Rio Grande do Sul

Gentrificação

MPF defende solução coletiva para famílias da Vila Nazaré e aponta violações

As famílias que permanecem na área aceitam sair, mas exigem uma indenização justa e condições de vida básicas

Sul 21 |
As cerca de 70 famílias que permanecem na área estão vivendo em meio aos escombros do que já foi demolido - Roberto Witter

O Rio Grande do Sul possui 497 municípios. Deste total, quase a metade (231), tem uma população inferior a 5 mil habitantes, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir dos dados do Censo de 2010. Agora, imagine chegar num município com 5 mil habitantes e comunicar que toda a sua população será removida para outra área, sem garantia de condições de trabalho e geração de renda e sem uma infraestrutura adequada de saúde, educação e segurança. Essa é a imagem escolhida pelo procurador Enrico Rodrigues de Freitas, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, para falar da situação vivida pelas famílias da Vila Nazaré, que estão sendo removidas da área onde viviam há décadas por conta das obras de ampliação da pista do Aeroporto Internacional de Porto Alegre. “Coloque-se no lugar dessas pessoas e pense se é uma solução aceitável?”, questiona o procurador, lembrando que nesta comunidade não há famílias de classe media ou classe alta, mas só famílias humildes.

Cerca de 1300 famílias viviam na Nazaré, totalizando em torno de 5 mil pessoas que foram ou estão sendo impactadas pelas obras sob responsabilidade da Fraport, empresa alemã que assumiu a administração do aeroporto de Porto Alegre. Do total das famílias que viviam na área, restam apenas cerca de 70 famílias que não aceitam, até aqui, as condições oferecidas pela Fraport para sair da área. A maioria das famílias já foi removida para os empreendimentos Senhor do Bom Fim e Irmãos Maristas em um processo marcado por uma série de problemas relacionados à infraestrutura, à possibilidade de trabalho e às condições de segurança oferecidas a toda uma comunidade que se viu obrigada a deixar o território onde vivia há décadas. As famílias que seguem resistindo na área estão vivendo em um verdadeiro cenário de guerra, em meio aos escombros dos imóveis já desocupados, com acúmulo de lixo, faltas de água e luz constantes e serviços públicos praticamente todos já desativados.


Enrico Rodrigues de Freitas: é como se a população de uma cidade inteira do RS estivesse sendo removida / Luiza Castro/ Sul21


Estratégia de pulverizar negociações atrapalha celeridade, diz procurador

A Fraport está movendo ações de reintegração de posse contra as famílias que ainda estão vivendo na Vila Nazaré e procurando fechar acordos de indenização individuais com as famílias. O Ministério Público Federal ingressou, na Justiça Federal, com uma ação civil pública reivindicando que esse processo de negociação se dê no âmbito da 26ª Vara da Justiça Federal e/ou do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscon) para “promover mediação e conciliação no plano coletivo, de critérios uniformes e isonômicos de alternativa habitacional às famílias”. A Fraport reclama do andamento no processo de negociação e afirma que ele provocará um atraso na entrega das obras do aeroporto. Na avaliação do procurador Enrico Rodrigues de Freitas, porém, a estratégia adotada pela empresa de pulverizar as negociações individualmente não vem contribuindo para a celeridade processual.

A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão identifica uma série de violações de direitos envolvida em todo o processo de remoção das famílias da Vila Nazaré. Essas violações são de várias ordens. Do total de famílias ainda remanescentes na área, há um grupo de 10 que estão sofrendo restrições cadastrais junto à Caixa Econômica Federal em função de sua renda. O procurador Enrico Rodrigues de Freitas oficiou a Caixa esta semana questionando o motivo apresentado pela instituição para não aceitar o cadastro. “Essas pessoas não estão se cadastrando para o Minha Casa, Minha Vida, mas estão sendo reassentadas por um programa governamental”, assinala o Procurador. Outro problema identificado pelo MPF foi que as famílias que estão indo para os empreendimentos (Senhor do Bom Fim e Irmãos Maristas) não estão recebendo a posse do imóvel. Elas só terão o imóvel liberado em seu nome após um período de dez anos. “Se fosse o Minha Casa, Minha Vida, tudo bem, mas estamos falando de um reassentamento, onde muitas dessas pessoas estão sendo ameaçadas ou mesmo expulsas por questões envolvendo guerra de facções do tráfico. Então, elas perderam a casa que tinham na Nazaré e estão presas a um prazo de dez anos em um imóvel onde talvez nem possam ficar?”, questiona Enrico de Freitas.


Proprietários de pequenos comércios na Nazaré tiveram negado pedido de liberação para imóvel comercial no Irmãos Maristas / Roberto Witter


“Por uma solução em âmbito de negociação coletiva”

A falta de estrutura de saúde, de educação e de condições de trabalho e renda são outros problemas recorrentes. Cerca de 30% das famílias que viviam na Nazaré, assinala ainda o procurador, viviam da reciclagem de resíduos, atividade que ocupava o pátio de suas casas. “Elas estão indo morar em apartamentos de 40 metros quadrados, sem pátio, onde não podem seguir com essa atividade, o que significa perda de capacidade de gerar renda”, diz Enrico de Freitas. Na avaliação do procurador, o atraso no processo, reclamado pela Fraport, não é culpa dos moradores, mas sim de uma estratégia de negociação equivocada. O ideal, segundo ele, seria adotar o mesmo modelo adotado na negociação com as famílias removidas em função das obras na nova ponte do Guaíba. Essas famílias receberam uma oferta de R$ 150 mil reais de indenização (para famílias com até quatro pessoas) ou de R$ 178 mil reais (para famílias com mais de quatro pessoas).

O MP Federal defende, para o caso, “uma solução em âmbito de negociação coletiva, com critérios uniformes, isonômicos e públicos que resguardem o direito à moradia”, lembrando que a Fraport age, no caso, por delegação do Estado brasileiro, “devendo adotar postura tanto processual como de solução habitacional compatível com uma solução de natureza estatal”. Nas audiências de conciliação, observa ainda Enrico de Freitas, a Fraport tem se limitado ao oferecimento de uma ajuda de custo no valor de R$ 15 mil reais, para imediata desocupação, alem de um voucher no valor de R$ 2 mil reais. No entanto, assinala o procurador, no início de março, nove dias depois de fazer oferta no valor de R$ 17 mil reais, a empresa pagou R$ 100 mil reais para um morador sair da área, sem levar essa informação aos autos. Somente após ser intimada a se manifestar sobre o caso, a Fraport confirmou a celebração do acordo individual e do pagamento, sem a participação da defesa do referido morador. “Não há como ter uma negociação eficaz com esse tipo de conduta”, afirma o procurador.

A ação civil pública da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão segue pendente de análise pela Justiça Federal. Essa ação defende a construção de uma solução habitacional coletiva aos moradores da Vila Nazaré, que não importe retrocesso social em relação a outros direitos sociais, como trabalho, saúde, educação e segurança pública. Além disso, defende um processo transparente de desocupação e de tratamento isonômico a todos os moradores, sem a imposição de remoções forçadas que violem direitos dos moradores.


Famílias que permanecem na área estão vivendo em condições precárias / Cícero Damim


Segurança é uma das principais preocupações

Para o advogado Cícero Pimentel Damim, representante de 34 famílias que ainda moram na área, a situação envolvendo a Vila Nazaré traz à tona a necessidade de um enfoque mais humanitário neste tipo de processo de desocupação. Segundo ele, as famílias que permanecem na área aceitam sair, mas exigem uma indenização justa e condições de vida básicas nas futuras moradias. A segurança é uma das principais preocupações para muitas famílias. Há moradores com parentes que já estiveram presos, relata o advogado, e uma mudança de endereço para uma área onde há guerra de facções acaba representando até risco de vida.

Outro problema é o tamanho dos novos apartamentos. A ausência de pátio é um problema para quem trabalhava com reciclagem e para quem tem animais de estimação. Há casos de famílias com até oito cachorros e gatos, o que torna impraticável a mudança para um apartamento de pouco mais de 40 metros quadrados, sem pátio. Além disso, proprietários de pequenos comércios na Nazaré tiveram negado pedido de liberação para imóvel comercial no Irmãos Maristas, por exemplo, o que significa a inviabilização de sua fonte de renda. E ainda há a questão dos laços sociais e afetivos. “A maioria das pessoas reside na Vila Nazaré há mais de 30 anos. Há idosos que não se adaptariam a uma nova vida tão distante do local onde viveram por anos e não desejam se mudar para o Rubem Berta, por exemplo”, diz o advogado.

Fraport: Realocação é um “fator externo” à gestão da empresa

Em nota divulgada nesta última semana, a Fraport afirma que não é possível terminar as obras da ampliação da pista do aeroporto em função da permanência de cerca de 70 famílias na área. “Como a realocação dessas pessoas é um fator externo à gestão da Fraport Brasil, o prazo para a entrega da pista, estipulado pela Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) para agosto de 2022, provavelmente será revisto”, afirma a nota. Segundo a Prefeitura de Porto Alegre, 14 famílias estão em processo de reassentamento e devem sair da área nas próximas semanas. “As outras 56 famílias se recusam a sair da Vila Nazaré e seus casos estão sendo tratados em audiências de conciliação com a Justiça Federal.” A atual gestão, diz ainda a Prefeitura, está empenhada em finalizar o processo de reassentamento de todas as famílias da Vila Nazaré.

Edição: Sul 21