhões de profissionais da área cultural foram os primeiros a parar de trabalhar na pandemia e os últimos a serem considerados numa política de auxílio de emergência

Quando a pandemia foi declarada, boa parte da cultura brasileira vivia já à custa de respiradores: o Ministério da Cultura já havia sido extinto, as políticas públicas para o campo artístico-cultural eram praticamente inexistentes, os casos de censura (e autocensura pela sobrevivência) eram cada vez mais comuns, assim como as fake news contra os profissionais da área.

Esses ataques não são surpresas em se tratando de governos que têm no obscurantismo, na intolerância, no ódio e combate à diversidade um de seus pilares.

A cultura e a arte têm um enorme potencial de construção de uma visão crítica da realidade e de formação de consciência, numa perspectiva humanizadora. Mesmo numa sociedade em que a indústria cultural e a visão mercadológica da arte e da cultura são predominantes, esse potencial latente de desnaturalização da barbárie e de construção de novos valores e sociabilidades é considerado uma ameaça permanente e precisa ser eliminado ou reduzido ao mínimo.

Neste cenário desolador, a chegada da pandemia e as medidas para sua contenção, em especial a restrição à aglomeração de pessoas, acabaram expondo e acentuando várias dimensões da arte e da cultura que, em geral não são percebidas pela maioria das pessoas.

Uma dessas primeiras percepções foi a de quão presentes e necessárias são para as nossas vidas as atividades artístico-culturais de todos os tipos e, mesmo que permeadas pela lógica da mercadoria, elas são na sua maioria coletivas e parte fundamental da nossa vida como seres sociais.

Por outro lado, o cancelamento das atividades acabou em certa medida expondo a situação de vulnerabilidade em que boa parte dos sujeitos envolvidos na produção cultural e artística vive e evidenciando a sua condição de classe trabalhadora, sejam artistas, agentes culturais, mestres e mestras das manifestações das culturas populares, técnicos, costureiros, eletricistas, auxiliares, entre outros.

O que ficará de tudo isso pós-pandemia?

Se estima que sejam mais de 5,2 milhões de profissionais da área, a grande maioria atuando nos “bastidores” do espetáculo. E mesmo tendo sido estes os primeiros a parar de trabalhar na pandemia, foram os últimos a serem considerados numa política de auxílio de emergência, com a aprovação da Lei Aldir Blanc, proposta pelo campo político de visão progressista.

Em geral, associado a muito glamour e grandes volumes de dinheiro, o campo da cultura viu exposta a sua base de sustentação, uma imensa massa de trabalhadores e trabalhadoras, muitos deles precarizados que se viram repentinamente sem as condições mínimas de sobrevivência.

A pandemia expôs e exacerbou ainda mais as desigualdades sociais no país e suas consequências no acesso a direitos fundamentais como: moradia digna, a atenção à saúde e a uma alimentação saudável, entre outros, mas também o direito à literatura, à música, às artes e esportes de uma maneira geral, seja como fruição individual, seja como motor de desenvolvimento das capacidades humanas.

Enquanto uma parcela da população pode ficar em isolamento em suas casas e aí ocupar seu tempo também com a leitura de livros, o aprendizado de um instrumento, assistindo filmes e shows pela internet, outra parcela pelejou com a falta de acesso à internet – ou falta de crédito no celular, ou com o fato de não ter livros em casa, por exemplo. E uma outra parcela ainda, nem mesmo conseguiu ficar em isolamento pelo fato de ter que sair para garantir o básico para sobreviver.

Este momento, que muito se fala ser um momento de reflexão para a humanidade e o que estamos fazendo com ela, deixou mais evidentes as contradições do sistema capitalista com sua anti-cultura e seus anti-valores. Mas estas reflexões serão suficientes para nos impulsionar na construção de verdadeiras alternativas a esta sociabilidade pautada pelo mercado?

Acreditamos que está colocada para nós a possibilidade de nos reinventarmos como seres sociais, reconhecendo-nos como espécie humana, com uma nova referência de sociedade e de valores, que tenha o cuidado com a natureza e seus recursos em nossa prática cultural cotidiana.

O enfrentamento à covid-19 permitiu organizar muitas formas de solidariedade de classe, trouxe criatividade para superar o medo e o isolamento, mostrou a arte e a cultura como esse lugar necessário de respiro e de encontro, mesmo que virtual, e que precisam ser valorizadas e colocadas como dimensões estratégicas nessa reconstrução.

O que ficará de tudo isso pós-pandemia? Não se trata mais de uma escolha, mas sim de uma necessidade, sob o risco de deixarmos de existir. Precisamos nos reinventar nos entendermos como seres interligados, habitantes de um planeta, responsáveis pelo rumo que tomaremos enquanto humanidade.


Guê Oliveira, historiadora, especialista em Trabalho, Educação e Movimentos Sociais (EPSJV-Fiocruz/ ENFF), musicista e militante do MST.

Ana Manuela Chã, mestre em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (Unesp/ENFF) e do Coletivo de Cultura do MST.

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Edição: Elis Almeida