Rio Grande do Sul

Entrevista Especial

Rualdo Menegat: “Estamos dirigindo a 300 km por hora na escuridão”

Autor do Atlas Ambiental de Porto Alegre, o geólogo compara o impacto das ações humanas na Terra a uma corrida às cegas

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"A sustentabilidade é a principal questão científica, cultural e política do século 21" - Foto: UFRGS

Geólogo, doutor em Ciências na área de Ecologia de Paisagem e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o pesquisador Rualdo Menegat é um estudioso também da natureza em suas múltiplas manifestações.

É um dos autores do Atlas Ambiental de Porto Alegre, obra monumental envolvendo solo, subsolo, rios, clima, vegetação, relevo, fauna e presença humana, que estimulou iniciativas semelhantes em mais de 60 cidades do Brasil e do mundo. Além disso, tem uma importante pesquisa sobre as Relações entre a paisagem e a cidade inca de Machu Picchu, onde aponta elementos para decifrar sua construção. “A localização de Machu Picchu não é uma coincidência”, afirmou Rualdo Menegat. “Seria impossível construir um local nas montanhas altas se o substrato [das rochas] não fosse fraturado.”

Nesta semana, quando se comemora o Dia de Pachamama, Brasil de Fato RS conversou com Menegat sobre as sombras que ameaçam o futuro do planeta. 

BdFRS - Diante do quadro mundial e do Brasil em particular, ainda é possível ter algum otimismo sobre o futuro do planeta? 

Menegat - Veja que o planeta tem 4,6 bilhões de anos de existência e a atual espécie humana, em torno de 100 mil anos. Já a civilização tem apenas oito mil anos. Então, do ponto de vista do planeta, a espécie humana é muito recente. O problema é entender que a sobrevivência da civilização depende da velocidade com que se modificam os sistemas da Terra. Se houver uma mudança muito rápida, como por exemplo, a elevação do nível do mar, a infraestrutura que hoje dispomos para a vida urbana costeira de milhões de pessoas não conseguirá dar conta. É disso que se trata. Temos que perceber que as atividades humanas no planeta Terra têm limites muito claros. Se forem cumpridos os acordos de redução drástica das emissões de CO2 e se houver a transição energética justa, ainda poderemos ter certa capacidade de previsão de eventos (é aquela metáfora do farol do carro em alta velocidade). Caso a elevação da temperatura média da superfície planetária ultrapasse 2°C, os cientistas do clima consideram ser muito mais difícil prever os eventos que se sucederão. 


"A civilização ocidental egoísta não consegue compreender como a vida é possível com o uso de tecnologias brandas, baixo consumo e redes solidárias"/ Foto: Ayllu Mística Andina

Brasil de Fato RS - Quais problemas podemos citar como exemplo do que precisa ser enfrentado na construção de uma nova sociedade, que respeite o meio ambiente?

Rualdo Menegat - Estamos em uma nova era geológica, chamada de Antropoceno, na qual as atividades humanas tornaram-se uma força geológica. Isso quer dizer que os impactos não se resumem à derrubada das matas ou à contaminação da água e do ar ou da perda da biodiversidade. As atividades humanas passaram a interferir em níveis muito mais profundos dos processos planetários, quer dizer, influenciam outra escala de espaço e tempo que, pela magnitude, chamamos de geológica. Nosso horizonte ordinário é o tempo presente e o município ou o país em que vivemos.

Precisamos de uma economia circular que produza tudo o mais perto possível

Comparo esse problema com o de um carro correndo a 300 km por hora em uma noite escura. Como os faróis foram projetados para velocidades de apenas 50 km/h, o motorista não enxerga mais do que 10 metros a sua frente. Dirige no escuro. Nessa velocidade, os faróis, para serem efetivos, deveriam iluminar três km avante, que é o tempo necessário para percorrer 30 segundos. A infraestrutura altamente tecnológica e concentradora das sociedades contemporâneas não foi pensada para as atuais escalas de espaço e tempo e podem enfrentar grandes dificuldades no futuro próximo. Veja as inundações fatais no Vale do Ruhr, na Alemanha, ou o impressionante deslizamento de terra em Atami, no Japão ou, ainda, o calor impensável no oeste canadense. Assim, precisamos reorientar em primeiro lugar a cultura. O problema ambiental não é um problema que está lá fora, em uma natureza distante.

Precisamos cada vez mais de uma economia circular, que não importe materiais de longe. Ao contrário, que produza tudo que precisamos o mais perto possível, gerando um círculo econômico virtuoso e não consumista.

Uma terceira questão é adotar uma educação com base no conhecimento local. A educação contemporânea não ajuda as pessoas a tornarem-se capazes de participarem de sistemas de gestão do lugar em que vivem.

A quarta questão é a agricultura ecológica e urbana. As cidades devem parar de importar alimentos e serem reféns de agrossistemas que devastam o meio ambiente pela quantidade de venenos que lançam no solo, na água e nas plantações. A agricultura deve ser também uma prática da vida urbana.

Há urgência na transição energética para fontes renováveis, como a eólica e a solar. Além disso, é preciso adotar outro sistema de produção e distribuição de energia, que não seja concentrador e não torne a cidadania refém dos grandes monopólios.  

A ultradireita rouba a democracia e também o futuro em um mundo sob emergência climática

BdFRS - Como o aumento do poder mundial das corporações e a ascensão da ultradireita - Orban, Bolsonaro, Trump etc. - ameaçam o futuro?

Menegat - Paralelo à emergência climática, as sociedades planetárias descobriram outra grave ameaça: grupos antissociais organizados mundialmente estão promovendo um verdadeiro saque à democracia, às instituições republicanas e aos bens públicos, contribuindo para a instalação de uma atmosfera de caos. Sem isonomia e equidade, as sociedades contemporâneas ficam em tal grau de desequilíbrio que dificultam a sua organização para enfrentar os desafios que temos pela frente.

Um exemplo claro é o da gestão sanitária em uma época de pandemia. Esses grupos obscurantistas negam a ciência, ou seja, negam o conhecimento que temos sobre as causas da pandemia, qual seja: a de um vírus cuja propagação pode ser controlada a níveis mais confortáveis por meio da vacinação. Trata-se de posições antissociais, quer dizer, ao roubarem a democracia, também aniquilam não só a possibilidade da vida pública em sociedades abertas, mas da própria vida das pessoas. Tais grupos ameaçam de uma só vez a democracia, a sociedade, a vida das pessoas e o futuro em um mundo de emergência climática, posto que negam a ciência, nossa lamparina que pode ajudar a enxergar um pouco mais a frente nesta era do Antropoceno. 

As cidades não podem ser reféns das corporações fornecedoras de energia, água e alimentos


Esparramando-se por 4.373 hectares, a Mina Guaíba será a maior a céu aberto do país, localizada a 1,5 quilômetro do rio Jacuí / Foto: Maia Rubim/Sul 21

BdFRS - Se adotarmos modelos sustentáveis existem possibilidades de sobrevivência da humanidade no planeta? Qual a urgência das medidas?

Menegat - A sustentabilidade é a principal questão científica, cultural e política do século 21. Nada proíbe a sustentabilidade de uma população humana tão grande quanto 9 bilhões de habitantes, número estimado para o ano 2050, dos quais, 70% estarão vivendo em cidades. Por isso, o presente século é aquele em que ocorrerá a maior urbanização da população planetária e em taxas muito altas. As cidades vão experienciar seu maior desafio, o que torna as questões ambientais ainda mais importantes. Com certeza essas cidades de consumo excessivo, trânsito frenético, paisagens deterioradas estão esgotadas.

É preciso rever o conceito do que seja viver em cidades para que estas sejam sustentáveis. O princípio fundamental é o da autonomia da vida urbana, com baixo consumo e importação de energia. As cidades devem deixar de ser parasitárias, pois correm o sério risco de serem reféns (e em parte já são) dos grandes fornecedores de energia, água e alimentos, que também costumam controlar os governos. Por isso há muita pressão para a privatização dos serviços públicos, pois as grandes corporações de capital transnacional apostam que a cultura urbana continue absolutamente dependente de mecanismos concentradores de energia e de abastecimento.

Mercados de fornecimento de alimentos diretamente dos produtores locais, favorecendo os cinturões verdes periurbanos e a agricultura urbana são cada vez mais fundamentais. É preciso, também, que a cidadania tenha transporte eficiente e de boa qualidade, em vez de avenidas congestionadas por veículos poluentes que não conseguem se mover. O combustível fóssil se tornará cada vez mais obsoleto, tanto quanto a locomoção predominantemente por veículos individuais. 

A mina Guaíba vai afetar a saúde de 4,2 milhões de pessoas

BdFRS - O RS tem sido apontado como a nova fronteira da mineração do país. Como o senhor analisa o processo que vem acontecendo no estado? E os impactos que a instalação da Mina Guaíba pode trazer?

Menegat - O projeto da mina Guaíba é um contrassenso em todos os sentidos. Pretender instalar uma megamina de carvão a apenas 16 km do centro de Porto Alegre, e despejar contaminantes no rio Jacuí a 22 km dos pontos de captação de água para abastecimento da população é inaceitável. Isso significaria tornar a capital gaúcha refém de um empreendimento mineiro que não trará nenhum benefício aos porto-alegrenses. Pelo contrário, a cada dia seus moradores deverão prestar atenção para saber qual o nível de concentração de metais pesados e metaloides, como o cádmio, chumbo, cromo, arsênio e mercúrio – que são altamente danosos à saúde humana – na água em que bebem. Além disso, tanto os efluentes, como as emissões de material particulado podem afetar a vida urbana de toda a região Metropolitana e a saúde de 4,2 milhões de pessoas.

Quem pagará essa conta? Assim, se incluirmos os custos dos impactos ambientais, sociais e na saúde humana que essa pretensa mina poderá causar, a conclusão é uma só: a exploração desse carvão é claramente antieconômica. Temos que considerar, também, que esse carvão é de baixo poder energético e sua exploração é viável somente se seu uso for feito próximo ao lugar de extração, de sorte a ter baixíssimos custos de transporte.

Por isso, além da mina que pretende extrair 166 milhões de toneladas de carvão em 23 anos de operação, espalhando nesse tempo mais de 30 mil toneladas de material particulado e queimando 44 milhões de litros de diesel por ano de funcionamento, a região Metropolitana terá outro vizinho muito inconveniente: uma possível usina termelétrica ou um polo carboquímico. Ambos poluentes e consumidores de muita água. Ou seja, a mina não só vai poluir a água que os porto-alegrenses bebem, mas também trará a implantação de um concorrente do uso dos mananciais. 

A boiada está passando em Brasília e no Rio Grande do Sul também

BdFRS - Em junho, o governador Eduardo Leite (PSDB) aprovou a flexibilização da lei de agrotóxicos. Ainda sob o governo tucano tivemos a aprovação do novo código ambiental sem passar pela Comissão de Meio Ambiente. Que impactos essas duas medidas podem trazer? 

Menegat - Essas medidas mostram claramente que a ‘boiada está passando em Brasília’, para utilizar a infeliz expressão do ex-anti-ministro, e também aqui no Rio Grande do Sul. São medidas de alto impacto negativo. Aumentará a contaminação das águas e do solo em um estado onde cada metro quadrado está sendo disputado pela monocultura intensiva da soja.

Os impactos ambientais e na saúde já se fazem sentir. Por exemplo, cada vez mais há falta de água nas propriedades rurais. Como geólogo de campo no interior do estado, ouço, em cada lugar que vou, a mesma pergunta: como conseguir mais água, pois os rios estão secando com muita frequência. Ora, com o plantio desenfreado de soja, os banhados que cumprem a função de reter abundante volume de água da chuva que, por sua vez, alimenta os rios vagarosamente, estão sendo devastados. Assim, a água da chuva escorre rapidamente para o canal fluvial e dali, para os rios maiores, onde causa inundações súbitas e intensas. Nossos filhos e netos vão herdar uma terra com danos ambientais muito grandes. 

Nossa civilização não entende como viver com tecnologias brandas, baixo consumo e solidariedade


"Paralelo à emergência climática, as sociedades planetárias descobriram outra grave ameaça: grupos antissociais organizados mundialmente estão promovendo um verdadeiro saque à democracia" / Arquivo Pessoal

BdFRS - No último domingo (1º de agosto) foi celebrado na América Latina hispânica o Dia da Pachamama. O dia da Mãe Terra é um dos eventos mais populares em países andinos. No contexto atual, o que Pachamama está nos dizendo?

Menegat - A noção de uma Pachamama ou Mãe-Terra, que fundamentou as civilizações mais antigas em todos os continentes, ainda continua forte nos países andinos e nos povos das florestas. Em locais em que costumamos dizer que a vida é mais difícil, como nas grandes altitudes das montanhas, ou nos densos cobertores verdes, como os Tikunas chamam as florestas, as pessoas têm clara noção do quanto dependem da Mãe Terra para sobreviverem. E para tanto, só há uma lei: saber respeitar os limites de uso dos ecossistemas. Se há um claro recado dos sinais vitais do planeta é o de que a civilização do maquinismo térmico impulsionado desde a revolução industrial por combustíveis fósseis chegou ao seu limite. A equação é evidente.

A maior crise energética não é a da possível falta de energia para as cidades, mas a do déficit de devolução para o espaço da energia que a Terra recebe do Sol. Esse déficit ocorre quando há aumento da concentração de gás carbônico na atmosfera, hoje em torno de 416 ppm. Atualmente, o déficit de retorno da energia da Terra para o cosmos é de 0,5 w/m²! É isso que gera o aumento da temperatura de 1,2ºC da superfície planetária. O degelo das geleiras nas montanhas, os incêndios florestais e grandes inundações são claros avisos de que o equilíbrio térmico do planeta está descompensado.

É interessante como as culturas originárias da América do Sul, em particular, tinham clareza sobre a condição de reciprocidade para garantir a sobrevivência da cultura humana. A civilização ocidental egoísta não consegue compreender como a vida é possível com o uso de tecnologias brandas, baixo consumo e redes solidárias.


Machu Picchu é um exemplo de como as sociedades podem ser numerosas, alimentarem-se plenamente e utilizarem tecnologias brandas que não produzem danos nos geossistemas e ecossistemas / Foto: Enrique Castro-Mendivil/Reuters

BdFRS – Como foi a experiência de pesquisa que o senhor desenvolveu nas construções de Machu Picchu, no Peru?

Menegat - Decidi pesquisar cidades antigas que nos parecem desconcertantes, como Machu Picchu situada no topo das altas montanhas andinas. Com várias expedições de campo, pude entender que essas cidades da região do vale Urubamba situavam-se no cruzamento de falhas geológicas. Nesses locais, as rochas encontram-se fraturadas tornando possível esculpir as encostas rochosas e encravar as cidades nas ladeiras vertiginosas. Também há abundância de blocos fragmentados utilizados para construir as paredes das edificações e muros dos terraços agrícolas.

Por fim, zonas de falhas constituem-se em aquíferos fraturados que, no caso, eram alimentados ou pelo degelo das geleiras de altitude ou pela água da chuva. Com base nessas técnicas, os incas sabiam que era proibitivo construir cidades nos fundos dos vales. Embora estivessem nas margens de rios onde haveria abundância de água, exatamente ali ocorrem as maiores probabilidades de desastres, como inundações, secas e deslizamento de terra. Ao contrário, nas encostas vertiginosas e intensamente fraturadas, era possível construir terraços e irrigá-los com a água de aquíferos fraturados.

Não há abundância de água como no fundo do vale, mas também não há falta e as plantações não correm o risco de secas ou de inundações. Pronto, eis aí os ingredientes fundamentais para erigir uma civilização nas altas montanhas, única na história humana. Tinha nada menos de dez milhões de habitantes, onde não passavam fome e tampouco conheceram a escravidão. É um exemplo de como as sociedades podem ser numerosas, alimentarem-se plenamente e utilizarem tecnologias brandas que não produzem danos nos geossistemas e ecossistemas. São, portanto, um exemplo para nos inspirar na travessia desse século 21.

*Com a colaboração de Katia Marko, Pedro Neves Dias e Walmaro Paz


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Edição: Ayrton Centeno e Katia Marko