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Vida e morte peregrina: mulheres em situação de rua

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Mulheres em situação de rua fizeram brechós, venda de pastéis, eventos culturais para manter a ocupação Aldeia Pop, Rua Zumbi dos Palmares - Foto: Veridiana Farias Machado
Não vivo nas ruas, mas sinto suas dores, suas alegrias, desde o meu lugar de privilégio

Mãe Meque, mulher preta, de meia idade. Vivia no Parque Harmonia, em Porto Alegre, cuidava dos seus cães e de todos e todas que com ela dividiam o espaço. Morreu em meio a uma entrevista, de uma jornalista que se interessou por sua história. Contou casos sobre abusos, assédios que sofreu, ao longo de sua vida nas ruas, por diversos homens, inclusive, de alguns agentes do Estado. A entrevista ficou inacabada e ninguém sabe o que foi feito do seu corpo!

Rita de Cássia, mulher negra, muito negra, linda, corajosa, vivia na Praça Garibaldi, no Bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Ai de quem bulisse com uma das suas amigas de rua, estava lascado. Rita ia para cima e não deixava barato. Foi mãe, retiraram seus filhos, morreu de abandono, de banzo. É referência de coragem até hoje para as companheiras de rua!

Índia, mulher indígena, trinta e poucos anos de idade. Tinha um companheiro, sofria agressão física, buscava alívio no uso e no abuso de drogas. Teve acesso a serviços da assistência social, esteve em abrigos, em albergues, em Centros Pops (locais que disponibilizam alimentação, banho, lavagem de roupa e oficinas diversas). Fazia tratamentos, mas não tinha forças para mantê-los, seguida abandonava-os, recaía com intensidade no uso de substâncias psicoativas. Morreu em seguida, por complicações de HIV/AIDS.

Fátima, sarará de beleza rara, mora nas ruas em Santa Catarina. Contou que dormia na rua, com uma faca debaixo do travesseiro, com muito medo de que alguém lhe atacasse. Certa noite, acordou com um homem estranho, por cima do seu corpo, que tentou tirar sua roupa. Não teve dúvidas, sacou a faca afiada e lhe enfiou na barriga. Foi presa e ficou muitos anos na cadeia. Diz que não se arrepende do que fez!

Natascha, mulher trans, pele cor de cuia, bonita e vaidosa. Se prostitui, mas seu sonho é arrumar um trabalho de carteira assinada, só que não tem endereço fixo. Quando procura trabalho e diz que está em situação de rua, nunca mais recebe retorno.

Cláudia (mulher negra), Suzana (mulher negra), Lúcia (mulher negra), Aline (mulher parda), Pamela (mulher negra) e outras de diversas matizes, perderam todos os seus poucos pertences. Ocupavam um espaço de mocó (acampamento), ao lado da Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Em uma tarde, vieram equipes da prefeitura, caminhão do lixo, da limpeza urbana, junto com algumas viaturas da guarda municipal, retiraram tudo: colchões, cobertas, roupas, documentos e seus produtos de higiene pessoal. Derrubaram suas barracas improvisadas e mandaram que fossem embora. Elas moravam com seus companheiros ali, há mais de cinco anos.


As mulheres sabiam da história de Dandara, mulher de Zumbi dos Palmares. Estavam organizadas em movimento social / Foto: Veridiana Farias Machado

Essas mulheres sabiam da história de Dandara, mulher de Zumbi dos Palmares. Estavam organizadas em movimento social. Entraram para dentro de um terreno da prefeitura, naquela mesma região e declararam uma Ocupação. A mesma foi batizada pelo nome de: Aldeia Pop. Rua Zumbi dos Palmares.

Fizeram brechós, venda de pastéis, eventos culturais, novas mulheres em situação de rua chegaram com seus filhos, foram acolhidas. A aldeia toda cuidava das crianças, dos mais velhos, dos animais de estimação. A guarda municipal e a polícia não podiam mais entrar sem mandado de segurança, mas um bebê estava prestes a nascer na Aldeia.

Agentes da guarda municipal foram chamados para levar a mãe até o hospital e levaram. Nasceu João, bebê lindo, e todas as mulheres da Aldeia foram buscar a família no hospital, porque sabiam que ela teria dificuldades para ter alta com a criança, quando soubessem que moravam em uma ocupação de pessoas em situação de rua. Conseguiram trazer a família com o bebê, após muita pressão coletiva.  

Dessa forma, através da força dessa luta, elas saíram das ruas. Hoje, contam essa história com muito orgulho. Eu, carrego comigo um pouco de cada uma dessas caboclas e pude testemunhar todas essas histórias reais. Não vivo nas ruas, mas sinto suas dores, suas alegrias, desde o meu lugar de privilégio. Elas combinaram de não morrer!

Veridiana Farias Machado – Educadora Social que apoia e luta junto dessas mulheres.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko