Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Pessoas Trans como sujeitos revolucionários

Ser trans é negar, em corpo, alma e luta, o patriarcado. É descumprir as regras essenciais do patriarcado

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"É nesse mundo diferente do atual, com um projeto popular, que podemos brilhar mais" - Cris Faga/NurPhoto/Getty Images

As pessoas trans estão em todos os lugares, ao mesmo tempo em que não estão. Estão em todas as épocas, sobrevivendo às tentativas de apagamento. ‘Estamos’ porque existimos, porque sobrevivemos; ‘não estamos’ porque não há reconhecimento, e alguns espaços numa sociedade capitalista e patriarcal são reservados só para quem “se encaixa”, para quem é “útil”.

Ser trans é negar, em corpo, alma e luta, o patriarcado. É descumprir as regras essenciais do patriarcado, cortando pela raiz o que nos prende a esse asco. Se a sociedade patriarcal define que um ser humano nascido com vagina é mulher e, portanto, deve “viver como uma mulher”, a pessoa trans vai dizer “não, eu nasci com vagina e sou um homem e vou viver como eu bem entender”. Não é um mero jogo de palavras: “ser homem” e “agir como homem” têm pesos diferentes na nossa sociedade. Nós sabemos muito bem o que um machista quer dizer quando ele fala que uma mulher “parece um homem”; ou o contrário, que um homem “parece uma mulher”.

Ser mulher e decidir “agir como homem” (seja por usar roupas ditas masculinas, por usar um palavreado grosso, por beijar mulheres etc.) é uma decisão política, assim como ter uma vagina e se identificar como homem também é. Desse universo de identidades não cis (cis sendo as pessoas que nasceram com vagina e se entendem como mulher; ou que nasceram com pênis e se entendem como homens), existem as travestis, homens e mulheres trans, pessoas não-binárias, transfemininas, transmasculinas, transviadas; todas podendo se incluir num grande guarda-chuva “trans”, ou, mesmo sem se identificar com o termo em si, recusar ser cis (para os propósitos deste texto, vou usar o termo trans para essas identidades divergentes).

Ser trans também é assimilação. O conceito de “passabilidade” é muito utilizado entre pessoas trans para denominar aqueles que “se passam como cis”, ou seja, uma mulher trans, que nasceu com pênis, mas que a maioria das pessoas que olha pra ela “não saberia dizer” que ela nasceu com pênis porque “parece uma mulher ‘de verdade’”, por exemplo. O oposto, quando uma pessoa “não passa como cis”, acontece quando essa mulher trans é automaticamente identificada como uma “mulher estranha” ou uma “mulher masculina” pelas pessoas que olham pra ela, e essas pessoas questionam se ela “realmente é uma mulher”.

Esse conceito é importante porque, se formos estendê-lo, podemos observar como até pessoas cis são afetadas. É bastante comum mulheres sapatão (ou caminhoneiras, como se identificam muitas lésbicas que não performam uma feminilidade convencional) serem barradas de banheiros femininos por "parecerem homens”. No geral, a passabilidade está fortemente relacionada a padrões de beleza e estética, o que acaba afetando corpos trans mais marginalizados. Esse ideal de beleza é diariamente reforçado pela mídia, publicidade, arte, cultura e por pessoas que supostamente nos “representam” nos espaços políticos e de fala.

E precisamente por conta da marginalização que devemos nos atentar principalmente à vida econômica de pessoas trans, ou seja, quando somos vistos como dejetos, objetos de uso e descarte, desprovidos de atenção, afeto, acompanhamento e cuidado. Pontuamos aqui como várias subjetividades sociais afetam esse grupo, o que vai desde o preconceito engessado na ideologia patriarcal dominante em nossa sociedade, se distribuindo por todas as camadas sociais a partir daí, até a impossibilidade de se relacionar com pessoas próximas por conta de uma condição de “não ser o normal”, nos isolando. Fato é que, além de o psicológico em si estar relacionado com o alto índice de suicídio da população trans (principalmente entre homens trans, segundo pesquisa nos EUA), esta também é vítima especial da precarização do trabalho, da informalidade, do exercício de trabalhos indesejados, do acesso à saúde, cultura e educação, quando deveriam estes ser direitos básicos assegurados e obedecidos.

O projeto político do neoliberalismo é empobrecer ainda mais a população ao mesmo tempo em que retira dela o acesso aos direitos mais básicos, e quem mais sofre com isso é quem já tá lá embaixo, no limbo.

Por conta de seu contexto de exclusão – das escolas, dos trabalhos formais, dos espaços públicos e inclusive de sua família – a maior parte das pessoas trans recorre à prostitutção como principal fonte de renda, muito em função do distanciamento do próprio contexto familiar, por não conseguir aguentar a peso do preconceito e da humilhação. Essa mesma parcela da população trans, pobre, também coincide com dados de etnia e gênero quando o assunto é violência: a maioria esmagadora dos assassinatos envolvendo população T acontece com mulheres trans negras e pobres em situações de trabalho sexual, que por acaso representa a maior parte das travestis/trans no Brasil, como demonstram os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

Refletir sobre uma nova vida é fundamental

Pessoas trans são sistematicamente varridas sob o tapete, quando não são jogadas num lixão a céu aberto sem pudor nenhum. O que é que causa esse ódio aos nossos corpos? Já vimos como o patriarcado é uma estrutura de poder que direciona o lugar das pessoas de acordo com o gênero delas, sempre a partir do pressuposto do domínio do homem ideal (de pênis) sobre a mulher submissa (de vagina). Mas o patriarcado, sozinho, não explica todos os conflitos e contradições do Brasil, de 1500 ao século XXI. Tanto o racismo, o colonialismo e o capitalismo moldam, em conjunto, a superestrutura que é a sociedade brasileira, que, por sua vez, coloca as pessoas pobres, pretas, faveladas e trans na rua.

Nossa conjuntura atual, encabeçada pelo fascismo ultraliberal de Bolsonaro e Paulo Guedes, não só é representativa da dinâmica de crises econômico-políticas do capital como aprofunda todas as contradições que abalam as vidas do povo brasileiro. A crise financeira de 2008 no norte global, aliada à despolitização proporcionada, sobretudo, por vários gabinetes do ódio de extrema-direita (parcialmente herdados pelas estratégias bolsonaristas de divulgações de informações falsas), culminou no golpe de 2016, que desde Temer começou uma série de contrarreformas, diminuindo a renda dos brasileiros (sem aumento real do salário mínimo e com alta dos preços de produtos básicos), afastando multinacionais de setores estratégicos do Brasil (que no contexto de crise em que estamos não é um bom sinal), privatizando empresas públicas históricas e vendendo elas a preços risíveis, impedindo o acesso a serviços pela população ao mesmo tempo em que sucateia os serviços públicos.

A título de exemplo, um tal serviço público é o Sistema Único de Saúde (SUS), de extrema importância para o primeiro acesso de pessoas trans a cuidados de saúde hormonal, física e psicológica. O SUS foi uma conquista de movimentos sociais, e as políticas públicas que contribuem para a falta de investimento nele são fruto dos interesses do capital, representados pela direita, que não vê motivos para investir na saúde e garantir os direitos da população – basta conferir quais partidos e políticos votaram a favor da PEC do teto de gastos (que congelou os gastos públicos por 20 anos) e entender que grupos e grandes empresas eles representam.

Pensemos: se a maioria das pessoas trans são pobres, quantas delas conseguem pagar por cirurgia, hormonização e assistência médica e psicológica privadas? Esses recursos devem e podem muito bem ser gratuitos, pois já o são e estão disponíveis em várias cidades brasileiras de forma assistiva. Mas, liderados por alianças liberais-conservadoras, existem projetos de desmonte de serviços como esse, que muitas vezes são uns dos poucos espaços aos quais pessoas trans podem recorrer para serem acolhidas. O projeto político do neoliberalismo é empobrecer ainda mais a população ao mesmo tempo em que retira dela o acesso aos direitos mais básicos, e quem mais sofre com isso é quem já tá lá embaixo, no limbo.

Temos então que a situação de vida da maioria das pessoas trans está sujeita a essas estruturas que atuam em conjunto, ora de modo mascarado, ora escancarado. Para que consigamos lutar por vidas dignas, precisamos entender nosso lugar nessa organização social, precisamos perceber que nós, pessoas trans trabalhadoras e estudantes, fazemos parte de uma classe inteira que é subjugada pelo capitalismo.

Para vencer essa batalha, para garantir nosso bem-estar e nosso futuro, precisamos nos aliar aos trabalhadores cis e fazê-los entender que a nossa luta é a luta deles também. Além disso, precisamos convencer a nós mesmes de que, se o mundo atual possui um grande arranjo social que nos oprime, é preciso construir uma nova sociedade, destruindo o cis-hetero-patriarcado e o capitalismo, bem como as estruturas adjacentes do racismo e do colonialismo.

A partir disso voltamos aos questionamentos sobre o que é ser trans – e para quem e para que importamos. Nós adoramos usar o prefixo “trans-” para destacar características de nossas vivências: transformadoras, transcendentais, transgressoras. Parando pra pensar nesse termo, ele remete a mudanças, ao que está ‘além’ daquilo que se tem ou tinha antes. Trata-se de olhar para uma realidade que ultrapassa o que está posto e explícito, de imaginar um mundo não antes visto, tendo como base as nossas experiências, os nossos corpos. Pensar em uma epistemologia trans é pensar numa outra forma de se relacionar – com nós mesmes e com as outras pessoas. Pensar numa sociedade ‘além’ do capitalismo e do colonialismo também se encaixa nesse entendimento de ‘que mundo queremos’.

Refletir sobre uma nova vida é fundamental para a prática revolucionária, e não por acaso é o tipo de reflexão com que pessoas trans estão acostumadas a arcar: para descobrir uma existência pós-transição (por ‘transição’ entende-se o momento em que uma pessoa trans ‘decide’ viver como si mesma). Mudar as vidas nossas e de nossus irmanes é mudar o mundo.

Para alcançar esse mundo a gente precisa de muito esforço: esforço mental, espiritual, intelectual, teórico; e esforço de organização, de inclusão, de solidariedade, de prática revolucionária, das formas de educar, amar e perceber. A importância da reflexão sobre nossa história e nossas condições concretas unida a táticas de sobrevivência e planejamento para um futuro popular é uma grande contribuição que pessoas trans podem dar para a criação desse novo mundo. É nesse mundo diferente do atual, com um projeto popular, que podemos brilhar mais.

*Anna Sanguine, mulher trans, lésbica, comunista, escritora, tradutora, estudante de Letras na UFRGS e militante do Levante Popular da Juventude.

*Nati Castro Fernandes, travesti, estudante de Arquitetura e Urbanismo e Técnico em Paisagismo na UFSM e militante do Levante Popular da Juventude.


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Edição: Katia Marko