Rio Grande do Sul

Combate à violência

Falar é o principal caminho para a prevenção à violência e exploração infanto-juvenil

Entre 2010 a 2018, o RS registrou 27.236 denúncias de exploração e violência infanto-juvenil; saiba como denunciar

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Existe uma negação da sociedade em reconhecer a realidade da violência dentro dos lares", destaca a coordenadora do Coletivo de Proteção a Infância Voz Materna - Marcello Casal Jr/ABR

“A criança com três anos de idade retorna da visita paterna onde ficou no final de semana, se queixa para mãe de dor no bumbum, chora muito de dor. A mãe leva ao atendimento médico onde foram constatados os sinais de abuso, foram acompanhadas do conselho tutelar que fez todos os registros e encaminhamentos (...) Foram feitas perícias e todo o processo criminal, foi confirmado o abuso, mas não o autor. Por prudência o MPRS determinou o afastamento paterno e o processo foi arquivado. Quatro anos depois, o pai abusador entra com processo acusando a mãe de alienação parental e recupera o direito à convivência com a criança, então com sete anos, com direito a pernoite e sem acompanhante. Novos relatos de abuso da criança, com o pai passando a mão em suas partes íntimas dentro da calcinha e na região do seio, 'brincando' de fazer cócegas.”

A história de Tábata (nome fictício para preservar a identidade), relatada pela educadora especial Sibele Lemos, coordenadora do Coletivo de Proteção a Infância Voz Materna, faz parte de uma triste estatística: a das crianças que sofrem com a violência, exploração e abuso infanto-juvenil.

De acordo com a diretora da Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca), a delegada Eliana Parahyba Lopes, 85,7% das vítimas desse tipo de crime, no RS, são do sexo feminino. Em 84,1% dos casos o autor era conhecido da vítima. “Isso sugere um grave contexto de violência intrafamiliar, no qual crianças e adolescentes são vitimados por familiares ou pessoas de confiança da família, muitas vezes por pessoas com quem tinham algum vínculo de confiança”, afirma a delegada.

Conforme destaca Sibele, as crianças e adolescentes abusadas sexualmente estão em todas as classes sociais. São meninos e meninas na mesma proporção de violação, embora o número de denúncias de meninos seja menor, pondera. “Via de regra, é demonstrado nas pesquisas que o abusador está dentro de casa, sendo em sua maioria o pai biológico, seguido pelo padrasto. Existe uma negação da sociedade em reconhecer a realidade da violência dentro dos lares, lembrando que somos o 5º país em números de feminicídios e que as pesquisas vêm demonstrando há muitos anos que o pai biológico é maior violador sexual”, aponta.  

Pesquisas e dados mostram que a violência sexual intrafamiliar diz respeito a questões relacionadas a gênero, culturais, de machismo e patriarcalismo, relata a psicóloga Rosângela Machado Moreira, coordenadora do Comitê Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (CEEVSCA/RS), que é vinculado à Secretaria de Justiça. Ela explica que há várias questões de fundo para esse tipo de violência. “A própria questão relacionada à criança como objeto do próprio desejo, a figura da mulher também no caso da violência contra a criança e adolescente do sexo feminino. São várias questões sócio-históricas que nos ajudam entender um pouco esses dados”, expõe. 

O Brasil tem uma data para lembrar as vítimas desse tipo de crime. Em 18 de maio de 1973, Araceli Cabrera Sánchez Crespo, de oito anos de idade, foi sequestrada, estuprada e morta, enquanto era mantida em cativeiro por membros de influentes famílias do Espírito Santo. O episódio trágico fez com que, 27 anos depois, através da Lei 9.970, fosse criado o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que 58,78% das vítimas de violência sexual no Brasil tinham no máximo 13 anos, em 2019, ou seja, 38 mil crianças, sendo a maioria do sexo feminino. 

Segundo dados do sistema SINAM do Ministério da Saúde, no Rio Grande do Sul, entre 2015 e 2020, foram notificados 15.020 casos de violência sexual. Destes, 5.039 (33,5%) foram contra crianças e 6.397 (42,6%) contra adolescentes, representando 76,1% dos casos notificados. Das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, 9.470 (82,8%) eram do sexo feminino e 1.966 (17,2%), do sexo masculino; 20,4%, da raça/cor da pele negra ou parda, e 71,6% dos casos ocorreram na residência da vítima.

As formas de violência e exploração mais recorrentes são tanto as sexuais (estupros de vulnerável) quanto crimes familiares (abandonos, maus tratos, lesões corporais), como também aquelas cometidas para auferir alguma contrapartida financeira. 

Ainda dentro do contexto da violência contra crianças e adolescentes, destaca-se também a pedofilia e o desaparecimento infantil. Segundo expõe Eliana, as investigações envolvendo pedofilia são complexas e duram alguns meses. “Sem dúvida, há muito ainda a ser feito, mas podemos dizer que a cibereducação é a ferramenta mais adequada de prevenção que podemos adotar. Importante chamar a atenção para o papel dos pais nessas situações, os quais devem estar sempre alertas e vigilantes, inclusive, fazendo uso de dispositivos que assegurem o controle parental.”

Sobre a questão do desaparecimento Infantil, a delegada afirma que é tão importante quanto a violência sexual infantil, porém ainda mais complexo e emblemático. “O desaparecimento nos conduz a um universo de possibilidades e causas (desde uma fuga voluntária do lar, por maus tratos e abusos, como um desaparecimento forçado, que é o mais assustador às famílias e às autoridades, pois acaba sendo um meio para outros delitos envolvendo redes de pedofilia, tráfico de órgãos, prostituição.”


"As privações decorrentes do isolamento e o estresse da pandemia corroboraram para tornar os momentos em família mais intensos" / Arquivo/Agência Brasil

Uma violência absolutamente subnotificada

No estado gaúcho, de acordo com os dados do Observatório Estadual da Segurança Pública, o número de ocorrências de abusos contra vítimas de zero a 17 anos, levando em conta os registros de “exploração sexual infanto-juvenil”, “estupro” e “estupro de vulnerável”, caiu 13% em 2020 na comparação com o ano anterior, de 3.291 casos para 2.848. Na comparação entre janeiro e abril deste ano com o mesmo período de 2020, os números também apontam redução, de 993 ocorrências para 904 (-9%).

Apesar do decréscimo observado de 2020 para 2021 nos registros tanto de crimes sexuais quanto de maus tratos, Eliana ressalta que as estatísticas não são motivo de alegria. “Estamos vivendo um período diferente a tudo que já passamos e, portanto, não temos nem como compará-lo a períodos anteriores. Somente os dados estatísticos de redução não podem ser comemorados ainda, de forma isolada. É necessário que essa leitura seja feita com cautela e com base em outros fatores também, o que só vamos poder avaliar, de forma fidedigna, quando a situação voltar à normalidade”, avalia.

Assim como acontece nos casos de violência contra as mulheres, na violência no que diz respeito à crianças e adolescentes, a subnotificação é um dos grandes problemas e desafios. Pesquisas apontam que apenas 10% das situações de violência sexual chegam ao conhecimento da polícia. 

Enquanto os dados levantados pelo Ministério da Saúde apontam que entre 2010 a 2020 foram notificados 15.020 casos de violência sexual no RS, os dados da Segurança Pública do estado revelam que no período entre 2010 e 2018 foram 27.236. “Isso corrobora quando falamos da subnotificação. E aí reforçando que durante a pandemia já temos lido estudos que mostram o aumento dos riscos de crianças e adolescentes sofrerem violência, incluindo a sexual”, afirma Rosângela. 

Sibele acredita que os números de subnotificações estejam presentes nas camadas da população mais vulneráveis, por conta da dependência econômica do abusador ou mesmo da questão cultural, que admite que homens devem e podem ter acesso total sobre os corpos de mulheres e crianças. “O medo de uma violência maior, feminicídio ou infanticídio, também é um fator de extrema relevância, e aí que está a importância da informação e redes de apoio e acolhimento efetivas, que infelizmente não se identifica até o presente momento.”

Eliana complementa dizendo que geralmente o agressor tem um poder, um controle sobre a criança e, muitas vezes, até sobre o outro adulto que mora junto na residência, como a mãe da vítima. “Este controle pode ser de qualquer gênero, mas sobretudo financeiro. Todos acabam ficando reféns dessa violência calados e com medo de revelar os abusos. Assim, a maioria dos casos de violência contra a criança ocorre em casa, por algum familiar ou pessoa próxima. Todavia, se o delito sexual envolve contrapartida pecuniária, observa-se que o autor dos fatos pode assumir outro perfil que não somente aquele do convívio da vítima”, detalha. 

Nesse período de pandemia, outro fator que acaba contribuindo com as subnotificações é a falta da convívio escolar. Em uma pesquisa diagnóstica, divulgada pelo Sul21, com escolas fechadas, as denúncias de violência sexual contra crianças em Porto Alegre diminuíram.

“Não há dúvidas de que a escola é um lugar de proteção das crianças, visto que as professoras, monitoras, profissionais em geral, querendo ou não, acompanham, veem e convivem com os estudantes (crianças e adolescentes) todos os dias e, estando longe, fica complicado de se visualizar e perceber algum sinal mais evidente de que ela esteja sofrendo algum tipo de violência. Assim, o fato de as crianças estarem sem aulas presenciais interfere no ciclo de proteção que ela poderia ter nesta fase da vida”, afirma a delegada Eliana, destacando que o tempo de convivência maior entre a criança e o adulto ficou maior.

“Infelizmente, as privações decorrentes do isolamento e o estresse da pandemia corroboraram para tornar os momentos em família mais intensos e, por vezes, o adulto agressor comete o crime (não somente o sexual, como também os maus tratos, lesão corporal) como escapes de descontrole, de raiva, justamente em desfavor do mais indefeso”, complementa.


Em mais de 80% dos casos a violência é praticada contra meninas / Getty Images

Fique atento aos sinais 

Por muitos anos, Rosângela acompanhou crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. De acordo com ela, há um sofrimento obviamente agudo após a situação e há sofrimentos que duram para vida toda, que deixam marcas, traumas e consequências também para vida toda. “Eles se manifestam nos relacionamentos interpessoais, afetivos, na relação de confiança que se estabelece com as demais pessoas. Na dificuldade de confiar, de estabelecer um vínculo, baixa autoestima, que acaba sendo na maioria dos casos muito presente justamente pela situação de invasão do seu corpo, uma extrema violência sobre o seu corpo, sobre o que é absolutamente íntimo, sua sexualidade”, aponta. 

O Coletivo de Proteção a Infância Voz Materna também acompanha casos de relatos feitos por mães de crianças e adolescentes. Segundo Sibele, as manifestações de que a violência está acontecendo se dão através de diversas formas de linguagem, que vão desde a fala, com relatos usando vocabulário que não estão de acordo com a idade e as suas vivências naturais à manifestações corporais. Ela se reflete na agressividade em suas brincadeiras, dificuldades em lidar com as frustrações, choros, silêncios, isolamentos, alterações nos comportamentos como perda de apetite ou aumento excessivo de apetite, ansiedade, voltar a fazer xixi durante o dia ou a noite quando já havia controlado, terror noturno, rejeição ao toque (abraço), ao contato, tristeza, através dos desenhos, brincadeiras. “Sinais existem muitos e eles estão referendados em pesquisas científicas e o nome é violência e abuso sexual contra crianças.”

Há também, destacam as coordenadoras, o comportamento de automutilação, assim como comportamento suicida. “Questões de quadros depressivos, de transtornos mentais que podem se instalar a partir dessas vivências, obviamente levando sempre em conta o ambiente e as possibilidades de suporte que essa vítima tenha depois do ocorrido. Sempre é de muito sofrimento, isso não há dúvida, que segue por toda vida, toda história”, complementa Rosângela.  

Rede de proteção 

Na avaliação de Sibele, o RS carece de pesquisas e dados sobre a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes. Para ela, os órgãos que deveriam proteger e cobrar políticas públicas fingem que o problema não existe. “Como movimento social, conhecemos o fluxo da rede que deveria ser de proteção, mas que na prática são perpetuadores das violências sofridas pelas crianças e adolescentes vítimas, pois não acreditam nos testemunhos e banalizam a realidade violenta que vivenciam. Com esse 'protocolo' aproveitam-se das falhas do próprio Estado em proteger e identificar casos de violência e abuso sexual infantil, para mascarar os números reais de casos, já que casos inconclusivos acabam sendo registrados, em órgãos como o Conselho Tutelar, como falsas denúncias”, relata. Ela destaca o papel do Judiciário e o machismo existente neste sistema, que segundo ela segue protegendo a manutenção do sistema patriarcal que dá a propriedade dos corpos aos homens. 

“Querer romper esse sistema é visto como crime e, no julgamento desse crime, aciona-se todos os preconceitos e estereótipos relacionados às mulheres e crianças. O mais comum sendo que toda mulher é louca e toda criança mente”, diz. 

Desde 2017 existe a chamada lei da escuta, Lei 13.431, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Ela orienta que as vítimas ou testemunhas sejam ouvidas uma única vez para que não haja revitimização por parte dos próprios órgãos do sistema de garantia de direito.  

“A importância desse sistema ser implantado é um desafio bem grande, porque a rede do estado e cada rede municipal têm muitos entraves, fragilidades, precariedades, pouco investimento por parte dos governos, isso aumenta demais os desafios”, destaca a coordenadora Rosângela. 

Quebrar o tabu da educação sexual

Tanto Sibele como Rosângela ressaltam que há um tabu sobre o tema que é preciso ser quebrado. “É necessário quebrar o tabu da educação sexual. Mostrar que educação sexual se refere a prevenção, autoestima, consciência corporal e estabelecimento de limites e não 'aulas de sexo'", aponta Sibele. 

Para Rosângela o tabu dificulta até mesmo a aproximação de vários profissionais com o tema, assim como com a discussão pela sociedade como um todo. “Além disso há as questões socioculturais que precisam ser discutidas dentro da família, nos espaços de convivência da criança e adolescente. A escola é fundamental nesse sentido para a discussão das questões de gênero e da violência de gênero também. Mais do que nunca, no que diz respeito a esse tema, falar sobre é prevenção”, frisa.  

Denunciar é preciso

O estado tem um Plano de Enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, elaborado pelo CEEVSCA-RS para o decênio 2019/2029, que tem como objetivo auxiliar e orientar o planejamento das políticas públicas para criança e adolescente dentro desse enfoque do combate à violência e exploração. “Vamos intensificar a disseminação para que esses planos também sejam municipalizados de acordo com a realidade local, assim como os comitês municipais de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes. Nós temos conhecimento de muito poucos comitês municipais aqui no estado, como de planos, sobretudo os que tenham sido formalizados por meio de lei ou decreto, o que também é uma orientação nossa. Isso auxilia na manutenção do Plano estadual, tornando-o independente das trocas de poder que venham ocorrer, permanecendo como política legitimada”, aponta Rosângela. 

Para Sibele é importante incentivar as denúncias das violências intrafamiliares, assim como informar e educar sobre o que são os atos de violência e como eles estão naturalizados. “Denuncie! É importante, mas conheça seus direitos. Por exemplo, o Conselho Tutelar não é investigador, quem investiga é a polícia. Junte o máximo de provas, exija a escuta protegida, que é um direito legal das crianças e adolescentes, pois seu depoimento será gravado e ela não poderá ser revitimizada, colocada para fazer acareação com seu agressor/abusador, nem ocorrerá o risco de ter seu depoimento alterado ou manipulado, algo bem comum e frequente”, enfatiza Sibele, que apresenta a campanha Seja a Voz!, feita pelo coletivo. 

“Que a mídia possa ajudar na divulgação de campanhas informativas e educativas de como e onde denunciar quais são os direitos das crianças e adolescentes vítimas! Lembrando que a criança sempre dá sinais e quem se omite é tão responsável ou culpado como quem comete o abuso”, finaliza.

Onde denunciar

• Disque-Denúncia 181
• Denúncia Digital 181 (Site da SSP): ssp.rs.gov.br/denuncia-digital
• WhatsApp da Polícia Civil: (51) 98444-0606
Disque 100 (governo federal)
• Em casos de urgência que demandem intervenção imediata, o número é o 190 da Brigada Militar


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Edição: Marcelo Ferreira