Rio Grande do Sul

Vacina

“A vacina é de extrema importância porque ela vai ajudar a salvar várias vidas”

A afirmação é de Carla Patricia Ribeiro, primeira indígena gaúcha a ser vacinada contra a covid-19

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Se a gente não tem saúde não temos força para correr atrás de nada, primeiro vem a saúde, depois a gente corre atrás do resto" - Felipe Dalla Valle/ Palácio Piratini

Com uma camiseta preta escrita na língua kaingang “Lute como ela/Lute como uma guerreira", Carla Patrícia Ribeiro foi a primeira indígena a ser vacinada no estado do Rio Grande do Sul, nesta segunda-feira (18). Honrada por representar todos os indígenas do estado, ela vê a vacina como esperança para combater a covid-19. “Ela vai ajudar a salvar várias vidas, porque já perdemos muitas pessoas nas aldeias, já perdemos muitos guerreiros, os nossos mais velhos”, afirma. 

Pertencente a etnia Kaingang, da Aldeia Fag Nhin, na Lomba do Pinheiro, um dos três bairros mais populosos de Porto Alegre, Carla, 32 anos, foi uma das cinco primeiras pessoas imunizadas no estado, em ato simbólico ocorrido no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), instituição pública e universitária. Juntamente com ela foram vacinadas Eoína Gonçalves Born, 99 anos, residente do Donna Care Lar Geriátrico, Joelma Kazimirski, 48 anos, auxiliar de higienização do Grupo Hospitalar Conceição, Jorge Amilton Hoher, médico chefe do serviço de Medicina Intensiva da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre a técnica em enfermagem do HCPA Aline Marques da Silva, de 40 anos. 

Mãe de duas meninas, Yasmim, 12 anos, e Kendô, que em dezembro completou 8 anos, Carla é casada com o cacique Samuel, há 14 anos. Agente de saúde indígena há 3 anos, atualmente ela está cursando técnico em Administração. “Tudo que eu sei sobre saúde não aprendi em curso algum, aprendi com cada indígena que mora nessa aldeia, com minha mãe, com as mulheres guerreiras.”  

Com pouco mais de 10 meses do coronavírus na Capital, a agente de saúde relata que a pandemia tem afetado muito a comunidade. Moradora da aldeia há 15 anos, ela conta que por conta da cultura de coletividade, o período de quarentena e isolamento tem sido bastante complicado. “Nós somos muito do coletivo, de nos reunirmos, ficarmos conversando, tirando um pouco do aprendizado da semana. Nos reunimos no centro cultural para ver as mulheres que fazem artesanato, os guerreiros, por isso para nós esse período foi muito difícil”, detalha, pontuando que por ser agente de saúde o cuidado tem sido redobrado. 

“Eu trabalho dentro da minha comunidade, visito casas todos os dias, depois tenho que retornar para minha, é bem complicado. Foi muito difícil para nós indígenas nos adaptarmos, a ficar cada um na sua casa, não poder nos reunir em uma roda de conversa, artesanato, foi muito difícil”, complementa. 

A aldeia em que vive a agente de saúde, é uma das 10 existentes em Porto Alegre, composta das três etnias – Kaingang, Charrua e Mbya-Guarani. Além da Lomba do Pinheiro há núcleos familiares nos bairros Safira, Agronomia, Jardim Protásio Alves, Ponta do Arado. Há também a comunidade indígena urbana do centro de referência Afro-indígena do RS, onde abriga diversas etnias. Também há no estado a etnia Xokleng, na cidade de São Francisco de Paula.


"Estou muito honrada por representar os indígenas do estado" / Felipe Dalla Valle/ Palácio Piratini

Aldeia passou por surto de contaminação 

Em junho do ano passado, a Aldeia Fag Nhin, de 272 indígenas, foi atingida por um forte surto, em que 58 indígenas foram contaminados com o novo coronavírus. Sem vítimas fatais, Carla diz que hoje a situação está bem melhor, e que todos estão bem de saúde. Ela comenta que nas demais aldeias a comunidade indígena está consciente sobre o risco da covid-19. Em sua avaliação, o surto ocorrido na sua aldeia serviu de exemplo para as outras aldeias levarem mais a sério o coronavírus, e ficarem em suas aldeias, em suas casas. “A maioria dos indígenas sobrevive de vendas dos seus artesanatos, e daí como a nossa aldeia teve esse surto, de certa forma, serviu de exemplo para as outras, porque alguns indígenas ainda saiam para vender. Acho que foi ai que começou todo surto”, comenta.

Sua filha mais nova, Kendô, foi uma das pessoas da aldeia que foram infectadas. Mãe e filha na ocasião ficaram 14 dias separadas. “A covid-19 foi a pior experiência de toda a minha vida, porque ficar longe da minha filha, no isolamento, foi muito doloroso. Você, como mãe, não ter nada que garanta que sua filha vai melhorar, que vai ter um remédio ou uma vacina, que ela vai ficar bem, isso é muito frustrante. É um desespero sem tamanho. Não tenho palavras para descrever aquele momento", recorda. Além da filha, os pais, a irmã e a sobrinha de Carla também foram infectados. “Eu, como agente de saúde, não tinha o que fazer, perdi o chão quando tudo isso aconteceu”, conta. 

Carla conta que foi a filha dela que deu forças para que seu desespero não fosse maior. “Toda vez que ela ligava, por vídeo chamada, dizia para eu não ficar triste, que tudo ia melhorar, que uma hora uma vacina, um remédio ia surgir para ela ficar boa. Essas coisas com o tempo foram me dando força. Ela não tinha noção da gravidade, mas eu sabia da gravidade que isso acarretava para quem tinha contraído. Mas graças a Deus ela, meus familiares e os demais da aldeia se recuperaram bem.”  

Para ela a vacina é de extrema importância porque ajudará a salvar várias vidas. “Já perdemos muitas pessoas na aldeias, já perdemos muitos guerreiros, os nossos mais velhos, que nos davam exemplo de tudo. Quando perdemos os nossos Kofas (nossos mais velhos), eles levam consigo toda uma sabedoria ancestral que nenhum museu nunca vai ter, e o quanto ele é importante para cada aldeia”, ressalta. “Espero que a partir de agora, com essa vacina chegando nenhuma vida mais se perca para essa doença. Acredito que daqui para frente as coisas tendem a melhorar”, complementa.

Carla destaca ainda que entre as bandeiras do povo indígena, além da demarcação das terras indígenas, está a melhoria da saúde dentro das aldeias, algo que sempre foi pedido. “Se a gente não tem saúde não temos força para correr atrás de nada, primeiro vem a saúde, depois a gente corre atrás do resto. A melhoria dos nossos postos de saúde, a gente conseguir profissionais que entendam a diferença de tratar um indígena dos brancos. Alguns profissionais começam a trabalhar pensando que é de um jeito e é de outra maneira. O que pedimos é respeito pela nossa cultura”, finaliza. 

Até o momento o estado do RS, de acordo com dados da Secretaria Estadual da Saúde, tem ao todo 1.507 indígenas que já foram infectados com o novo coronavírus. De acordo com o Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, o RS já perdeu 19 vidas indígenas para a covid-19. 


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Edição: Katia Marko