Rio Grande do Sul

Coluna

O dia da criança e a responsabilidade dos adultos

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Este ano, as atividades dos Sem Terrinha, inseridas no contexto da Jornada de lutas “Movimento Sem Terra: Cultivando Solidariedade”, giram em torno do Centenário Paulo Freire - Foto: Dowglas Silva
Um projeto político de vanguarda não pode deixar de fora os pequenos pensadores

Nesta semana o dia 12 obriga a reflexões.

É uma data estranha.

No Brasil comemora-se, entre outros, o dia da criança, o dia do agrônomo e o de Nossa senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

O que estas datas têm em comum? Procurei no Google.

O Dia do Agrônomo mapeia a regulamentação da profissão, ocorrida nesta data, em 1933. Governo Getúlio Vargas, atestando a importância da profissão para a modernização da agricultura, com proteção do ambiente e favorecimento das populações rurais e urbanas.

O dia da Criança parece óbvio, mas não o é. O dia 12 de outubro, data oficializada pelo presidente Arthur Bernardes, em 1924, reverenciava Cristóvão Colombo, que em 1492, quando “descobriu a América”, teria cunhado o apelido de “continente das crianças”. A propósito, a chegada de Colombo marca para os povos indígenas latino-americanos o oposto: o Dia da Resistência Indígena.

Vale lembrar que, desde 1959, mais de 100 países preferem 20 de novembro como “Dia Universal da Criança”. Isso porque naquela data o Fundo da Nações Unidas para a infância (UNICEF) aprovou a Declaração dos Direitos das Crianças, que seriam assegurados para todas elas, sem qualquer distinção de cor, sexo, língua, religião ou opinião. É linda a declaração. Além de direito ao amor e à compreensão, também garante proteção geral e atendimento específico ao desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. Garante direito à alimentação, moradia e assistência médica, bem como defesa contra a crueldade, exploração e qualquer ato de discriminação, entre outros que vale a pena revisitar.

Creio que isso dispensa ir além, de modo que não vou tratar da Santa Padroeira do Brasil. Naquela googleada encontrei que na América Latina rural, a santa não tem ajudado e a coisa vai de mal a pior, para as crianças.

A expansão de modelo de agronegócio exportador de commodities obtidas através do uso de tecnologias altamente ofensivas aos direitos e à saúde humana e ambiental, com apoio de boa parte dos agrônomos, está inviabilizando a infância no meio rural.

Territórios reduzidos a lixeiras para onde são desviados agrotóxicos proibidos em outros locais do planeta, a Argentina, Brasil e Paraguai passaram a ser locais extremamente perigosos, para se nascer e crescer onde "mandioca, milho... Mas também nossas galinhas, nossos porcos, até vacas. Tudo morre”. Agricultores relatam que, quando sentem o cheiro de veneno, correm para trancar as crianças em casa.

Em determinados locais, como no Paraguai, onde 94% das terras cultiváveis ​​são ocupadas por aquele modelo de agronegócio, são esperados, como quase naturais, os abortos espontâneos, nascimentos com malformações, danos genéticos, Parkinson, retardo no aprendizado, depressão e suicídio.

Isto também ocorre no Brasil. Sob o manto espetacular do AgroPop, a imaturidade dos sistemas de metabolização e proteção natural, das crianças, as coloca como principais vítimas. Resta pensar num dia da criança que comemora futuros roubados. Em larga escala, aos milhões, em sociedades capturadas por interesses criminosos que nos revelam desumanizados, em vergonhosa omissão coletiva.

Como se isso não bastasse, a googleada sobre o dia da criança também mostra que, em nosso país, a cada 20 minutos, uma criança se torna mãe. Conforme estudo publicado neste dia 12 de outubro, entre 2010 e 2019, 252.786 meninas de 10 a 14 anos, além de 12 meninas com menos de 10 anos, engravidaram e tiveram filhos nascidos vivos.

A publicação da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos do Paraná, divulgado com exclusividade pelo Portal Catarinas, evidencia terríveis violações ao direito de ser criança. Os números apontam 25.280 casos de gravidez de vulneráveis, por ano, ou 70 crimes por dia. Meninas que por falta de apoio, informação e acesso ao aborto legal, acabaram por parir outras crianças, e continuam expostas à coação e atividades sexuais que consentidas ou não, nesta faixa etária caracterizam estupro de vulnerável.

Estas mães meninas, que vivenciam situações equivalentes à tortura, morrem mais e contabilizam maior número de casos de bebês natimortos (Os dados completos por estado podem ser acessados na pesquisa.). São principalmente, crianças pobres das regiões mais pobres do Brasil. Meninas com menor possibilidade de acesso ao estudo, à informações ou à qualquer rede de proteção, que seguem o perfil da maior parte das mulheres de seu ambiente. No Brasil, 71,1% das meninas mães são negras (pretas e pardas). Mas na região Sul, as meninas mães de cor branca alcançam 73% do total. 

Isto indica situação estrutural, de irresponsabilidade do Estado. A falta de perspectivas de vida, induz adoção precoce do papel de mães, antecipando para aquelas meninas o roteiro à elas reservado nesta sociedade que as discrimina.

Segundo aquele estudo: “Elas acabam entrando em um círculo de reprodução social. Muitas vezes, suas mães foram mães jovens, e essas meninas reproduzem essa gravidez também como uma maneira de buscar seu status social na comunidade que fazem parte”.

E os pais? Na maioria dos casos o agressor é parte da família, e a escola, que seria o lugar ideal para a intervenção, se vê impedida de cumprir este papel, por determinação do governo.

Felizmente a pesquisa google também mostra outros fatos relacionados ao dia das crianças. Encontrei pelo menos três iniciativas, também publicadas dia 12 de outubro que vale compartilhar.

De um lado, destacam-se atividades realizadas pelas crianças sem-terra, com o apoio das escolas do MST, em memória a Paulo Freire. Os Sem Terrinha, estimulados a compreender a importância do protagonismo e da responsabilidade de todos, com a educação e a cultura, associadas à saúde coletiva e em defesa da Casa Comum, cantaram, dançaram, plantaram hortas e árvores. Para maiores informações, vejam a “História do menino que lia o mundo” e a revista sem terrinha que homenageia Paulo Freire.

De outro lado, chama atenção ampla adesão à inovadora campanha de resgate da “Estética da Esperança". Adultos que, quando crianças foram estimulados pelas famílias a participar da construção da democracia e da soberania nacional, contra todas as discriminações e explorações, enviaram fotos de suas vivencias, nos anos 1990 e 2000. “Sem crianças não há socialismo. Um projeto político de vanguarda não pode deixar de fora os pequenos pensadores que são, também, agentes políticos em seus nichos”, diz o texto que apresenta a página “Crianças Petistas”, resgatando a memória de suas participações, com os pais, em campanhas políticas que apontavam para o Brasil um futuro prenhe de possibilidades.

Segundo as autoras, “neste momento de profunda crise, é fundamental se apegar à esperança de que é possível mudar de novo o rumo da história” ... pois, se há tão pouco tempo “todo mundo fazia política o tempo todo” ... e hoje, “as pessoas tentam não tocar nesse assunto para não gerar conflitos”, resulta clara a relação entre este retrocesso e o avanço dos crimes contra a infância, relatados no início deste texto.

Finalizando, e trazendo uma das muitas experiências de inclusão e proteção social que se mantém e devem ser estimuladas, reproduzidas, vale citar o caso da ABAI.

Resumindo, Marianne Spiller recebeu terras de herança. Era uma mulher rica. E doou tudo para criação de espaço destinado ao acolhimento de crianças e outros desvalidos, em Mandirituba/PR. Projeto de educação e convívio, área livre de agrotóxicos e transgênicos, local onde se faz reprodução e guarda de sementes crioulas, festas de partilha e tantas outras coisas relacionadas ao amor, que só as palavras de Marianne podem resumir. Ela disse, e eu jamais vou esquecer: “eu achava que era rica, mas era pobre, hoje, onde nada daquilo me pertence, sou riquíssima”.

Para finalizar, a música da Semana, cantada pela filha de um dos tantos acolhidos pela ABAI. Gilberto, o pai, fez a música. Quem canta é Ana Júlia, parte da terceira geração de cidadãos formados pela ABAI.

A terra não é minha | Banda Mãe Terra

 

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko