Rio Grande do Sul

Coluna

Carta aberta ao prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo

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Com UTIs lotadas e alto número de mortes, Porto Alegre é hoje um dos epicentros mundiais da pandemia - Silvio Avila/HCPA
Cabe ao Estado cumprir sua missão maior que é a de promover a vida de seus cidadãos

Recebi do prefeito Sebastião Melo, enviada pelo seu WhatsApp pessoal, a mensagem abaixo e lhe enviei a resposta que também transcrevo. Neste artigo, acrescento às minhas considerações três sugestões que recebi de amigos e que incorporo ao texto original, na esperança de contribuir para que o prefeito reflita e sobre as melhores formas de agir para salvar as vidas dos porto-alegrenses.

O prefeito de Porto Alegre e os de outros municípios, além de muitos governadores, têm diante de si o grande desafio de criar condições para que as medidas de isolamento sanitário, hoje comprovadamente mais eficazes e internacionalmente reconhecidas para combater o corona vírus, sejam adotadas.

Sem garantir condições materiais mínimas para que empresas e famílias realizem o isolamento social, o que veremos será a parte da população sem condições de sobrevivência atacando as autoridades e as pessoas que defendem o isolamento social e, ao mesmo tempo, o número de infectados e mortos subindo sem controle.

Estamos vendo uma parte da população se colocar contra a outra, enquanto o governo federal se exime de cumprir seu papel de garantir o auxílio necessário para famílias e empresas, principalmente as pequenas e médias. Cabe aos governos estaduais e municipais, dentro de suas possibilidades, buscar formas de realizar este papel.

Começo pela transcrição da mensagem do prefeito Sebastião Melo:

“A democracia é o império da lei, mas quando um juiz interfere em decisões que são de competência exclusiva do poder executivo, está tudo errado.

Não estamos medindo esforços para salvar vidas, com a ampliação de leitos, busca pela vacina, acolhimento nas unidades de saúde e defesa dos protocolos sanitários.

É assim que poderemos, com muita responsabilidade e equilíbrio, retomar as atividades econômicas.

Tenho profundas divergências em relação às novas medidas apresentadas pelo Governo do Estado, especialmente com o ônus de passar para os municípios a fiscalização sobre as regras impostas e a proibição das atividades nos finais de semana.

Queremos estender o horário dos supermercados para evitar aglomerações e flexibilizar as regras para o setor da gastronomia, um dos mais prejudicados com os efeitos da crise causada pela pandemia.

Somos o governo do bom senso e do equilíbrio. Sabemos que as atividades econômicas, operando com os devidos protocolos sanitários, não são responsáveis por espalhar o vírus.

Hoje, muitos setores já estão funcionando, mas os pequenos negócios seguem fechados. Isso é injusto. Muitos já quebraram e outros tantos ainda vão quebrar, se a situação não mudar. São trabalhadores e famílias que perderão o seu sustento.

Por isso, queremos preservar vidas sem precisar proibir as pessoas de trabalhar. Isso é dignidade.
Abraço fraterno,

SEBASTIÃO MELO”

A seguir, minha resposta ao prefeito Sebastião Melo:

Prezado Sebastião, discordo profundamente da sua visão. De acordo com inúmeros especialistas, não se combate o corona vírus com o aumento de leitos hospitalares e de UTIs. O combate precisa se focar nas ações voltadas para evitar a contaminação e as internações, pois quando elas ocorrem a letalidade é alta e as sequelas devastadoras, porque são extremamente debilitantes. Impedir a contaminação, sempre segundo os ensinamentos de muitos especialistas, requer duas atitudes fundamentais: 1) a vacinação em larga escala e 2) o isolamento social, agora elevado à condição de lockdown, dada a gravidade e a velocidade da contaminação e a alta morbilidade e debilitação permanente dos afetados.

Sabemos todos que a vacinação está atrasada e não será realizada na velocidade e na extensão necessárias nos próximos meses, quem sabe até mesmo anos, devido à incúria do governo federal. Resta-nos, portanto, promover de imediato o lockdown, que é uma ação cabível e de competência também dos governadores estaduais e prefeitos municipais.

Além disso, muitos e muitos especialistas das áreas médicas, econômicas, políticas e sociais já deixaram claro a incongruência da oposição economia x saúde ou vidas humanas. Sem a salvação das vidas e o controle da pandemia não haverá a recuperação da economia. Quanto mais profunda for a pandemia, quanto mais mortes e sequelas promover, mais demorada e menos efetiva será a retomada da economia.

Decretar o lockdown, entretanto, requer medidas governamentais voltadas a tornar possível a sua realização, pois a população precisa comer e alimentar seus filhos e os empresários precisam manter seus negócios e salvá-los da falência.

Como cientista social e militante político e social, ouso lhe fazer algumas sugestões de procedimentos que estão no âmbito de competência e de possibilidades dos governos estaduais e municipais que o senhor, como prefeito de Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul, hoje um dos epicentros mundiais da pandemia e uma das cinco capitais mais dinâmicas do país, tem competência e força política para realizar.

1) criar e instituir uma moeda social com a qual as pessoas possam comprar alimentos e prover sua subsistência, como o pagamento de botijões de gás e outros gastos domésticos;

2) decretar uma moratória por tempo equivalente ao do isolamento social necessário, com a postergação do pagamento de impostos municipais e da suspensão das tarifas dos serviços públicos;

3) decretar lockdown por 3 semanas (21 dias) e

4) formar consórcio com outros prefeitos municipais e governadores estaduais para a aquisição de vacinas em quantidade suficiente para vacinar rapidamente toda a população.

Fico à sua inteira disposição para aprofundar a conversa e para colaborar com a viabilização dessas atividades.

Aceite meu abraço.
Benedito Tadeu César


Por fim, acrescento, tal como as recebi, as considerações e adendos enviadas por amigos, depois que eu já tinha enviado a resposta ao prefeito Melo.

1) nenhum ente público possui tal grau de autonomia como o pretendido pelo prefeito. Mesmo a decisão judicial está sujeita a controle no âmbito recursal. Além do Primeiro Grau, há outras instâncias que a revisarão ou manterão, de forma monocrática ou colegiada. Numa democracia, de regra os litígios são compostos pelos tribunais constitucionais, mesmo entre as pessoas jurídicas de direito público ou entre estas e a cidadania. Não é por acaso que o capítulo dos Direitos e Garantias Individuais da Constituição visa a defender a cidadania das ilegalidades eventualmente cometidas pelo Poder Público. Senão é o arbítrio e a ditadura. Mais um detalhe: a cogestão defendida pelo prefeito foi garantida por decisão judicial do STF. Ingerência deste tribunal na autonomia administrativa do governo federal?

2) seria muito importante incorporar medidas de ação direta contra a fome. O Estado não pode ser um mero espectador do desastre. As reservas financeiras do Estado não são de propriedade do governo e, muito menos, do mercado financeiro. Medida de ação direta seria comprar e distribuir alimentos, de forma racional, para quem necessite;

3) acho que é preciso criar um auxílio emergencial municipal ou regional, pois o povo está passando fome e o valor nacional é muito pequeno.

4) só propondo incluir nas propostas apresentadas testagem em massa e busca ativa de casos de covid-19;

5) ouso sugerir uma quinta medida: se articular com outras prefeituras e governos do estado e pressionar ao máximo pela implementação de uma política nacional e unificada de vacinação que siga rigorosamente as orientações da OMS e dos principais especialistas da área no Brasil.

Como se vê, medidas eficazes e factíveis a serem tomadas existem, basta que haja disposição e a compreensão de que cabe ao Estado, em suas diversas instâncias e níveis de poder, cumprir sua missão maior que é a de promover a vida de seus cidadãos. Nas situações de crise, o Estado não pode se omitir.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira